23 - Destino de Outrora (Parte I)

Notas da Autora

Olá pessoal! Em primeiro lugar, agradeço por estarem acompanhando a saga dos nossos felinos até aqui. Abraços e beijos no kokoro!

Eu só queria avisar que esse capítulo será dividido em duas partes. Essa e a próxima narrando acontecimentos decisivos do passado, onde eu revelo alguns detalhes cruciais para as peças do quebra cabeça da trama. Deixei algumas dicas soltas em alguns parágrafos, que se vocês se atentarem, imagino que vão descobrir a real identidade de certos personagens em especial!

No mais, obrigada e vamos para a história!

Luccy B.

31 Anos Atrás

Num descampado desolado, entre ruínas e terrenos baldios, um estranho silêncio preenchia o ar. Na vila de casas pobres abandonadas, as paredes desmoronadas das antigas construções ao redor pareciam ecoar a narrativa sombria do combate que acabara de ocorrer ali, enquanto o cheiro de fumaça, sangue e magia ainda pairava no ar.

Entre os esqueletos de madeira e pedra, consumidos pelo tempo e pelo abandono, o perverso rei bastardo Mewpester jazia nocauteado, com ambos os braços - ou o que sobrou deles - carbonizados pela fúria mágica de sua oponente. Seu corpo outrora imponente, estava estendido no chão coberto de poeira e sujeira sobre o que restou de sua armadura real despedaçada. Seus olhos, agora apagados, perdiam o brilho de seu poder, revelando a fragilidade da derrota merecida que o acometeu.

A alguns metros de distância dele, a jovem fada-bruxa Renésmew lutava para se manter consciente, apesar das lâminas de aço que atravessavam seu corpo. Seu sangue escorria como um rio vermelho, manchando o chão e dando cor à desolação. Sua respiração era fraca, mas cada suspiro era uma prova de sua determinação, pois ela sabia que não podia ceder ainda. Seu pequeno filhote, oculto em segurança pela magia que emanava dela, era sua única preocupação agora. Ele ainda não estava à salvo, e a felin que um dia foi uma rainha lutaria para protegê-lo, desafiando todas as dores e limitações que seus ferimentos fatais podiam impor.

Sua magia, assim como sua força vital, em breve encontraria o inevitável fim. No entanto, sua determinação era o bastante para fazer com que aquele poder durasse mais do que o fôlego restante em seus pulmões. Filha de um rei fada e uma rainha bruxa, a magia de ambas as propriedades com a qual Renésmew nasceu a tornou uma especialista em conjuração de selos praticamente inquebráveis e feitiços de ocultação imperceptíveis.

E agora, fazendo uso de suas habilidades unidas uma última vez, ela executava um feitiço final. Primeiro, ocultou as lâminas que a atravessavam e a poça carmesim de sangue sob seu corpo, dos ferimentos causados pela perfuração das mesmas. Uma etapa primordial das três partes do feitiço que precisaria realizar, terminando a primeira bem a tempo; pois assim que percebeu o silêncio aterrador resultante do fim da cruel batalha travada pela mãe, o pequeno filhote deixou seu esconderijo e veio rapidamente em direção a ela.

Seu rostinho adorável que só mereceria sorrir se mostrava aterrorizado e ao mesmo tempo preocupado com a mãe, enquanto lágrimas vertiam sem parar das belas íris douradas que herdou do pai.

Renésmew sabia que não demoraria até seu pequeno vir correndo ao seu encontro, por isso ocultou as lâminas e todo o sangue de seus ferimentos profundos. Já não bastava supor que o filho houvesse presenciado a batalha; não queria que ele visse o estado em que o combate mortal a deixou.

- Mamãe! - O filhote se agachou ao lado dela, exclamando com voz trêmula, assustado - O monstro te machucou de novo, mamãe?!

O garotinho prestes a completar seus tenros quatro anos perguntou; era como se referia ao rei cruel que os mantinha prisioneiros e machucava sua mãe.

- Não se preocupe, amorzinho. A mamãe está bem, só precisa descansar um pouco. Por favor não chore mais, tá bom? - Renésmew fazia todo o esforço para não deixar que seu filho percebesse sua voz enfraquecida e a respiração oscilante.

O filhote virou o rosto na direção do repugnante rei inconsciente, do outro lado do descampado.

- Você ganhou do monstro, mamãe? Nós vamos mesmo pra casa? Pro papai?

- Sim, querido. Mas escute, Devimyuu, meu filho... Como a mamãe disse, estou um pouco cansada, e vou precisar de sua ajuda para podermos ir embora. Você me empresta sua magia?

O pequeno assentiu, embora não soubesse exatamente como poderia ajudar. Com tão pouca idade, seus reais poderes mágicos mal tinham começado a se manifestar. Porém, ciente do grande poder que havia no sangue do pai de seu filho, Renésmew sabia do potencial que Devimyuu carregava.

- Muito bem, meu amor. Primeiro, eu preciso que você vire para frente e feche os olhos, e depois, segure na mão da mamãe. - Ela disse, sentindo sua respiração quase falhar, mas tentando manter o seu vigor ao máximo. Devimyuu a obedeceu prontamente. - Isso mesmo... Agora, eu quero que pense no lugar que a mamãe contou que você nasceu... Aquele com os lótus púrpura, as tulipas azuis, e as fadinhas que eram amigas da mamãe. Lembre-se do desenho que fiz pra você. Eu preciso que pense nisso com toda a sua força. E pense em tudo que eu te disse sobre o seu pai também.

- Eu... eu acho que não consigo... Estou com medo...

Devimyuu tentou se virar, queria pedir o colo da mãe, porém, Renésmew estava no limite de seus poderes, e pressentia que seu feitiço de ocultação falharia por completo a qualquer instante. Ela ainda estava escondendo as lâminas cravadas em seu corpo, porém, o rio de sangue que a banhava estava ficando visível outra vez. Não podia deixar que seu filhote presenciasse tal visão hedionda de forma alguma.

- Não se vire! - Ela exclamou quase em desespero, fazendo o pequeno Devimyuu congelar onde estava. Porém, a jovem fada-bruxa temia que isso o tivesse deixado ainda mais assustado, pois nunca levantava a voz para ele.

- N-não pode se virar, meu bruxinho, senão a nossa mágica não vai dar certo. E não precisa ter medo, é só fazer aquilo que seu avô ensinou pra mamãe e que eu ensinei a você, tá? Se lembra do que era?

A mãe o viu assentir, dessa vez se mantendo de costas para ela.

- ...C-contar os números mágicos... na língua secreta das fadas... - ele respondeu, soando um pouco menos assustado.

- Isso... mesmo... - Renésmew disse, sem conseguir segurar uma fraca tosse, que provocou alguns espirros de sangue serem expelidos por sua boca - ... e quando chegar em aoni ... - ela deu uma pausa, deixando que o filhote terminasse a frase.

- ... vai ficar tudo bem... - o pequeno Devimyuu completou, e então começou a contagem regressiva de dez a um na língua fádica ensinada pelo avô paterno que não pôde conhecer, embora ele estivesse lá para celebrar seu nascimento, como todo o resto da família que perderam.

- Dertch, naoim, ochdy, sechdy, siya...

O filhote ia se sentindo mais calmo à medida que se aproximava do número um. Sua mente clareando reativava sua memória quanto ao desenho que sua mãe fizera uma vez para ilustrar o lugar onde dera a luz a ele, onde ela chamava de lar. E aos poucos, ele dava vida a sua imaginação a respeito da imagem de seu pai e tudo que Renésmew contou sobre ele em todos seus incompletos quatro anos de vida.

Enquanto isso, por mais dificultosa que fosse a tarefa devido ao seu estado, Renésmew manteve seu poder ativo a ponto de conseguir conjurar sua varinha mágica, - Soríbia - com a ajuda da magia que absorvia de Devimyuu, a usando como catalisador. O formato belamente exótico da ponta do objeto mágico lembrava o broto de uma tulipa florescendo dentro de uma flor de lótus desabrochando. Essas eram as duas flores favoritas de Renésmew e que representavam sua parte fádica, sendo assim, seu artefato de magia pessoal não poderia ser diferente.

Contudo, tal conjuração custou a Renésmew mais do que seu corpo fatalmente ferido era capaz de suportar. Ao executar a magia, sentiu como as lâminas de Mewpester a
perfurassem uma vez mais, sentindo mais de seu sangue quente se esvair, embora acreditasse que não teria como perder mais do que restava dele. Mesmo assim, superando o quase insuportável, a felin resiliente travou os dentes com força contendo a dor intensificada e apontou a varinha na direção adiante de Devimyuu. Os cristais na ponta da mesma que simulavam os miolos de sua forma floral se acenderam, emanando um suave brilho magenta, e então, um portal circular começou a se abrir diante do filhote.

- coiigd, qeithir, trix...

Devimyuu prosseguia na contagem regressiva. Estava quase chegando no número um, e Renésmew sabia que assim como os números, seu tempo também estava acabando. Porém, graças a seus esforços imensuráveis, a segunda parte do feitiço que executava se concluiria com a abertura do portal.

A parte bruxa de Renésmew herdou as habilidades de intervenção do domínio espiritual que sua mãe possuía. Por essa razão seus feitiços de ocultamento eram praticamente indetectáveis, pois era como se os ocultasse num plano imaterial que somente ela e aqueles que permitisse eram capazes de detectar através de um selo. E a última parte de seu feitiço se resumia a isso.

Após mergulhar a ponta inferior de sua varinha no sangue acumulado sob seu corpo, ela usou a mesma para desenhar na palma de sua mão esquerda um sigilo de selamento de alma. Sabia que aquela era a única forma de garantir que pelo menos seu precioso filho tivesse uma chance de escapar daquele lugar infernal, e voltar ao verdadeiro lar que pertenciam. No entanto, também estava ciente de que usar aquele feitiço ritualístico antigo custaria todo o pouco fôlego de vida que ainda lhe restava. Mas não havia outra escolha, e era chegado o tão doloroso momento de se despedir do filho que tanto amava.

-... dhac ...aoni!

O pequeno Devimyuu chegou ao fim da contagem. O filhote respirou fundo, se sentindo melhor, e então abriu os olhos. Diante dele, surgia algo que nunca havia visto, mas que seus lindos olhos dourados encararam com admiração ao saber que se tratava de magia. Um portal circular estava aberto,o mesmo não era muito grande, pois devia ter o tamanho preciso para que Devimyuu passasse, entretanto, isso não diminuía em nada seu esplendor.

Seu interior revelava um vórtice de multicores repleto de fagulhas cintilantes que giravam como pequenas estrelas em espiral, guiando o caminho para o outro lado.

- Olha, mamãe! É uma coisa mágica! É isso que vai levar a gente pra casa e pro papai?!

Devimyuu perguntou, e para o alívio de Renésmew, ele estava tão deslumbrado com o portal, que manteve seus olhos fixos nele, sem se virar outra vez para a mãe, impedindo que ele visse as horríveis lâminas não mais ocultas banhadas em sangue que ceifavam a vida dela.

Lágrimas desceram pelos olhos de íris rosé da bela felin, tanto por ver que tinha conseguido, quanto por saber que não poderia acompanhá-lo. Entretanto, para ela o principal era que com o portal concluído e o selo prestes a ser ativado na palma de sua mão, ela sabia que apenas mais alguns segundos e seu bebê estaria a salvo.

- Acertou, meu príncipe... Você como sempre, é o meu bruxinho esperto, não é? Pode ir na frente, que a mamãe logo estará com você... - Renésmew se sentiu mal por um instante por ter que mentir, apesar que tecnicamente, ela estaria acompanhando seu filhote mesmo que indiretamente. Ainda dizendo para que ficasse olhando apenas para o portal, segurou na pequena mão dele uma última vez. - ...Chegou a hora de você finalmente reencontrar o papai... Nunca se esqueça de que você é o filho de um rei, que nasceu em um reino lindo, justo e seguro, e que irá governar um dia. E que o seu pai... te ama mais do que tudo... Eu tenho certeza que ele vai te encontrar, e quando te ver, terá o sorriso mais feliz de todos, igualzinho ao dia em que você nasceu. E meu filho querido... saiba que a mamãe... também te ama muito, muito mesmo... e que um dia, no momento em que mais precisar, eu prometo que estarei lá para você... Seja feliz, e saiba que sempre estará no meu coração, meu amor...

Com as últimas palavras de sua despedida, sentindo seu coração se partir, Renésmew cuidadosamente empurrou Devimyuu para próximo ao portal o suficiente para o vórtex que conectava mundos Reverso e Puro naquele momento, o puxasse de vez para dentro. A energia interdimensional mal tinha levado seu filhote quando ela ativou o selo de sangue em sua mão, cravando a ponta da varinha no centro dele, dizendo as seguintes palavras:

- "Poderes entre céu e terra, quebrem as leis do véu imaterial e desviem os caminhos da morte. Que a minha alma só encontre o descanso quando esse pacto for reivindicado. Que o meu espírito aqui permaneça, até que meu desejo final se concretize: Signatus Spiritus Habitare!"

Entoando o feitiço ancestral que levou o que restava de seu fôlego de vida, Renésmew fundiu seu espírito recém desencarnado ao catalisador mágico que a pertencia através do selo de sangue da magia irreversível, para que o mantivesse ligado a Soríbia até que o pacto fosse concluído. Ou seja, que seu desejo final, - aquele por qual sacrificou o que restava de sua vida - fosse cumprido. E o maior desejo de sua alma, era que seu precioso filho reencontrasse o pai que tanto o amava, e quem também fora o amor da vida dela.

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