21 - A Trama dos Gêmeos


Devimyuu não havia invocado nenhum tipo de barreira de proteção quando fez o Sombríage explodir numa condensação de trevas. Por estar relativamente perto, os estilhaços o tinham acertado como lâminas em alta velocidade, deixando rasgos em seu kimono real luxuoso e cortes em seu corpo sob o traje.

Mas ele não se importou; um pouco de dor física - por mais ardente e aguda que fosse - talvez o distraísse pelo menos um pouco da dor em sua alma. Além disso, seus poderes regenerativos de semideus não demorariam a curá-lo.

Brumas de sombras emergiram de seus ferimentos e os cicatrizaram quase que instantaneamente por não serem muito profundos. O Lorde das Trevas ainda se recuperava quando ouviu o som da pesada porta de pedra e ferro ser aberta através de magia; magia essa que o próprio rei bruxo havia disponibilizado para o único membro da corte em quem tinha total confiança.

Ali estava Mewosek. Seu olhar se mostrava preocupado, e teve certeza da validez desse sentimento quando viu um último corte no rosto de seu lorde escorrer um filete de sangue por sua bochecha, como um dos últimos a se curar. Ambos ficaram apenas se encarando durante alguns segundos sem trocar uma palavra, até que o Chanceler tomou a iniciativa.

- Me ocorreu um pressentimento de que havia algo errado, então achei melhor averiguar. Estava no meio do caminho quando ouvi seu rugido de fúria e o som de uma explosão e vidro partido. O senhor... atacou o Sombríage de novo, não foi, milorde?

Mewosek de fato costumava ter certas intuições quando sentia que seu rei estava com problemas. Além dos naturais instintos ferais característicos de sua espécie, seus pressentimentos também se davam devido a parte do sangue mágico e semidivino de Devimyuu já ter corrido em suas veias.

Acontecera há aproximadamente vinte anos ou pouco menos. Devimyuu estava perto de tomar de volta o trono, e já detinha um coven próprio sob seu comando. Coven esse composto totalmente por poderosas bruxas, que foram rejeitadas por outros grupos misóginos de bruxos que acreditaram que seu gênero as tornava fracas e inferiores. No entanto, evoluído perante tais pensamentos esdrúxulos, o jovem Lorde das Trevas aceitou a todas, sendo ele - o líder - como o único macho do grupo. Além de Mewosek obviamente. Ele não chegava a ser um exato membro por não possuir magia, porém, desde aquela época, Devimyuu já o tinha como seu braço direito e o mantinha por perto, deixando que o acompanhasse nas missões.

E foi justamente num de tais eventos perigosos, que o Mewosek de apenas 15 anos se feriu gravemente. Sua vida estava por um fio devido a perda exorbitante de sangue, e Devimyuu sabia exatamente o que fazer para que houvesse uma única chance de seu parceiro e único amigo naquele mundo desprezível, ser salvo.

Sem hesitar exigiu aos curadores que usassem o quanto fosse preciso de seu próprio sangue numa transfusão para Mewosek, e realmente, a quantia necessária passou do limite do que qualquer felin normal poderia ter doado, mas isso não se mostrou problema para um semideus.

De fato, acreditava-se que se não fosse a capacidade regenerativa das células do Lorde das Trevas inseridas em seu organismo, nada teria salvado Mewosek naquela fatídica noite.

Devimyuu o olhou atravessado; o corte em seu belo rosto já desaparecia, como se nunca houvesse se machucado.

- E se tiver sido? O que é que tem?

- Tem que meu pressentimento não falhou, e há mesmo algo de muito errado com o senhor, majestade. - Respondeu o Chanceler, cruzando os braços e com o tom de voz mais sério.

O Lorde das Trevas apenas se virou parcialmente e bufou.

- E por acaso existe alguma coisa de certo na droga da minha vida?! - ele ralhou, desabafando.

- Eu posso mencionar três, que o senhor mesmo fez...

Devimyuu sabia que Mewosek se referia aos seus filhotes. E também sabia que o Chanceler tinha razão. No entanto, a menção a eles apenas fez o coração do rei sombrio pesar mais, refletindo que talvez ele fosse o que não havia de certo na vida de suas crias. Contudo, se era assim, estava ciente que somente ele mesmo poderia consertar tal falha.

Não havia tempo para lamentos, apenas para atitudes. Sendo assim, se virou para seu leal parceiro, com um semblante sério e olhar implacável. Se deixar abalar era para os fracos, e agora o Lorde das Trevas acabava de recuperar sua postura imponente.

- Mewosek, irei para o Pátio das Invocações. Tenho um ritual para executar.

- Suponho que o senhor irá acessar o Oráculo de Hecatta pra que tenha uma revelação do item que precisa para usar contra o rei supremo dos puros, não é?

Após quase duas décadas acompanhando de perto a magia e habilidades incontestáveis do Lorde das Trevas, não era de se surpreender que Mewosék já estivesse familiarizado até mesmo com os rituais mais complexos que seu lorde realizava, e que agora estavam diretamente ligados com a concretização de seu famigerado plano.

- Exatamente. Devo demorar, portanto não revele meu paradeiro e não deixe que ninguém me perturbe.

***

Enquanto isso, há pouco os gêmeos ainda estavam na sala de estudos, até que o irmão fantasma de repente começou a apressar Mewleficent para que ela terminasse a poção e deixassem a sala o mais rápido possível, pois estava com uma sensação ruim.

Nem mesmo Mewdarthe pôde ver a mão demoníaca aterradora que se manifestou em incógnito para ameaçar Mewleficent, no entanto, como um espírito, o príncipe percebeu que havia algo errado.

Depois de toda a insistência dele, Mewleficent de fato se apressou temendo que a sensação do gêmeo pudesse se tratar da Ceifeira vindo buscá-lo, portanto, achou melhor dar ouvidos.

Agora os dois já se encontravam se sentindo seguros no quarto da princesa, no palácio do pai.

- Quero só ver a cara da lady Mewséfone quando eu mostrar a poção pronta e conjurar um feitiço perfeito do Manto da Invisibilidade! Eu tô muito empolgada pra próxima aula! - exclamou a princesa, colocando o vidro com a poção pronta sobre a cômoda, ao lado dos livros de magia que usaria no dia seguinte.

- E não é só pra aula que você devia estar empolgada, mana. - Mewdarthe tinha um maligno olhar travesso no rosto. - Já pensou em quantas coisas maneiras pode aprontar sabendo esse feitiço?!

Mewleficent mostrou um olhar idêntico ao refletir sobre o leque de possibilidades que se abriria para ela se estivesse invisível.

- Hmm... Estou começando a pensar e me parece uma proposta interessante... Mia-haha!

- A gente podia entrar no quarto do Mewosek e aprontar uma com ele, tipo lançar o feitiço das cobras nele enquanto ele dorme! Imagina só ele acordando numa cama cheia de serpentes e a gente lá assistindo! Seria irado, mwahahaha!

A assustadora risada maléfica de Mewdarthe realmente era digna de um Príncipe das Trevas fantasma.

- Isso até seria divertido, mas eu tô pensando em algo muito mais legal, maninho.

Mewleficent tinha uma expressão adoravelmente diabólica no rosto. A menina planejava algo grande.

- Opa! E o que é?

- A gente finalmente podia dar uma espiada no Santuário das Sombras! Quer dizer, eu lembro que entrávamos lá quando éramos pequenos, por que não podemos mais? Eu quero ver o que o papai tanto esconde! Se eu estiver invisível, nem os olhos enfeitiçados que ele coloca pra vigiar vão me perceber!

- Mas tem o feitiço que ele usa pra trancar a porta, esqueceu? - argumentou o fantasma.

Mewleficent sorriu malevolamente.

- E você esqueceu que agora temos um selo mágico que destranca portas, Darthe-nii?

Por um momento, Mewdarthe realmente se esqueceu do selo mágico que a irmã surrupiou de Mewnita.

- Miai, caramba! E você acha que vai funcionar lá também?!

- Podemos descobrir. E aí, oniisan, você topa?!

- Demorou, mana! Eu sempre quis saber se tem alguma coisa de diferente naquela sala! Eu bem que podia ter atravessado a parede pra descobrir, mas não teria graça nenhuma ver tudo sem você lá!

- Aww, Darthe! Você é o melhor irmão de todos! Se eu pudesse, te daria um abraço!

- Heh, sou mesmo. Mas o que estamos esperando? Bora invadir a sala de magia do papai!

Os gêmeos travessos estavam empolgados com o plano. Mewlef dividiu a poção, preparando-se para beber metade dela. Tapou o focinho e virou tudo de uma vez. Poções mágicas geralmente não tinham um gosto bom. A poção da transparência parecia água densa. Tinha gosto de gel de cabelo e limo, com mais alguma coisa que Mewleficent nem conseguia identificar.

Seria uma visita rápida ao Santuário das Sombras, pois cada 10ml ingeridos da poção forneciam dez minutos de invisibilidade, e a princesa tinha bebido o suficiente para pouco mais de meia hora. Não aguentaria tomar muito mais do que aquilo e também precisava guardar um tanto da poção para a aula do dia seguinte.

Restava recitar as palavras do encantamento, conjurando sua varinha, para se tornar invisível e, a partir daí, o tempo limite de sua invisibilidade começaria a contar. Portanto, a princesa só faria isso quando já estivessem próximos do corredor que levava até o Santuário.

A princesa e o irmão fantasma seguiram com cuidado, voltando para a ala norte. Não encontraram com Devimyuu no caminho, pois ele estava do outro lado do território do palácio, no dito Pátio das Invocações.

"Que sorte! Papai não está, a barra tá limpa!", disse Mewlef mentalmente para o irmão, enquanto atravessava correndo a ala para tomar o elevador que a levaria para o andar das torres.

Chegaram no último andar. A porta do elevador se abriu de frente para o hall que levava ao Santuário das Sombras. Mesmo havendo energia elétrica, apenas este corredor era curiosamente iluminado por archotes em nichos nas paredes. As chamas do fogo vermelho colaboravam para um aspecto nefasto, criando danças de sombras espectrais pelas paredes e chão.

Todavia, isso não assustaria uma princesa sombria que estava sempre em companhia de um fantasma. Mewleficent saiu do elevador, colocou-se em posição e materializou sua varinha mágica. Ela tinha decorado as palavras que conjuravam o feitiço do Manto da Invisibilidade.

Respirando fundo e se concentrando, sentiu cada partícula do poder mágico que fluía por seu corpo despertar. Em seguida, ergueu a varinha para o alto, girando-a com elegância sobre sua cabeça.

- Alba Invisibilia Cooverieti-me!

Ao invocar o encantamento, a princesa sentiu um arrepio parecido ao frio na barriga de quando ia muito alto no balanço do jardim, porém pelo corpo todo. O cristal na ponta da varinha brilhou e este brilho se tornou uma energia pura que a rodeou por completo, como um sopro de vento em espiral. Quando tudo acabou, Mewleficent tentou olhar para seus braços e pernas, mas não conseguia ver nada. Estava realmente invisível.

- Mia-há! Deu certo, Darthe! Vamos!

O irmão fantasma a seguiu, enquanto ela corria em direção ao Santuário. Ele não podia ver o corpo da irmã, mas continuava enxergando sua aura normalmente. Como espírito, sempre foi capaz de enxergá-la.

Ambos chegaram diante da porta revestida de cristal negro em forma prismal. Faltava ver se o selo mágico funcionaria. Talvez o plano falhasse e aquele selo não fosse o bastante para destrancar a porta, mas só a emoção de chegarem até ali já faria valer a aventura.

Mewlef encostou o selo na porta. Não conseguiu segurar um gritinho leve quando linhas luminosas verdes emanaram do selo e delinearam os sulcos da porta. A maçaneta em forma de um aro de ouro girou sozinha, reverberando um som semelhante a um cofre se abrindo. No entanto, parou de repente, como se a abertura se interrompesse. A magia que trancava o Santuário das Sombras era muito poderosa e aquele selo só conseguiu abrir momentaneamente um terço da porta.

- Só abriu um pedaço, mas acho que eu caibo nesse vão - disse ela, analisando o tamanho da abertura.

Um felin adulto jamais conseguiria passar por aquele espaço apertado, mas por sorte, além de ser filhote, Mewleficent era um pouco menor do que deveria para a idade. Além disso, a estrutura óssea dos felins possuía certa maleabilidade que lhes permitia se espremer para caber em passagens estreitas ou espaços apertados.

A princesa invisível passou facilmente pela abertura. Assim que o fez, a porta voltou a se fechar bem atrás dela, trancando-se novamente por magia. Por pouco não teria dado tempo de atravessar.

Diferente do corredor, a sala do Santuário era iluminada por um pouco de luz elétrica, que procedia das lâmpadas de um lustre mórbido preso ao teto. Haviam alguns candelabros em nichos das paredes, com velas encantadas que não derretiam e só podiam ser apagadas com magia.

Mewleficent e Mewdarthe olhavam ao redor cuidadosamente. Suas vagas lembranças dos momentos em que estiveram ali quando menores não eram muito nítidas, então tudo parecia novo.

O espaço era enorme, equivalente a quase toda a sala do trono. Realmente, o lugar digno de um rei bruxo praticar suas mais poderosas magias, com prateleiras repletas de antigos livros de feitiçaria, ingredientes raros para feitiços e frascos com poções que ela sequer sabia que existiam. A princesa observava tudo deslumbrada, já imaginando que poderosas bruxarias milenares aqueles livros guardariam e como seria invocar cada um daqueles feitiços.

Tal como o pai quando criança, Mewleficente mal podia ver um livro de feitiços que já queria devorá-lo. Sendo assim, correu direto até as prateleiras, observando extasiada a lambada de cada um e observando os títulos daqueles que os tinham gravados. Se tivesse que apanhar um para começar a praticar, certamente seria uma escolha difícil.

Já Mewdarthe dirigiu-se levitando para outra parte do grande salão, uma onde lembrava haver uma porta que levava para os aposentos que o pai possuía dentro da sala, como uma cripta oculta. O falecido príncipe se lembrava de suas inúmeras noites sem sono, quando o pai dava uma volta com ele por todo o palácio, sendo seu quarto do santúario a última parada, como um refúgio secreto. Havia algo que Mewdarthe gostava de observar no passado, e queria ver se o mesmo ainda se encontrava ali.

Não demorou a localizar a porta, afinal, não ficava exatamente escondida ou algo do tipo. A única diferença para uma porta comum é que um par de estátuas de duas grandes gárgulas negras e intimidantes guardavam a entrada robusta com um feitiço. Porém, magias de selamento de portas eram irrelevantes para um fantasma, sendo assim, Mewdarthe não teve problemas em atravessar a parede e entrar.

Estava tudo como sua memória infantil se recordava. A enorme e luxuosa cama de Devimyuu no centro, com dosséis imponentes feitos de carvalho negro e incrustados com ébano e grandes partes de ouro. Assim como os lençóis da mais pura seda em preto vívido e os travesseiros extremamente macios a combinar com eles.

E finalmente, de frente para a cama do rei, o adorno que Mewdarthe mais queria ver. Cobrindo dois terços da parede de frente, uma exuberante moldura de puro ouro ornamentado e incrustada com inúmeros rubis, opalas e diamantes negros em cada sulco dourado entalhado guardava a pintura de uma bela fêmea, de pelagem alva descorada, cabelos longos que traziam um elegante degradê entre o rubro cor de vinho para um violeta azulado nas pontas. Os olhos dela eram carmesim, num vermelho tão vívido quanto as pedras de rubi que adornavam a pintura, e combinavam com seus lábios escarlate como um beijo de sangue. E sob estes lábios, num sorriso discreto, destacavam-se duas chamativas e mortais presas de vampira.

O príncipe fantasma se aproximou do quadro e sorriu. Se ainda respirasse, certamente teria suspirado diante dela. Sabia que aquela era a fêmea que seu pai sempre disse ser a única que sempre amou, e a felin que ele costumava dizer ao filho quando vivo ser sua "mãe em outro mundo". E mesmo que não soubesse muito bem porquê, por ainda ser jovem demais para compreender do que seus poderes tentavam lhe mostrar, Mewdarthe sempre se sentiu mais conectado àquela imagem concebida em tinta do que fêmea que deu à luz a ele e sua irmã.

- Oi mamãe! Há quanto tempo! Eu tava com saudades, heh. Eu podia já ter entrado aqui, mas não quis vir ao santuário do papai sem a Lelef. Aconteceram uma coisa, e bem... eu sou um fantasma agora. O papai sempre disse que não casou com você pra ser nossa mãe de verdade nesse mundo porque vocês se separam há muito tempo e você teve que ficar em outro. Então esses dias eu tava pensando se na verdade você também não poderia ser um fantasma, e por isso não puderam ficar juntos. Se for, e você não estiver presa no Entremundus vigiada por aquelas Ceifeiras chatas, você podia dar uma aparecida pra gente conversar. Eu ia gostar, seria legal te conhecer de verdade.

"Darthe!" - O príncipe ouviu a irmã gêmea chamar num grito abafado pelas grossas paredes que dividiam o quarto do resto da câmara.

- Bom, eu tenho que ir, mas agora que cumpri minha promessa de esperar a Mewlef pra entrar aqui de novo, eu volto logo pra te ver! Então até mais, mamãe vampira!

Com isso, o filhote espírito deixou o quarto, se sentido realizado por ter cumprido parte do seu objetivo próprio em adentrar no Santuário secreto do pai novamente. E mesmo que não tivesse certeza se a bela felin do quadro realmente fosse um fantasma como ele, guardava a esperançosa sensação de que de qualquer forma, conheceria aquela que escolheu para ser sua mãe algum dia.

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