19 - Corvilhete


O momento entre o Lorde das Trevas e a filha infelizmente foi brevemente interrompido por Mewosek, que de repente apareceu na porta envidraçada da estufa.

Não importava em que parte distante do palácio o rei estivesse, o chanceler sempre conseguia encontrá-lo graças ao olfato extremamente apurado por sua parte como biotipo Exótico; embora ajudasse o fato do aroma cítrico e amadeirado que Devimyuu exalava ser tentadoramente marcante, para se dizer o mínimo.

- Majestade? Sinto interromper, mas trago um certo... assunto de seu interesse. - O chanceler segurava algo na mão direita, oculta atrás das costas.

O Rei Reverso virou-se para a filha.

- Bem, eu tenho que ir... Mas ouça, bruxinha, sei que não deve ser fácil pra você assimilar ou até mesmo aceitar tudo que eu disse, mas espero que tenha entendido pelo menos um pouco os motivos da minha decisão, e que isso ajude você a não ficar tão chateada a respeito, filha. - Devimyuu explicou por fim, se levantando e colocando Mewleficent de seu colo de volta na própria cadeira.

Mewleficent baixou o olhar. Ela não sabia o que dizer, e mesmo que soubesse, supunha que de nada adiantaria. Sendo assim, a menina apenas assentiu. No entanto, antes que Devimyuu saísse, a pequena segurou em seu braço, o puxando pela manga de seda do kimono real que vestia.

- Eu entendo o que me disse, papai. Mas mesmo assim, eu prometo que vou ficar muito mais forte, como você. Assim, o Mewhades não vai precisar enfrentar todo o perigo sozinho pra me proteger.

Devimyuu apenas lhe demonstrou um meio sorriso, e passou suavemente a mão sobre uma mecha dos cabelos dela, a acarinhando. O Lorde das Trevas estava prestes a ir, porém, quando estava quase saindo, lembrou-se de uma última coisa que fazia parte de suas tarefas como pai.

- Falando em ficar mais forte, Mewlef... - ele disse ao parar o caminhar e se virar para ela - Você tem aulas de bruxaria amanhã, portanto, não se esqueça de fazer suas lições.

Mewleficent não tinha se esquecido, mas estava enrolando ao máximo para que quando fosse cobrada pelo pai, pedisse que fizesse as lições com ela. Devimyuu costumava ensinar magia aos gêmeos desde quando seus poderes começaram a se manifestar aos cinco anos de idade, porém, desde a perda de Mewdarthe e a associada falta de tempo com Mewleficent, Devimyuu tinha encarregado temporariamente os ensinamentos da princesa a uma bruxa de sua confiança, que pertenceu a seu antigo coven.

- Eu tentei fazer a lição mas não entendi. Acho que preciso da sua ajuda, papai...

A menina usou de um tom manhoso e irresistivelmente dócil para dar mais força ao seu apelo. Ela se balançava suavemente de um lado para o outro, com as mãos para trás e um inocente olhar pidão.

Devimyuu suspirou com um olhar culpado.

- Sinto muito, filha, mas eu não posso agora. Mas, se realmente não entendeu, não precisa fazer sozinha. Peça ajuda a Mewséfone quando ela vier amanhã. - o rei disse, se referindo a bruxa instrutora da princesa.

Mewleficent já imaginava que o pai responderia algo do tipo, mas não estava disposta a desistir, principalmente depois do breve momento agradável que acabara de ter com ele. Foi muito bom; embora apenas uma fração do que costumava ser antes de tudo ter mudado, mas ainda assim, melhor do que ela esperava. E tudo que a filhote queria era ter só mais um pouco de tempo com o pai.

- Mas não adianta, papai! Sempre que deixa lições de casa, mesmo que eu pergunte, ela não me explica nada! - exclamou a filhote, soando extremamente dramática.

- Como assim não explica?! - Devimyuu questionou, inconformado. - Esse é o trabalho dela! Pra que estou pagando essa ordinária, afinal?!

Mewleficent encolheu os ombros, por dentro um pouco satisfeita ao pensar que sua instrutora estivesse possivelmente encrencada. A filhote não tinha nada de pessoal contra ela, mas imaginava que se o pai estivesse insatisfeito com o trabalho de Mewséfone, talvez ele mesmo voltasse a ensiná-la.

- Ela diz que bruxas competentes pesquisam e que só feiticeiras fracas precisam de explicações pra tudo... Ela quer que eu faça o encanto da invisibilidade. Eu já pesquisei sobre ele, mas mesmo assim não tá dando certo. Você é o bruxo mais poderoso do mundo, vai ser fácil pra você me explicar. Por favor, papai! - a menina suplicou manhosa.

A face de Devimyuu falhou em ocultar que se sentia dividido. Ele olhou indeciso para a filha e em seguida para Mewosek, que parecia um tanto apreensivo sobre o assunto que viera tratar. Mais do que tudo, Devimyuu gostaria que assim como antes, pudesse dar prioridade aos seus filhos e a tudo mais que ele considerava importante, não Ghanog. No entanto, sabia que não era possível, não ainda, pelo próprio bem deles. Estava ciente do que estava arriscando caso contrariasse o que lhe fora imposto, e sabia que os termos do que se dispôs a fazer eram inegociáveis.

- Agora realmente não será possível, mas verei o que posso fazer. Até lá, estude os outros tópicos e por favor se comporte, filha. Nos vemos depois.

Sendo assim, ele deixou a estufa partindo com o chanceler ao lado. Enquanto ambos seguiam pelos amplos e pouco iluminados corredores, Mewosek notou a contradição estampada no rosto de seu lorde, no entanto, sabiamente optou por não tocar nesse assunto.

- Então, milorde, há alguns minutos o orbe magical que pediu que eu vigiasse ficou um tanto... uhh... Veja pelo senhor mesmo.

Mewosek ergueu a mão que mantinha atrás das costas. Sobre a palma dela, acompanhando cada movimento que o felin fazia, flutuava um pequeno orbe translúcido, semelhante a uma bola de cristal, mas três vezes menor que o habitual.

Um brilho prateado misto com tons de vermelho vivo circundava o orbe composto de magia selada numa lacrima, e o brilho oscilava pulsante, como se o interior do orbe piscasse.

- Acho que é uma "chamada" pro senhor - disse o chanceler, que sabia que os orbes magicais eram usados como um meio de comunicação entre feiticeiros de grande poder.

Ambos pararam de caminhar. Devimyuu esticou a mão e o mini orbe flutuou até sua palma aberta, triplicando de tamanho assim que estava sob o poder dele.

- Ímpia majestade. Trago excelentes notícias para lhe comunicar - disse uma voz feminina, ecoando da esfera.

O rei nefasto não esboçou nenhuma reação adversa e apenas olhou para Mewosek, que lhe assentiu. Devimyuu fechou a palma da mão, pressionando o dedão entre os outros dedos e o orbe rapidamente desapareceu como um holograma distorcido.

Seguiram até à sala do trono, onde Devimyuu ordenou que a guarda se retirasse. As portas duplas automáticas feitas de aço duarfino - que era de fina espessura como vidro, porém quase tão resistente como um diamante - se fecharam assim que a horda de quatro pares de guardas se retirou, deixando somente o rei e seu braço direito.

Devimyuu se sentou no trono e Mewosek em seu assento ao lado. O lorde arquemônio abriu a palma da mão e o orbe magical surgiu novamente, triplicando de tamanho uma vez mais.

Agora, dentre o interior neblinoso, o rosto de uma fêmea reversa apareceu no centro do orbe. Ela aparentava ser mais velha, usava maquiagem pesada e tinha um olhar imponente e maquiavélico. Sua aparência inspirava todo o poder que detinha como a mais poderosa bruxa e atual líder de Mahojtani, o clã dos biotipos mágicos. Ela era uma súdita devotada e aliada poderosa do Lorde das Trevas desde quando o conheceu aos dezessete anos, e o tornou membro da seleta guilda de bruxos da qual foi mestra.

- O que tem a me dizer, Mewzhebere? - indagou o rei para a bruxa.

- Só gostaria de ter o prazer de lhe informar que já estou em posse dos itens que tinha solicitado; aqueles necessários para a invocação do Proffanattus, meu rei - afirmou a feiticeira.

- Ótimo. DarMage está com a réplica da receita do feitiço original, mas ela logo estará em minhas mãos. Assim que eu tiver tudo que preciso, eu a chamarei para realização da etapa final.

- Excelente, majestade, no entanto... - a felin fez uma pausa a considerar que pudesse ser um tanto audaciosa no que estava prestes a perguntar, contudo, não hesitou. Afinal, foi graças a sua audácia que havia chegado onde estava - Peço que perdoe minha insolência, mas eu preciso perguntar em que ponto estamos quanto ao último item necessário. Sei que é algo praticamente impossível de se conseguir, mas se tem alguém que pode, é o senhor como o escolhido do Soberano Ghanog, porém, eu gostaria de saber como.

Devimyuu cerrou as sobrancelhas numa expressão irritada e descontente.

- Sim, somente eu posso consegui-lo, portanto, deixe que eu me preocupo com isso! Não tente se intrometer em assuntos que não lhe dizem respeito, Mewzhebere!

- Claro, sua majestade. Peço as mais sinceras desculpas, eu apenas quis...

- Cale-se. - Ele soou imperativo - Se já disse o que precisava, não desperdice mais meu tempo. Apenas fique atenta ao seu orbe para quando chegar a hora - ordenou o rei reverso.

Do outro lado da esfera encantada, Mewzhebere assentiu, inclinando a cabeça como uma forma de reverência.

- Permanecerei o tempo todo com ele, meu Lorde Arquemônio.

Deixando nítida sua impaciência, Devimyuu nada respondeu e apenas fechou a palma da mão, desmaterializando o orbe mágico e dando a conversa por encerrada.

Devimyuu se levantou do trono, e após deixar Mewosek encarregado de tudo ao seu comando no palácio, como de costume, se teletransportou de volta para o Santuário das Sombras. Tinha muito o que fazer e esperava que mais nada o interrompesse, do contrário, jurava que jogaria uma praga em alguém. Só precisava de mais uma coisa antes que pudesse se devotar totalmente a próxima etapa do plano de Ghanog. Ele estava devendo algo a uma certa princesinha...

Nesse meio tempo, Mewleficent já se encontrava na sala de estudos, onde concluía suas demais lições sobre encantamentos e história das maldições. Ela já havia feito a maioria, pois gostava de ser uma aluna exemplar no quesito de aprendizagem do mesmo jeito que soube que seu pai era. Sendo assim, não demorou a terminar a leitura dos três capítulos que a aguardavam para a próxima aula, deixando de fora apenas o famigerado encanto da invisibilidade que não sabia fazer.

Estava prestes a deixar a sala, pronta para propor alguma brincadeira com Mewdarthe, quando ouviu o que pareciam ser pequenas batidas agudas em um dos vitrais das janelas.

- Lef, olha lá! - o irmão fantasma exclamou, apontando em direção a janela.

Empoleirado no peitoral, havia um encantador corvo de papel vivo, obviamente enfeitiçado, que parecia estar olhando direto para Mewleficent.

- É do papai! - A filhote exclamou empolgada, rapidamente se dirigindo até a janela de estilo catedral e empurrando a parte do vitral com cuidado. Ela esticou a mão para o pássaro de dobradura, e assim que pousou em sua palma, o mesmo magicamente se desfez no mesmo instante, se tornando uma folha lisa de papel negro com escritos num azul metálico brilhante, trazendo a caligrafia de Devim.


"Querida filha,

O feitiço de invisibilidade que você precisa fazer requer o preparo de uma poção antes de recitar o encantamento. Somente um dos dois não funcionará. Estou lhe enviando um livro que ensina como prepará-la. Creio que com minhas instruções você não terá dificuldades.

Beijos, papai."

A princesa suspirou baixinho, levemente consternada. Mewdarthe logo entendeu o motivo da reação da irmã gêmea.

- Não dá pra dizer que o papis não te ajudou... - disse ele para amenizar.

- Mas quando o papai disse que ia ver se me ajudava na lição, eu não achei que fosse assim. Não era exatamente isso que eu queria...

- Ah, maninha, pelo menos ele foi legal, fazia tempo que ele não te mandava um corvilhete. - ele argumentou, tentando apaziguar.

Mewleficent pensou um pouco e decidiu também ver o melhor lado da situação.

- É... o papai consegue ser bem fofo quando quer - ela acabou esboçando um sorriso singelo - Mas cadê o livro que ele disse que ia mandar?

Quase instantaneamente ao momento em que fez a pergunta, um círculo de transferência mágico se iluminou em tons de roxo sobre a mesa de carvalho esculpida onde há pouco Mewleficent estudava. A manifestação da magia chamou sua atenção, e quando a princesa se virou, pôde ver um pilar de energia também em tons de roxo se erguendo do centro do círculo, desaparecendo tão rápido e silenciosamente quanto surgiu, deixando somente algumas pequenas centelhas remanescentes do efeito da magia. Ali estava o livro com as páginas abertas sobre o círculo, que agora lentamente desaparecia como uma poeira brilhante levada por uma brisa.

- Miuou, isso é o que eu chamo de timing! - Exclamou o gêmeo fantasma, impressionado.

Mewleficent foi até a mesa averiguar o livro ainda com o bilhete na mão.

- É a receita da poção que o papai disse que eu ia precisar. Ele fez anotações aqui de como fazer tudo certinho!

Disse a menina, enquanto virava as páginas contendo todas as instruções que precisaria.

- Se pensar bem, acho que isso meio que conta como ele mesmo te ensinando, né? - Sugeriu Mewdarthe, também se aproximando para olhar.

Mewleficent sorriu com uma expressão no rosto de quem acabava de ter uma ideia. Ela apanhou seu próprio grimório de capa violeta com pedras de ametista e arrancou uma das folhas. A colocou esticada sobre a mesa e pegou sua varinha mágica.

Pouco tempo depois, no Santuário das Sombras, Devimyuu ouviu um grasnado ecoando no parapeito da única e grande janela da sala na torre. Ele se aproximou para olhar, e ali estava outro pequeno corvo de origami, porém, invés de negro sutilmente lilás.

Concluindo que deveria ser uma resposta de Mewleficent, o rei abriu o vitral e esticou a mão para a ave de papel. A mesma logo se transformou na mensagem da filha.

"Oi papai!

Obrigada por me ajudar com a lição, o livro que você mandou por magia já tá comigo e com as suas anotações eu entendi tudo direitinho. Já tô até fazendo a poção, você pode vir ver se fiz certo depois? Se você estiver ocupado, tudo bem, mas se puder vir vou ficar muito feliz!

Te amo, beijinhos!

Mewlef."

- Aww, minha princesinha... - Devim acabou falando consigo mesmo, deixando escapar seu verdadeiro lado de pai coruja emotivo, não podendo evitar o sorriso bobo e olhar derretido em seu rosto.

Ele guardou o bilhete de Mewleficent dentro de seu próprio grimório, onde junto estava um velho trevo negro de cinco folhas, de equivalente valor sentimental*. No entanto, assim que fechou o livro, o acolhedor momento de contentamento foi substituído por uma sensação sufocante, crescente, tal como a pressão espiritual no lugar, que logo ficou impregnado por um forte cheiro de enxofre.

Todos os instintos de alerta presentes no corpo de Devimyuu reagiram. Com as pupilas contraídas, cauda a ricochetear e tensão em cada músculo, ele se virou em direção ao Sombríage, sabendo que a fonte de tal manifestação só poderia vir do espelho infernal.

E precisamente, foi dali que uma voz gutural de timbre demoníaco proferiu as seguintes palavras:

"Terceiro Lorde das Trevas, o infame escolhido desleal. Precisamos ter uma certa conversa..."


* Veja em Crônicas de Mysticat: Herdeiro Sombrio, capítulo 18.

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