17 - O Meio do Caminho
Enquanto isso, o espírito do príncipe se encontrava num lugar onde tudo que conseguia ver era uma infinita cortina de névoa etérea ao seu redor. Ali era o local da passagem, o Véu entre o mundo espiritual e o físico - uma ponte entre os planos.
Mewdarthe sabia que infelizmente não estava seguro no receptáculo da aura de sua irmã. Já havia estado ali pelo menos uma vez. O bastante para marcá-lo para sempre: o dia em que sua vida covardemente foi tirada.
O pior para Mewdarthe era nem saber ao certo como isso aconteceu. Suas últimas memórias eram nebulosas e incertas.
Ele se lembrava de estar com medo, muito medo - sentia que havia algo o perseguindo. Era um monstro. Mewdarthe tinha certeza de que estava lá. Ele o viu, mesmo no escuro. E o pequeno príncipe - então com apenas seis anos - odiava o escuro, porque era sempre onde os monstros apareciam.
Contudo, na maioria das vezes, Mewdarthe não tinha medo, porque seu pai sempre estava lá para protegê-lo. Bastava chamar o nome dele e os monstros iam embora.
No entanto, não foi o que aconteceu daquela vez. Seu pai estava muito longe, e por mais que o príncipe tenha o chamado, ele não pôde vir salvá-lo. Mewdarthe foi ficando com cada vez mais medo, até que tudo se apagou por um momento. Quando abriu os olhos novamente, estava fora do escuro. Numa cama, no quarto onde ele e a irmã estavam ficando até que o pai deles voltasse.
Ele se lembrava de virar para o lado e ver Mewleficent, abraçada com ele na cama. Ela segurava o caleidoscópio mágico de Darthe. Cada um dos gêmeos tinha o seu, e a menina trouxe o do irmão na esperança de que ele se sentisse melhor quando visse a magia.
Mewdarthe queria ter olhado, queria chamar a gêmea, se levantar e sair dali. Para bem longe, de volta ao palácio do pai. Mas ele não conseguia; seu corpo estava fraco, quase incapaz de se mover, sentia dores, e estava quente, tão quente que tudo que Mewdarthe se lembrava de ter conseguido fazer foi fechar os olhos outra vez.
Era tudo muito confuso, ele ouvia vozes e sentia que tocavam em sua testa, em seguida encostando algo molhado nela. E de tempos em tempos, colocavam algo em sua boca com uma colher. Tinha um gosto amargo, Mewdarthe queria cuspir mas se sentia fraco até para isso. "Quero o papai" era tudo em que conseguia pensar.
Até que mais uma vez abriu os olhos, quando vieram tocar na testa dele de novo. Era uma fêmea adulta, e usava a roupa das babás. Ela estava segurando uma colher numa mão com um frasco de vidro na outra, e começou a chamar alguém ao ver que o príncipe finalmente acordou. E então, ela apareceu; Mewlith.
Mewdarthe se lembrava perfeitamente de ter ficado apavorado. Ele queria correr de todas as formas, mesmo que mal tivesse forças para se mexer. Sempre sentiu algo estranho a respeito da mãe, por isso não gostava dela. Mas agora estava com medo, porque sabia que foi ela quem o deixou no escuro, ela quem chamou o monstro. Não podendo fazer nada, ele apenas começou a chorar, e gritar o mais alto que podia chamando seu pai para salvá-lo.
A felin vestida de babá pareceu ficar brava, mas não com ele, e sim com Mewlith.
"O que a senhora fez ao príncipe?!" Ele ouvia a voz dela dizer. Mas não conseguia entender muito bem, seu corpo estava quente de novo e ele só queria fechar os olhos.
"Não seja ridícula, sua insolente! É só outra alucinação da febre!"
Aquela era a voz de Mewlith. Seus gritos lhe causaram mais medo, pois ela tinha gritado muito antes de bater em seu rosto. Mewdarthe se lembrava que doeu e por isso a arranhou de volta, e foi aí que ela o jogou no escuro.
"Não é! Você fez alguma coisa! Vou chamar lady Silmyuu e farei questão de contar tudo ao rei quando ele retornar!" A babá continuava brava.
"Cale a boca! Você não vai fazer nada!" Mewlith gritava ainda mais alto.
Ficando com mais medo, Mewdarthe conseguiu forças o suficiente para puxar a coberta até a cabeça e se esconder debaixo dela. Agarrou com força o caleidoscópio mágico, se perguntando onde estava Mewleficent.
Então ouviu mais gritos, e houve cheiro de fumaça. Estava quente, mas agora não se tratava só de seu corpo, o calor vinha do lado de fora, no quarto, tão insuportável que quase o fazia desmaiar. Então os gritos da babá pararam, e ele sentiu um cheiro muito forte de algo queimado. Seria comida? Por algum motivo lhe lembrava a vez que o cozinheiro deixou queimar a carne do jantar, mas o cheiro era mais forte, estranho.
Mewdarthe queria entender o que estava acontecendo, mas estava muito fraco. Só queria dormir de novo, e quem sabe tudo melhorasse.
Ele estava dormindo, talvez sonhando, quando de repente algo o acordou. Ele não conseguia respirar. Achou que fosse a coberta de sobre a cabeça, mas quando tentou tirar, sentiu algo apertado fortemente contra seu rosto. Era grande, mas apesar de macio, machucava, pois pressionava sua boca e focinho. Ele tentou se debater mas não tinha forças. O ar não estava vindo, seus pequenos pulmões lutavam mas não conseguiam fazer nada. A sensação era horrível, Mewdarthe só queria que acabasse, queria conseguir sentir o ar de novo, mas simplesmente não havia mais nenhum. Ele começou a sentir frio, seu corpo não respondia, Mewdarthe mal conseguia senti-lo. E de repente, tudo parou.
E então ele estava naquele lugar. O mesmo onde se encontrava nesse exato momento. Mewdarthe agora entendia que tinha morrido naquele dia e ido pela primeira vez para o Véu. Ele acabava de rever as últimas lembranças de seus momentos finais. No entanto, ainda não entendia o que de fato causou sua morte. Porém, isso não importava. Se ele estava no meio do Véu, era porque a Ceifeira tinha aberto a passagem. Tinha que sair dali e fugir dela como da primeira vez. Contudo, ao tentar se mover, se deparou com algo que não estava ali antes.
Presos em seus pulsos, haviam três pares de longas correntes que pareciam feitas de uma névoa fúlgida, o ligando a uma estranha imagem de um triângulo aparecido sob seus pés no vácuo neblinoso. Símbolos estavam escritos em cada ponta dele. E como se isso não fosse o bastante, de um segundo para o outro, um par de correntes simplesmente se desfez, deixando o príncipe apenas com dois. E na ponta da base do triângulo onde há poucos instantes estava ligada, apeteceu uma palavra estranha que Mewdarthe não conseguiu ler. Ele queria muito entender o que tudo aquilo significava, mas não tinha tempo para isso.
A Ceifeira estava ali, bem diante dele, pronta para esticar sua mão esquelética e conduzi-lo até a carruagem do além ao final da passagem. Entretanto, ao ver a imagem do triângulo e as correntes que procediam dele, prendendo o espírito do garoto em seu centro, ela recuou a mão e também pareceu surpreendida, talvez até chocada.
- Pobre menino... O que fez para merecer isso? Eu lamento muito.
Mewdarthe até arregalou os olhos, curioso, pois não fazia ideia de que a Ceifeira podia falar. Mas isso era irrelevante, já que não tinha intenção alguma de tentar conversar com ela. Tinha que sair do Véu e voltar para o plano físico. Ele tentou se mover de novo, e ficou surpreso ao ver que o triângulo e as correntes se moviam com ele para onde quer que fosse.
- Eu lamento muito. - Disse a Ceifeira novamente.
- Lamenta o que? Me deixa voltar! Eu não vou atravessar com você de qualquer jeito, então tira essas correntes!
Exclamou o príncipe.
- Não fui eu quem as colocou. Isso é um ato proibido e covarde. Uma profanação. Sinto que tenham aprisionado seu espírito, pequena criança. É muito triste.
- Tá, tanto faz! Eu me livro disso quando voltar!
Disse Mewdarthe, que apesar de ter algumas perguntas para a Ceifeira, suprimiu sua curiosidade e se concentrou em tomar o caminho de volta para a saída do Véu.
- Mewdarthe Cidryanmew Mewcholas Nekohashi. Vida encerrada em seu sexto ano, centésimo quinto dia e vigésima primeira hora. - Mewdarthe parou de tentar fugir por um segundo, quando ouviu aqueles dados sobre ele. - Eu estou tentando ajudá-lo.
Disse a Ceifeira, por fim.
- Olha, eu sei que aparentemente eu meio que me descontrolei hoje. Mas eu já tô bem, eu consegui voltar ao normal e não vai acontecer de novo. Eu não sou uma assombração surtada, ainda lembro muito bem quem eu sou e tenho meu receptáculo, então pode esquecer porque não vou atravessar com você pra Além nenhum!
- Menino Mewdarthe, além deste sigilo cruel, ainda há muitas coisas que o prendem ao plano dos vivos. Minha designação aqui é tentar poupá-lo disso e conduzi-lo ao seu lugar de recompensa por ter partido uma alma inocente. Mas vejo que isso ainda não é possível, sendo assim, só me resta assistir enquanto mais uma vez você retorna. No entanto, devo avisá-lo de que isso não é uma abdicação. Eu estarei sempre por perto, e quando esse momento chegar, eu cumprirei o meu papel. E tenho certeza que dessa vez, você não irá se opor a isso.
- Pff! Até parece!
Sem olhar para trás, Mewdarthe atravessou a neblina etérea que dividia o meio do caminho. Ele estava de volta ao plano físico, no quarto de Mewleficent. Viu a irmã sentada na penteadeira, com um vestido todo cheio de frufrus, enquanto a dama de companhia Mewnita fazia um bonito penteado em seus cabelos.
A menina estava cabisbaixa, com os olhos fixos no nada, parecendo duas esferas de vidro marejados, deixando claro o esforço tremendo que fazia para segurar as lágrimas. Naquele mesmo instante, Mewdarthe soube que a gêmea deveria estar assim pela preocupação com ele, e não perdeu tempo em chamá-la.
"Mewle-chan!"
A princesa ergueu o rosto assim que ouviu sua voz, e toda a esperança que parecia ter fugido de seus olhos retornou.
- Tenho que ir ao toalete! - A filhote exclamou, dando um pequeno susto em Mewnita e saindo da banqueta num salto.
No banheiro da suíte, Mewdarthe enfim apareceu, fazendo a irmã quase derramar lágrimas de alegria. Se pudesse trocá-lo, lhe daria o abraço mais forte de todos.
- Darthe! Irmão! Você tá aqui! Você tá bem! Eu achei que dessa vez ela tinha te levado, fiquei muito preocupada!
- Que nada, dessa vez a gente até bateu um papo, hehe! Mas enfim, desculpa te fazer passar por isso, maninha. Mas pode ficar tranquila, você sabe que eu nunca vou deixar nada nem ninguém me tirar de você.
Mewleficent sorriu, sentiu seus olhos umedecerem e delicadamente os enxugou com uma das mãos.
- Sim, é verdade. Nós somos um, não é, irmão?
- E sempre vamos ser, irmãzinha.
Seguiu-se um momento de silêncio e contemplação entre os gêmeos que sorriam um para o outro. Seus olhares deixavam claro o amor e a união existente entre eles, sendo uma das razões porque nem a morte pôde separá-los.
- Olha, Darthe... Me desculpa ter te aborrecido falando da mamãe. Você pode ficar com a moça vampira do quadro como mãe se quiser, eu não vou mais brigar por isso, tá? É uma promessa.
A última coisa que Mewdarthe queria era pensar em sua mãe; fosse naquele momento ou em qualquer outro.
- Deixa isso pra lá, Lef, o assunto já morreu, não esquenta. Mas e aí, você já foi ver o papai? - Ele mudou de assunto o mais rápido que pôde.
- Ainda não, a Mewnita tava terminando de pentear o meu cabelo.
- Tendi. Então devia voltar. O papai sempre tá muito ocupado com alguma coisa, então se ele tá chamando, é melhor aproveitar.
Mewleficent queria ser otimista como Mewdarthe, porém, ainda estava um tanto desconfiada.
- Mas e se papai só for me dar outra bronca?
- Acho que não, se fosse isso, ele ia entrar aqui todo bravo como sempre, falar um monte e pronto. Não ia pedir pra te chamarem toda arrumada nem nada disso. Confia!
- Tá, espero que tenha razão...
Disse a princesa, finalmente saindo do banheiro e voltando para a dama de companhia terminar de aprontá-la, e finalmente, se sentindo um pouco mais empolgada por estar indo encontrar-se com o pai.
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