13 - O Segundo Príncipe


Devimyuu sabia exatamente o que precisava fazer para determinar qual seria o próximo passo na execução de seu plano. O momento sacro exigiria total concentração para que entrasse em transe. No entanto, foi interrompido antes mesmo de começar, ao ouvir o som abafado de uma voz chamar insistentemente através da porta selada do santuário.

O Lorde das Trevas estava começando a ficar possesso de raiva pelas constantes interrupções naquele dia. Largou as velas cerimoniais que tinha apanhado para dar início ao ritual, e irritado, caminhou até a porta.

Ele supunha que fosse Mewosek o importunando com algum assunto estúpido do palácio, já que era praticamente o único que tinha a permissão do rei de chegar perto do Santuário das Sombras. Os outros membros e servos da corte sequer sabiam onde o lugar ficava. Contudo, além do Chanceler, havia outra pessoa a quem era permitido o acesso não só ao Santuário, como a um contato íntimo e direto com o rei Arquemônio.

A impaciência e a raiva na face de Devimyuu deram lugar a uma expressão intrigada assim que fez com que a porta magicamente se abrisse.

Ali estava uma fêmea mais velha. Ela trajava um longo e elegante vestido social preto combinando com uma echarpe de seda caindo sobre os ombros, junto a um broche com emblema do brasão real. Seus cabelos castanhos estavam presos num coque formal perfeitamente alinhado, exceto por duas mechas soltas na testa entre os chifres retorcidos.

Sua expressão era séria e ao mesmo tempo aflita, com um bebê aos prantos em seus braços.

- Precisamos de ajuda - disse para o rei, que ainda os encarava intrigado, mas ao ver o filho chorando também se mostrou preocupado.

- O que está acontecendo?! - Devimyuu indagou.

- Sei que quando está aqui, você não quer ser incomodado - ela disse antes de tudo, não dando a chance de Devimyuu se queixar - Mas faz duas horas que as amas de leite estão tentando acalmá-lo, ele não mamou nem dormiu, e não para de chorar. Pode ser cólica ou uma presa que esteja nascendo e ele está irritado, não tenho certeza... Só sei que não aguentei mais deixar o coitadinho assim, então pensei que talvez uma daquelas suas poções mágicas pudesse ajudá-lo e vim ver se tinha alguma...

- Pronta não, mas faço uma agora.

O rei rapidamente deu espaço para que a fêmea entrasse, carregando o pequeno novo príncipe Mewhades em seus braços.

A felin em questão - Silmyuu Arin - era uma fêmea mais velha de biotipo Terrestre. Ela ocupava uma posição de destaque na corte de Devimyuu como governanta do palácio e tinha autoridade tanto para repassar ordens diretas do rei quanto para ditar as próprias regras.

Na época em que Devimyuu tomou o trono assassinando o antigo rei, ele libertou Silmyuu de sua condição escravizada de concubina e a tornou a intocável governanta de sua nova corte.

Quando o Lorde das Trevas era apenas um bebê, Silmyuu e a mãe dele eram prisioneiras do harém de Mewpester. As demais fêmeas de lá se viam como rivais, disputando a predileção daquele rei que apenas as tratava como meros objetos. Entretanto, Silmyuu e Renesmew - a mãe de Devimyuu - abominavam aquele monstro com todas as forças. Por isso, acabaram se tornando amigas mesmo naquele ambiente desfavorável. Silmyuu era a única em quem Renesmew confiava e pediu que aceitasse ser madrinha de seu filho e cuidasse de Devimyuu, caso algo acontecesse a ela um dia.

Após a trágica morte de Renésmew durante uma tentativa de fuga - assassinada pelo próprio Mewpester - Silmyuu cumpriu sua promessa e fez de tudo para cuidar de seu afilhado da melhor forma que pôde, após o garoto ter sido raptado de volta para o castelo de Mewpester 10 anos depois da fuga com a mãe.

Devimyuu reconhecia isso e tinha grande consideração por sua madrinha, mesmo em seus piores momentos de aparente frieza.

Silmyuu tentava sem sucesso acalmar o novo príncipe, o acalentando e balançando delicadamente em seus braços. Os miadinhos chorosos do pequeno continuavam a ecoar incessantemente pelo saguão, e seus olhinhos dourados idênticos aos olhos do pai até pareciam levemente inchados após uma manhã inteira de lágrimas.

- Devia segurá-lo um pouco, talvez isso ajude a acalmá-lo... - disse a madrinha do rei, que estava sempre tentando fazer com que Devimyuu se envolvesse com o filho caçula tanto quanto fez com seus primeiros filhotes. No entanto, as mesmas razões que acabaram o distanciando de Mewleficent afetavam sua aproximação com o bebê Mewhades. Devimyuu o amava, é claro, porém, ao seu ver, suas escolhas e certas circunstâncias tornavam impossível que ele voltasse a ser a mesma pessoa que costumava. E estava certo de que nunca conseguiria enquanto não consertasse tudo.

- Eu tenho que fazer a poção, Silmyuu. - o Lorde das Trevas disse apenas isso, enquanto de costas para ela, estava parado diante uma prateleiras repleta de frascos de ingredientes, escolhendo o que usar.

- Eu sei. É que você costumava fazer feitiços tranquilamente com... - A fêmea ia concluir a frase dizendo que Devimyuu costumava realizar feitiços com ambos os gêmeos em seus braços e parecia não ter dificuldade alguma nisso. Porém, no instante em que começou a falar, o rei se virou para ela, já sabendo como terminaria. A olhou direto nos olhos com as sobrancelhas cerradas; seu olhar trazia desaprovação e ao mesmo tempo dor. Percebendo o erro que estava prestes a cometer, Silmyuu preferiu se calar, desviando o rosto do olhar de Devimyuu.

Se não fosse pelo choro de Mewhades, restaria apenas um breve silêncio desconfortável, enquanto Silmyuu observava seu afilhado procurar entre os inúmeros recipientes das prateleiras. Havia frascos com diferentes líquidos, alguns negros e viscosos como lodo, e outros de aspecto límpido e cristalino feito água. Além de diversos potes de cerâmica antiga guardando o que pareciam ser ramos e sementes secas.

Enquanto buscava atentamente dentre cada um, Devimyuu parecia recitar mentalmente o que precisava, movendo os lábios em silêncio, como se repetisse a receita que conhecia de cabeça; uma que aprendeu ainda adolescente, nos tempos em viveu e treinou numa floresta sombria.

Silmyuu não fazia ideia do que cada um daqueles itens poderiam ser e menos ainda suas finalidades. Por isso, a aptidão de seu afilhado em usar magia para manuseá-los sempre a impressionou.

Devimyuu logo se dirigiu para a mesa de obsidiana na outra ponta da sala. Com um simples aceno de mãos, fez os ingredientes que tinha escolhido a pouco seguirem levitando através de uma bruma negra cintilante, que os guiava da prateleira até a mesa.

Silmyuu se aproximou com o bebê para ver todo o processo mais de perto. Devimyuu apanhou seu caldeirão negro de ferro com um crânio de olhos de rubi incrustados, e o colocou no interior de um círculo de gemas de salamandra. Em seguida começou a inserir os ingredientes cuidadosamente.

Primeiro, três conchas de água torrencial provinda da primeira tempestade de outono, mexendo sempre como um semi círculo até que fervesse. Em seguida, de dentro de uma caixa de madeira retirou algumas raízes de árvore ancestral - adquiridas há muitos anos de um antigo santuário druida - e salpicou uma pequena quantia na fervura.

A mesma começou a borbulhar num tom amarronzado, que foi clareando conforme Devimyuu adicionava sete gotas cintilantes de orvalho da lua coletado durante um eclipse.

Só precisava de mais três folhas frescas de uma mandrágora recentemente colhida, e por fim, o último e possivelmente o mais importante e raro ingrediente: lágrimas de nyx. Repletas de energia vital, possuíam o poder de reequilibrar as energias do corpo e da mente, aliviando dores físicas e emocionais. Uma única gota dessas lágrimas de fada em uma poção de cura pode trazer alívio imediato e restauração completa.

Com a poção concluída, Devimyuu colocou o líquido fumegante num frasco de cristal. De olhos fechados, o ergueu na altura do rosto e sussurrou algumas palavras num antigo dialeto druida que aprendera há muito tempo. Quando terminou, soprou a fumaça esverdeada emanando do bocal circular, e assim que o fez a poção passou de verde escuro para um tom esmeralda vívido.

- Está pronta - ele disse após colocar o frasco contra a luz a constatar que a aparência e consistência estavam corretas.

Mais trabalhoso do que o preparo da própria poção foi tentar dá-la a Mewhades. Depois das tentativas frustradas de Silmyuu com o bebê virando a cabeça toda vez que o frasco chegava perto de sua boca, Devimyuu finalmente resolveu intervir e o pegou no colo. O novo príncipe pareceu bem mais inclinado a colaborar estando nos braços do pai, que facilmente conseguiu lhe dar a poção, embora ainda tenha dado um pouco de trabalho para engolir o líquido de gosto duvidoso.

A poção cumpriu seu propósito, trazendo alívio imediato ao filhote angustiado. Mewhades finalmente tinha parado de chorar. Devimyuu pensou que deveria devolvê-lo para sua madrinha para poder voltar logo ao trabalho. No entanto, ao ver que o filho parecia tão calmo ali aninhado ao peito dele, ao ponto de começar a ronronar baixinho, o Lorde das Trevas se sentiu compelido a ficar mais um pouco com seu pequeno príncipe.

Silmyuu percebeu que aquele de fato era um bom momento para incentivar a aproximação de seu afilhado com o filho caçula sem parecer que queria forçá-lo a isso.

- Quer que eu traga a mamadeira dele? - perguntou esperançosa, e para sua surpresa e satisfação, Devimyuu disse que sim.

Silmyuu saiu para voltar o mais rápido que podia, deixando o rei e o segundo príncipe sozinhos.

- Então... parece que você e eu não tivemos um início de dia muito bom, não é? Mas, fico feliz que pelo menos você está melhor. Que bom que sua vódrinha te trouxe aqui. E me desculpe não ter ido te ver hoje cedo, é que eu tive uns problemas com a sua irmã. - o rei suspirou, ainda pensando na briga com Mewleficent há pouco, e foi caminhando com Mewhades pela sala, conforme usava o bebê como seu confidente - Eu queria que ela soubesse que você só está aqui pra garantir que ela fique a salvo, e não para substituir seu irmão mais velho, e é justamente por isso que ela não devia te odiar, afinal, você não fez nada pra ela. Vai me ajudar a protegê-la, não é, filho? Talvez, o único que mereça ser alvo de ódio aqui sou eu, por colocar vocês dois nessa posição... Eu sei que essa foi a melhor opção que arranjei, mas não significa que o que estou fazendo seja certo, ou até mesmo, perdoável...

Devimyuu ficou olhando para o bebê em seus braços, que curiosamente o encarava de volta como se fosse capaz de compreendê-lo. O Lorde das Trevas sabia que aquilo não era possível, então só imaginou que talvez o pequeno apenas gostasse de ouvir sua voz, pois era a única que o bebê conhecida desde sua gestação artificial.

Mewhades era muito parecido com ele; mesma cor de pelagem e olhos, e até os mesmos chifres. Seria praticamente idêntico ao pai se não fosse por seus cabelos rosa escuros. Devimyuu sempre imaginou que aquela deveria ser a única coisa que o filhote puxou da mãe biológica, cuja identidade permanecia no anonimato.


O Lorde das Trevas acreditava ter perdido para sempre a única fêmea a quem tinha verdadeiramente amado, sendo assim, nunca mostrou interesse em se envolver com mais nenhuma.

O novo príncipe havia sido gerado artificialmente, assim como os gêmeos, justamente por esse motivo. No entanto, após o desastre que tinha sido tentar incluir Mewlith na criação de seus filhotes para que tivessem uma mãe, dessa vez Devimyuu estava determinado a nem sequer saber quem seria a próxima escolhida para gerar seu novo herdeiro. Ele não queria vê-la, conhecê-la, ou mesmo saber o seu nome.

Mewosek foi o responsável por encontrar e escolher a fêmea com os atributos ideais para produzir um herdeiro excepcionalmente forte, e pagar a ela uma alta compensação para que não fizesse perguntas e jamais se envolvesse.

- Sabe, Mewhades, você tem todo direito de me odiar um dia pelo motivo com qual eu te trouxe para esse mundo. Mas quero que saiba, que independente disso, eu realmente te amo, da mesma forma que amo seus irmãos, tá bem?

Dizendo isso, Devimyuu ergueu o filhote um pouco na altura de seu rosto, e beijou sua cabeça. E o que foi inesperado, talvez até uma curiosa coincidência, foi o bebê sorrir assim que ele terminou de falar como se de fato o entendesse. Novamente, Devimyuu achou que aquilo não era possível, e que Mewhades deveria ter sorrido por uma reação natural ao afeto dele. No entanto, por alguns instantes o Lorde das Trevas ficou um pouco intrigado, já que não era a primeira vez que Mewhades demonstrava um comportamento peculiar demais para um simples bebê de apenas seis meses.

Contudo, não teve muito mais tempo para pensar nisso, pois Silmyuu tinha voltado com a mamadeira e mais algumas coisas dele. Então Devimyuu simplesmente deixou o assunto para lá, e foi rapidamente ao encontro da madrinha, imaginando que após uma manhã toda apenas chorando, Mewhades deveria estar faminto. E se parasse para pensar, veria que era surpreendente o fato dele não estar chorando por isso agora, ou em nenhum momento enquanto Devim conversava com o pequeno. Como se soubesse que precisava ouvir o que o pai tinha para falar.

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