04 - Alguém a Quem Culpar


A sala do trono ficava no centro térreo do castelo, três alas se ligavam a ela através dos três halls que faziam caminho para atravessá-la, pela esquerda, direita e frente. O hall da ala frontal se estendia desde a entrada do palácio e culminava numa confortável antessala de espera, preparada para os súditos que precisassem aguardar para falar com o rei. Salomew, o secretário real, era quem os anunciava e, de vez em quando, um oficial da guarda real passava por ali em patrulha, por precaução.

O vice-rei psíquico encontrou o melhor amigo sentado de pernas cruzadas e postura impecavelmente ereta num luxuoso sofá de confortáveis assentos dourados, aguardando a carona de Kin.

— Aí está você — disse Heimewdall, parando de frente para o amigo, com as mãos nos bolsos do terno sob medida.
— Kinmyuu foi falar com a babá e está resolvendo mais umas coisas, mas logo virá.

— Aham… — murmurou o mago com despeito, levantando-se e ajeitando a capa e as vestes. Sua cara continuava amarrada.

— Não vá me dizer que você ainda está aborrecido, Mewthazar! — exclamou Heimewdall, inconformado. Ele estava acostumado a ver o amigo se emburrar com os outros, mas não com ele.

Mewthazar nada respondeu. Fez um bico e ficou olhando atravessado para Heimewdall por cima dos óculos cristalinos. Heimewdall bufou, balançando a cabeça. Ele percebeu que não teria escolha a não ser tentar se explicar. 

— Sinceramente, Thazar… — O felin passou a mão na testa, jogando algumas mechas do cabelo para trás novamente, o que fez Mewthazar se dignar a prestar um pouco mais de atenção nele. — Sabe que se dependesse apenas de mim você jamais seria incluído como suspeito. Mas eu não posso mudar a decisão de Kinmyuu por mais ele esteja equivocado dando o benefício da dúvida a um reverso imundo. Mas você sabe que meu sobrinho não tem culpa de ter esses conceitos falhos. Não pode tentar entender isso?

O mago, ainda insatisfeito, cruzou os braços, encarando o outro vice-rei com uma feição empertigada e prosseguiu calado.

Heimewdall suspirou alto, sem esperar mais por alguma resposta.

— Ah, vamos, Thazar… Eu já pedi desculpas, e já disse que não tive a intenção de ofendê-lo.

— É… Eu sei… — Mewthazar, enfim, respondeu, sem vontade, tirando os óculos um pouco e segurando-os sobre seu colo, para onde ficou olhando, cabisbaixo.

— Se sabe, então, por que ainda está chateado comigo? Odeio quando fica em silêncio me julgando com esse seu olhar de raiva…

— Não estou julgando — a resposta foi imediata e seca — E você sabe que não consigo ficar com raiva de você por muito tempo, por mais que eu tente… 

— É, mas você está claramente chateado. Pode me explicar o que foi, então?

— Você ainda pergunta, Heiw? O artefato sagrado do meu reino foi roubado! Quem você acha que vão culpar quando souberem que o Grimório desapareceu?!

Percebendo a tensão esmagadora na voz ressentida de Mewthazar, Heimewdall encostou a porta da antessala para dar mais privacidade ao amigo que desabafava.

— Mas, Zar — Ele se aproximou e sentou do lado dele — a culpa não foi sua. Você não era o único responsável pelo artefato de seu reino. A guarda templária também não conseguiu proteger o Grimório, e até Mewelderm, o próprio clérigo que o vigiava, acabou sendo atacado. Não havia nada que você pudesse ter feito, amigo.

O felin mágico cerrou os punhos com força, suas mãos estavam trêmulas. Ele comprimiu os lábios, mordendo o interior e apertou os olhos. Seu coração batia acuado, com um nó no estômago que crescia numa angústia sem tamanho. 

— Exatamente! É… é o que todos alegarão, Heimewdall. — Sua voz soava tão trêmula quanto suas mãos. — Todos dirão que eu não pude fazer nada para impedir que o Grimório fosse levado, porque eu não passo de um mago fraco e inútil…

Mewthazar abaixou a cabeça, ele lutava para segurar as lágrimas de frustração que queriam escorrer por seu rosto, mas chegara ao seu limite.

O felin psíquico encarou o companheiro. 

— Zar, olhe pra mim. — Mewthazar hesitou.
— Mewthazar… — Heimewdall insistiu mais seriamente.

O outro levantou minimamente a cabeça em sua direção e ergueu os olhos úmidos para ele. Embora fossem melhores amigos há décadas, o vice-rei mago parecia envergonhado por suas lágrimas. 

— Você não é fraco e muito menos inútil. Qualquer um que pense desse jeito está enganado e não tem o mínimo direito de falar assim a seu respeito, porque não te conhece de verdade. Você é o felin mais esforçado que conheço, e alguém tão dedicado quanto você jamais pode ser chamado de fraco. Não se menospreze por conta daqueles que não reconhecem o seu valor.

Heimewdall o fitava com um olhar tão direto que parecia poder ler sua alma. Por sua vez, o mágico sentiu o nó do estômago subir para a garganta e esfregou os olhos cujas lágrimas desciam.

— Agradeço suas palavras, Heiw, mas… — Ele pausou para assoar o nariz com um lenço de seda que tinha magicamente replicado. — Temos que encarar os fatos. Eu sou da realeza magista, um dos descendentes mortais do próprio Mizantri… Eu deveria ser a última linha de defesa em proteção ao Grimório; mas nós sabemos muito bem que eu mal tenho Nei o bastante para defender a mim mesmo. 

Nei — uma abreviação de Nível de Energia Interior — se tratava da manifestação da força ativa presente em seus corpos que tornava possível aos felins utilizarem seus poderes individuais.

O Nei de cada um era único e se apresentava em diferentes níveis. Porém, geralmente por fatores hereditários, alguns inevitavelmente nasciam com mais Nei do que outros, como no caso do príncipe Akenmyuu, por exemplo, por ser filho de um semideus.

No entanto, embora portador de umas das magias ancestrais mais poderosas existentes — a Magia de Replicação —, parecia que a sorte virara as costas para Mewthazar. Seu pai, Mewrilin Amewbrose V, foi um dos mais poderosos reis magos da história dos puros. Contudo, diferente de sua talentosa irmã mais velha e de qualquer outro felin, Mewthazar nasceu com seu Nei extremamente baixo, mais abaixo de qualquer padrão mínimo de que se tinha registro. 

Ele passou anos de sua vida em um treino rigoroso, tentando todos os meios possíveis de aumentar seu Nei. Apesar de conseguir certo progresso, seu nível continuava muito abaixo do de qualquer outro, e só lhe permitia conseguir usar no máximo quarenta por cento da magia sacra de replicação que herdara como um descendente de Mizantri.

— Espere um pouco, Zar. Agora serei obrigado a dizer que você está enganado. — Heimewdall ainda o olhava fixo, mas de modo compassivo — Mesmo que seu Nei seja baixo, você ainda consegue executar sua magia de um modo magistral. Isso prova o quanto é um grande mago, independente do nível que tenha. 

— Você fala assim porque é meu melhor amigo, mas está exagerando, Heiw. Não posso deixar de pensar que se eu não fosse tão limitado, talvez tivesse conseguido salvar o Grimório! — O mago soltou um suspiro doloroso, enquanto fitava as próprias mãos de punhos fechados com um olhar desiludido. — Mas, não… Eu não pude e nem poderia ter feito absolutamente nada. Acho que isso prova que minha irmã estava certa, quando sugeriu que nosso pai designasse outro felin para ser responsável pela guarda do artefato de nosso reino.

Mewthazar fungava, com os olhos marejados. Ele tinha conseguido parar de chorar, mas ainda se sentia mal por seu aparente fracasso. 

— Sua irmã está errada, Mewthazar. — A frase fez o colega erguer a cabeça e encará-lo. — Eu, sim, conheço seu valor e não somente como mago. Desde que nos tornamos amigos, você sempre foi o único que realmente me entendeu e me apoiou independente de qualquer circunstância.

 Heimewdall repousou uma das mãos sobre o ombro de Mewthazar e o mago, que o olhava estático, sentiu seu coração bater mais forte. 

— E se quer saber, mesmo se não tivesse poder algum, ainda seríamos melhores amigos, porque não consigo imaginar minha vida sem você.

— Heiw… eu… — O nó no estômago de Mewthazar voltou, mas agora, a sensação não se tratava de qualquer tipo de angústia ou frustração. Era um sentimento totalmente oposto, que o felin viera guardando há mais tempo do que podia se lembrar. — …mierr, mu-muito obrigado, Heimy… Digo o mesmo sobre você.

Ele respondeu rapidamente, virando a face para o outro lado, torcendo para que Heimewdall não notasse suas bochechas queimarem rubras com um sorriso bobo e encabulado em seu rosto, procurando disfarçar ao máximo seus verdadeiros sentimentos em relação a ele. Sentimentos que vinha ocultando desde sua adolescência.

— Sabe, se podemos tirar algum proveito dessa calamidade envolvendo o Grimório, é que, pelo menos, Mewhicann finalmente será investigado. Considerando as origens daquele maldito, ele devia ser mantido sob vigilância constante desde a primeira vez que pisou em nosso mundo!  Nunca confiei naquele demônio, independente do que meu pai dizia. Parece que, mesmo perdendo uma perna, metade do braço e da cauda graças a esses reversos malditos, ele ainda acreditava na tolice de quem "nem todos são iguais"… Tsc! — Heimewdall disse com indignação, balançando a cabeça negativamente. 

— Seu pai foi um grande homem, Heiw, mas me dói ter que dizer que ele realmente falhou nisso. E seu irmão tinha que puxar ele logo nesse quesito!

— Não. Ele conseguiu ser pior. Nosso pai permitiu um inimigo em nosso mesmo mundo, já o Odimyuus colocou um sob o nosso mesmo teto, cometendo a heresia de colocar aquele demônio como se fosse parte da nossa família! Isso foi imperdoável! — O vice-rei psíquico trazia profundo rancor em suas palavras. Era assim que agia toda vez que citava o irmão mais velho. 

— Pois é. E ele pagou um preço alto por essa atitude. Não poderia acabar de outro jeito, mas mesmo assim, é triste lembrar como o final dele foi trágico… — comentou Mewthazar, atento para ver se Kinmyuu não estava chegando e acabaria ouvindo-os falar sobre a morte de seu pai.

— Hmpf! Exatamente! Odimyuus não foi assassinado, aquilo foi suicídio! Ele podia ter se salvado se tivesse me escutado e deixado aquele demônio no Mundo Reverso onde ele pertencia! Mas não, ele preferiu barganhar dando a própria vida na tentativa de salvar o inimigo que nasceu para nos destruir! Por sorte, ele não conseguiu trazê-lo de volta naquela época, mas no final, fui eu quem tive que consertar os erros dele. Todos o veem como um mártir ou um herói, mas na verdade, ele não passou de um irresponsável que mereceu a morte que teve para lavar os seus pecados. Miargh! Ainda me ferve o sangue só de pensar nisso!

Um misto de ressentimento e raiva — principalmente raiva — manava dos olhos azuis de Heimewdall conforme falava. 

— Ah, bem… eu não devia ter mencionado ele. Desculpe por te fazer lembrar, Heiw. — Mewthazar colocou as mãos nos bolsos do sobretudo aveludado, olhando receoso para Heimewdall.

— Não se desculpe, Zar. Você sempre foi o único com quem posso falar do “santo”, “perfeito” e “intocável” Odimyuus sem correr o risco de ser mandado pra prisão. Além do mais, você não me fez lembrar de nada. A traição do tolo do meu irmão inevitavelmente é algo inesquecível.

Mewthazar assistia o colega cruzar os braços, desviando o olhar com despeito. Qualquer um que o visse naquele exato momento afirmaria que a suposta traição de Odimyuus realmente dera motivos a Heimewdall para odiá-lo com todas as forças. E era nisso que o próprio Heimewdall acreditava, jamais se arrependendo de ter deixado o próprio irmão para morrer cruelmente, sabendo que podia tê-lo salvo naquela fatídica noite há vinte anos, mas não o fez.

A conversa de ambos foi interrompida pela voz do secretário real chamando Mewthazar. Kinmyuu já estava pronto para partir rumo a Magispell e aguardava o vice-rei mágico para lhe dar carona. 

Heimewdall se levantou junto com o amigo e ia cumprimentá-lo para se despedirem. No entanto, no momento em que o psíquico estendeu a mão direita, Thazar o puxou para um abraço. 

— Obrigado pelo que me disse agora há pouco. Não sei o que eu faria sem o seu apoio, Heimy — disse após soltá-lo, um tempo considerável depois. Tinha que aproveitar momentos como esse.

— Eu só disse a verdade, e sei que faria o mesmo por mim, como você sempre fez e como sei que sempre irá fazer.

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