18



Três meses depois.

Bianca pronunciou uma frase de um de seus pensadores favoritos. Sorriu para a audiência e declarou:

— Vejo vocês na semana que vem.

Uma mistura de sons dominou o ambiente, causado pelo arrastar de cadeiras, murmúrios, risadas e passos. Alguns minutos se passaram enquanto organizava suas coisas, atirando papéis, notebook e um livro de qualquer jeito na pasta.

Caminhou pelos corredores quase desertos àquela hora e os poucos alunos que encontrou pelo caminho não lhe dirigiram o olhar.

Tanto melhor.

Depois do seu sequestro, havia se tornado uma espécie de celebridade no campus e sobravam olhares piedosos, curiosos e perguntas sobre o seu bem-estar. Ninguém parecia notar o quão desagradável esses gestos lhe pareciam. E isso só piorou quando a notícia do fim do seu noivado se espalhou.

O rosto atônito de Artur ainda lhe vinha à mente sempre que olhava para a mão e não encontrava o anel de noivado. Achava isso engraçado, mas sentia falta dele, afinal conviveram por alguns anos e, apesar de não lhe dedicar amor, lhe queria bem.

Quando retornou para casa, àquela noite, após o tiroteio, já era madrugada. O rapaz a aguardava em seu apartamento, assim como seu pai. Silvia fez menção de sair quando os viu, mas Bianca a impediu. Precisava dela naquele momento. Tinha passado às últimas 48h horas sendo forte, mas suas forças se esgotaram quando se despediu de Adriana. Precisava, mais uma vez, do seu apoio. Saber que estava por perto, a acalmava para fazer o que era necessário.

Ainda nervoso com tudo que se passou, Arthur não aceitou bem o desejo da noiva de não querer sua presença. Julgou que Silvia era a responsável pela decisão e tentou agredir a moça, o que foi uma surpresa geral, dada sua natureza pacifista. Silvia, como era de se esperar, adorou colocá-lo em seu lugar, ou seja, no olho da rua.

Alguns dias depois, ele e Bianca voltaram a se reencontrar e tiveram uma conversa amena sobre os motivos que a levaram a dispensá-lo na ocasião, assim como, seu desejo de pôr fim ao noivado.

O rapaz tentou demovê-la da ideia, mas desistiu ao perceber que a noiva voltara diferente daquele sequestro. Mesmo assim, por algumas semanas, ainda insistiu em reatar o compromisso, até que compreendeu que se tratava mesmo de uma decisão definitiva.

Com o pai foi diferente.

Não houve discussão ou agressão. Ela se permitiu abraçar e devolver o gesto. Conversaram com sinceridade e expôs todas as suas mágoas e ressentimentos em relação as atividades dele, embora estivesse agradecida pela decisão de enviar seus homens, outra vez, com o intuito de ajudá-la, mesmo quando enfatizou que não os queria. Não fosse isso, todos os planos de Adriana teriam terminado em morte. Mais especificamente, na morte dela e amigos.

Garantiu ao pai que o tal dossiê que usou para ameaçá-lo não existia, mas que qualquer pessoa com bom senso e um pouco de curiosidade, seria perfeitamente capaz de rastrear todas as atividades as quais ela se referiu e, como filha, lhe fez um último pedido em nome da saúde de seu relacionamento com ele. Pediu que abandonasse tais atividades.

O juiz prometeu considerar, mas ela sabia que o que ansiava talvez nunca viesse a acontecer. Ele sempre acreditou que fazia a verdadeira justiça daquela forma e as pessoas que o seguiam também. Mesmo que parasse, logo outro assumiria seu lugar, mas aí, já não seria mais do seu interesse.

Quando ele indagou sobre a criminosa que Cobra afirmou vê-la beijar, respondeu simplesmente que não era de sua conta. Ele jamais aceitaria que pudesse se envolver com uma mulher, assim como aconteceu com Sílvia. Assistiu à transformação em seu rosto, mas ignorou a raiva e decepção que exibia.

Ele não podia mudar quem era, ela também não. Então não estava disposta a se desgastar em uma nova discussão sobre o assunto. Já haviam tido muitas quando namorou Silvia.

Quando o viu partir, algum tempo depois, perguntou-se se a sua relação seria sempre assim: um eterno pé de guerra. Eles se amavam, mas tinham personalidades tão parecidas que ficavam melhor longe um do outro.

— Ele nunca vai mudar — Silvia afirmou, sentando no sofá e Bianca recostou a cabeça em seu colo; os cabelos ainda úmidos pelo banho recente. Imediatamente, as mãos dela iniciaram uma carícia suave.

— Não posso me privar de ter esperanças — respondeu, sussurrando. As pálpebras pesadas, afinal, não dormia há dois dias.

Sua consciência deslizava para o sono, quando a ouviu indagar:

— Prometo não voltar a perguntar, mas pode me falar sobre ela? Preciso muito saber.

Bianca suspirou, os lábios contraídos. Então, sorriu levemente e lhe contou tudo.

Retornar para sua vida foi mais difícil do que imaginava, mas aos poucos foi reencontrando seu equilíbrio. Contudo, não conseguia evitar de se pegar pensando em Adriana em algum momento do dia. A assaltante, a mãe, a artista plástica, a mulher, todas tinham deixado sua marca nela em um período tão curto que, às vezes, tinha vontade de rir loucamente ao pensar a respeito.

Silvia e os homens de seu pai cuidaram de criar uma história verossímil para toda aquela confusão sanguinolenta e pouco ou quase nada foi relatado nos jornais. Poupou-se da curiosidade e jamais perguntou a amiga qual foi a história contada e se satisfez com a promessa dela de que Adriana e companhia sairiam impunes e incógnitos de seus crimes.

O estacionamento estava quase vazio, exceto por um casal que namorava recostado ao carro em uma das vagas mais distantes do portão principal. Satisfeita com o vento frio que a envolvia, convidando-a para tomar uma taça de vinho assim que chegasse em casa, caminhou com passos largos até o carro.

Passou alguns minutos sentada com as mãos no volante.

Apreciava a paz.

De alguma forma, quando a fez refém, Adriana a libertou. Nunca mais seria a mesma de antes daquele assalto e isso não a assustava de modo algum.

Sorriu para a noite e pegou a fotografia que havia furtado do carro de Adriana, um pouco depois de se despedir dela com um aperto de mãos suave, em vez do abraço apertado que desejava. A imagem da garotinha suja, da cabeça aos pés, com uma bola de futebol nas mãos, pareceu lhe sorrir de volta.

Era uma lembrança de que alguns crimes, às vezes, tinham uma boa intenção e valiam à pena serem cometidos.

***

Adriana tomou um gole de vinho, abençoando as uvas das quais era feito. Sorriu lentamente, envolta na penumbra do apartamento; apreciando o sabor da bebida, o silêncio do cômodo e o conforto de, finalmente, estar em paz.

Todos os dias fazia uma oração silenciosa, agradecendo a dádiva de estar viva e ver sua filha se recuperar aos poucos. A sua vida voltava aos eixos, assim como a de seus amigos. Silvia cuidou para que todos saíssem impunes e, de alguma forma, a culpa pelo assalto recaiu sobre Alex e seu bando. O que, de certa forma, não era uma mentira.

Sua participação naquele tiroteio foi descrita como um terrível episódio de azar, pois, "de acordo com as investigações", ela estava avaliando a possibilidade de fazer uma oferta de compra daquela propriedade nos arredores da cidade, junto com o irmão e dois amigos, quando se viram testemunhando uma operação policial para prender o traficante que seria responsável pelo assalto a um banco e sequestro de uma ex-promotora e professora universitária.

Sorriu, balançando a cabeça, como sempre fazia quando pensava no assunto, já que aquela história era muito plausível e não deixava de ser fantástica, mas nenhum policial a procurou ou aos amigos para tomar seu depoimento, de fato.

Aquilo só chegou ao seu conhecimento por pequenas notas na imprensa e pela curiosidade de conhecidos e amigos quando a visitavam no hospital, após o ocorrido. Contudo, alegava estar traumatizada e, assim, evitava ter de contar algo e cair em contradições.

Alguns dias depois do tiroteio, houve uma incursão policial na favela. Os policiais não estavam na folha de pagamento de Alex e, durante o confronto, o traficante morreu. Depois da cirurgia de Lis, Lucas caiu no mundo, sem olhar para trás. Para tristeza da mãe. Contudo, ela e os irmãos, torciam para nunca mais voltar a pôr os olhos no primo.

Tomou outro gole de vinho e fechou os olhos.

Gotas de chuva começaram a escorrer pela janela e o rosto bravo de Bianca lhe visitou à memória, trazendo junto a recordação do cheiro da sua pele e o calor dos seus lábios.

De tudo que aconteceu naquela aventura insana, a refém era a lembrança que mais a visitava, carregando uma nota de saudade. Sorriu, ao pensar nela e se permitiu relaxar um pouco mais, envolta nas lembranças daquela hora prazerosa no banco traseiro de seu carro.

Nenhuma mulher a teve daquele jeito. Demorou algum tempo para perceber.

— Você devia procurá-la. Não aguento mais te ver com essa cara de boba — Rebeca lhe disse, algumas semanas depois que Lis saiu do hospital. Observava a filha dormir, recostada na porta do quarto, quando a amiga se aproximou.

— De quem está falando?

— Fingir-se de tonta não lhe cai bem. Sabe que falo daquela morena ninja. — Sorriu, divertida com a sua falta de palavras para retrucar. — Somos amigas há muito tempo, Drica. Fomos amantes também. Conheci todas as suas conquistas. Conheço todos os tipos de sorriso e olhar que é capaz de dar. E a forma como você a olhou e sorriu para ela naquela chácara, é muito diferente de todas as que conheço. Seja lá o que aconteceu entre vocês, enquanto estavam sozinhas, foi forte e importante.

— Não aconteceu nada — negou.

Rebeca sorriu de lado, sabichona.

— Me engana que eu gosto.

Adriana balançou a cabeça, rindo da mesma forma. Então, lhe contou a verdade. Não ocultou nenhum detalhe e surpreendeu-se por não ver aquela velha tempestade de ciúmes no olhar da amiga, como acontecia quando lhe falava sobre suas conquistas. O coração de Rebeca já tinha novo morador.

— A procure — aconselhou.

Drica meneou a cabeça.

— Tudo bem. Farei isso, se você parar de enrolar e admitir que está afim do meu irmão. Dê uma chance para o Digo.

A amiga corou, mas sorriu.

— Eu já dei — e lhe contou que, naquela manhã, aceitou sair com ele. Teriam um encontro.

Pela primeira vez em muitos anos, Adriana a viu sorrir diferente e compreendeu o que quis dizer a respeito do seu próprio sorriso. Estava decidido, iria procurar a "sua" ninjinha.

O ruído de chaves e passos lhe chegou. Abriu os olhos, fixando-os na porta que se abria para dar passagem a personificação das suas lembranças.

Bianca acendeu a luz e tomou um susto ao encontrar Adriana sentada no sofá com uma taça de vinho nas mãos e uma pistola repousando ao seu lado.

A ruiva tomou um gole farto da bebida e lhe sorriu, maliciosa.

— Tomei a liberdade de abrir uma garrafa. Espero que não se importe. — Cruzou as pernas, provocante. — Seu gosto para vinhos é excelente.

Bianca permaneceu muda, analisando o rosto bonito com uma sobrancelha arqueada. Foi um minuto que se arrastou prazerosamente para ambas. Sorriu, presunçosa.

— Isso é outro sequestro? — Deslizou o olhar para a arma. — Cuidado com as digitais na taça — piscou, fechando a porta.

Retirou o blazer e atirou sobre o encosto de uma poltrona, displicente. Sentiu um imenso prazer diante do olhar lascivo que a outra lançou para o seu decote.

— Desta vez, tomarei mais cuidado! — Garantiu, emborcando o resto do vinho goela a baixo em um gesto nada atraente, mas precisava disso. Bianca não lhe saía da cabeça desde que se despediram naquela chácara. Passou os últimos meses, concentrada na recuperação da filha e na sua própria, mas sempre se pegava pensando na advogada que a ajudou a proporcionar aquilo e lhe roubou o sossego no momento em que a beijou.

— Não está usando máscara. Cadê esse tal cuidado?

— Uma máscara não deu muito certo da última vez. Mas posso sempre alegar que vim fazer uma consulta jurídica.

Bianca cruzou os braços. Adriana era ainda mais linda do que recordava e não tinha ideia do quanto sentiu sua falta até vê-la ali, na sua sala, com o mesmo sorriso metido que povoava seus sonhos.

— Então, você é professora.

— Te falei que não atuava mais nos tribunais.

— Que pena, gostava de pensar em você gritando "protesto", cheia de pompa, como nos filmes.

Bianca gargalhou, passando a mãos nos cabelos.

— Como está sua filha?

As feições de Adriana se abrandaram e exibiram um sorriso diferente de todos os que lhe mostrou naquele dia. E a professora se perguntou se era possível que ela ficasse ainda mais bonita que aquilo.

— Se recuperando bem. Está cada dia mais linda, mais forte! — Riu, os olhos ligeiramente marejados e, de repente, seu semblante se suavizou. — Ela quer te conhecer.

Bianca sentou no sofá diante dela, surpresa.

— Me conhecer? Nós nos conhecemos naquele dia...

Ela sorriu mais largo, ruguinhas discretas se formando ao lado dos olhos.

— Ela quer conhecer a mulher pela qual a mãe dela anda suspirando pelos cantos. — Depositou a taça sobre a mesinha ao lado do sofá e apoiou o queixo na mão. — São palavras da "pestinha"! — Era verdade. A pequena havia ouvido Rebeca a provocar durante um jantar e repetia a frase a todo instante, curiosa para conhecer a "namorada" da mamãe.

Por mais que Adriana tentasse demovê-la da ideia, a criança não a esquecia e Rebeca se divertia às suas custas.

O silêncio cresceu entre elas. Desde que se lembrava, nunca se sentiu daquela forma, nunca desejou tanto conhecer alguém de verdade, nem sonhou com esse alguém como sonhava com Bianca. Esta, por sua vez, estranhava a alegria que tomava seu corpo ao ouvi-la.

— Você anda suspirando por mim? — Não conseguiu evitar perguntar, com um sorriso jocoso.

— Às vezes. Mas prefiro interpretar como resultado de lembranças de um bom sexo!

Bianca lhe atirou uma almofada.

— Cretina!

— Por quê? Você foi uma das melhores transas que já tive! — Se encolheu quando outra almofada foi lançada em sua direção; então, passado outro minuto longo de um silêncio agradável, ergueu-se e caminhou até ela, sentando-se ao seu lado.

Até o ar pareceu se tornar mais quente com a proximidade.

— Naquele dia, você não quis saber, mas, definitivamente, é o tipo de mulher que fica. As circunstâncias em que nos conhecemos foram extraordinárias, para dizer o mínimo, mas você ficou... — Tomou a mão dela e apertou suave.

Nem imaginava o quanto ouvir aquilo era prazeroso para Bianca, nem quanto sonhou com ela e acordou com o corpo em brasas ansiando seus toques.

— Você é uma mulher muito estranha, Drica. Mas acho que, depois de me sequestrar e me meter no meio de um tiroteio insano, invadir meu apartamento, armada, para se declarar, é o de menos — sorriu, quase se derretendo diante do desejo naqueles olhos amarelos e isso não passou despercebido à outra.

A artista plástica aproximou-se e aspirou seu perfume, deixando os lábios roçarem em seu pescoço, enviando ondas de desejo a todo o corpo.

— Nunca gostei de ser convencional — sussurrou, notando os pelos que se eriçaram com sua proximidade e grudou os lábios ao pescoço dela, lhe arrancando um suspiro profundo, como aquele que fugiu de seu íntimo.

O perfume de Bianca lhe invadiu como a força de uma tempestade, fazendo-a desejar ir além daquela provocação, mas se afastou e se pôs de pé com um risinho metido que se alargou ao ver o brilho do desejo que inflamou, nos olhos da outra.

— Na verdade, a arma foi apenas para dar um toque dramático. É uma réplica. E, tecnicamente, eu não invadi...

Retirou um chaveiro do bolso.

— Seus objetos pessoais ficaram dentro da minha mochila. — Explicou, depositando o chaveiro na mesinha de centro, ao lado de uma sacola pequena que continha outros objetos. — Enfim, Lis quer mesmo rever "aquela moça bonita" que a visitou no hospital e ajudou a mamãe a curar ela... Bem, isso foram os médicos, mas ela é uma criança e você me entendeu! Então, vim aqui para te convidar para o aniversário da minha pequena.

Enfiou a mão no bolso da jaqueta e retirou um envelope colorido. Era uma desculpa esfarrapada, ambas sabiam. Precisava revê-la mais uma vez e lhe contar aquela última verdade, assim como Rebeca a fez prometer que faria. Não sabia se ela iria querer encontrá-la, então resolveu usar as chaves que encontrou no fundo da mochila e guardou como se fosse um pequeno tesouro.

— Mas você mexe comigo de um jeito que nem consigo descrever. Foi só te ver, que as palavras jorraram de mim como uma cachoeira — concluiu.

Balançou a cabeça em meio a um sorriso, os cabelos exalando um perfume suave que envolveu Bianca agradavelmente.

— Esse é o seu jeito de me convidar para um encontro? — Ficou de pé também.

Adriana riu alto e lhe estendeu o envelope.

— Não. — A puxou para um beijo, deixando um gemido rouco escapar quando ela lhe permitiu explorar sua boca com tanta sede que até alegrou-se quando recebeu uma mordida nos lábios ao ponto de sangrar.

Como sentiu saudade daquela boca, daquela mulher. E que estranho, assustador e, ao mesmo tempo, aconchegante, era aquele sentimento que lhe despertava apesar de conhecê-la tão pouco.

Afastou-se com um sorriso safado, já se encaminhando para a porta, enquanto dizia:

— Eu não tenho encontros. Nunca. Mas estou pensando em rever isso, após ver suas lingeries.

— Andou fuçando minhas gavetas?

— Tive um tempinho antes da sua chegada — riu jocosa.

— Você é mesmo uma cretina, Adriana!

— Não fique brava, ninjinha! Se você aceitar o convite, mostro minha gaveta também. Quem sabe, até use algo especial e deixe você ver como fica no meu corpinho.

Se despediu com um beijo lançado no ar e uma piscadela marota. Quando a porta se fechou, Bianca sorria fazendo planos de conhecer a tal gaveta.


                                                                                   - FIM -

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