Redenção e purificação

Escrita por parkemmoyya

Desde sempre eu tive uma inclinação a gostar de personagens com poder de fogo, então quando eu vi o tema desse ciclo não tinha como eu escrever com outra coisa. Espero que gostem!!!

Agradeço a chswki pela betagem e _slytherinchild pela capa belíssima e até a próxima.

A raiva passava por Seonghwa em ondas enquanto ele observava a situação odiosa se repetir mais uma vez. Os gritos estridentes tinham cessado há muito tempo; a mulher tinha morrido por asfixia devido à inalação de fumaça e apenas os restos mortais dela sobraram na fogueira. As pessoas ao redor assistiam à execução com um prazer cruel e Seonghwa gravou os rostos de cada um deles com ódio como se fossem palavras entalhadas em madeira.

Eles não o viam, mas ele os viu, um por um, suas reações, e eles pagariam pela decisão que tomaram.

Seonghwa passou pela multidão, invisível, até onde o fogo ainda queimava. Ele não o sentia, seu corpo incandescente enquanto ele seguia até a mulher de cabelos ruivos — lindos, ondulados e diferentes de todos naquela região, provavelmente o que chamou a atenção dos aldeões e acendeu a desconfiança —; o rosto pálido não mais em agonia enquanto ela olhava para onde seu corpo jazia, não mais inteiro e não mais com vida, com espanto, tentando chamar a atenção das pessoas ao redor, sem sucesso e tão invisível quanto ele.

Os mortos não podiam interagir com o mundo dos vivos e cabia a ele garantir que as coisas continuassem assim.

Ele levou a mão até o ombro dela e ela pulou, com surpresa.

— Você! Você me vê?

Seonghwa lançou para ela um sorriso gentil.

— Vejo, querida. Apenas eu posso vê-la, mas apenas você pode me ver também — contou ele. — Sinto muito por isso ter acontecido, e agradeço sua lealdade a mim enquanto estava viva.

A mulher abriu a boca, mas nenhum som saiu por algum tempo.

— Como assim enquanto estava viva? Eu nunca o vi, como poderia ser leal a você?

Ele levou a mão que estava no ombro dela ao peito, sobre a camisa branca de seda, e fez uma referência.

— Eu sou Seonghwa, deus do fogo e da renovação e responsável pelas pessoas com magia neste mundo, o deus a quem você jurou servir quando tinha 12 anos. 

Para provar seu ponto, ele permitiu que seus olhos negros, que usava quando não queria chamar a atenção, se tornassem brasas, e seus cabelos, também pretos, se transformassem em chamas, sua forma verdadeira. Mortais tendiam a se assustar com sua aparência, mas aquela mulher tinha sido preparada para aquele encontro sua vida inteira, e apenas um senso de calma e tranquilidade se espalhou por seus olhos antes de ela levar as mãos à barra do vestido maltrapilho e fazer uma reverência profunda.

— Meu senhor, é uma honra que tenha se aproximado de mim e peço desculpas por estar nessa situação.

— Eu que lhe devo desculpas, querida. Você só acabou nessa situação porque escolheu servir a mim. Como prova de sua boa vontade, os outros deuses permitiram que fosse eu a acompanhá-la ao lugar de seu descanso eterno. Importa-se de me acompanhar?

A mulher olhou para onde as pessoas ainda estavam reunidas observando enquanto as chamas que levavam seu corpo crepitavam.

— Esse mundo não tem mais nada a me oferecer, meu senhor, será um prazer acompanhá-lo.

Seonghwa sorriu, orgulhoso da força de sua sacerdotisa, e ofereceu seu braço a ela, que aceitou de bom grado e o envolveu em suas mãos pequenas e cheias de calos por trabalhar com a terra. 

Ele a guiou para adentrar a floresta, deixando os aldeões e a fogueira para trás.

[...]

Seonghwa era tão familiar com a floresta como se ela fosse uma parte dele. Ele guiava a mulher entre as árvores, deixando a fogueira, a fumaça e as pessoas longe o suficiente para que ela esquecesse o que havia acontecido, distraída por ervas e flores que nunca tinha visto. Cipós do tamanho de homens adultos, com a largura de um pequeno barco, lírios com cores jamais vistas e árvores tão altas que sumiam entre as nuvens escuras da noite — o mundo dos deuses se misturando com o mundo mortal como ela nunca tinha visto.

No caminho, Seonghwa usou seu poder para trocar o vestido verde maltrapilho por um laranja, limpo e confortável. A mulher agradeceu e se apresentou formalmente. Liana, como se disse chamar, conversou com Seonghwa enquanto eles andavam, falando sobre ervas que ele já conhecia e animais que ele mesmo havia introduzido ali. Ele deixou que ela falasse e escutou com atenção enquanto eles adentravam cada vez mais a floresta, deixando o mundo mortal para chegar ao mundo dos deuses. Eles foram recebidos por flores silvestres que Liana nunca viu e criaturas de todas as formas.

— Liana — Seonghwa a chamou e ela olhou para ele com curiosidade, os fios ruivos caindo sobre o rosto com o vento da noite. — Você se incomodaria se eu ocupasse sua cabana por algum tempo?

Se Liana ficou surpresa com a pergunta, ela disfarçou bem.

— Minhas posses são suas por quanto tempo quiser, meu senhor. Contudo,  essa serva tem um pedido audacioso, se me permite — falou com uma breve que reverência de cabeça e Seonghwa assentiu, permitindo que ela pedisse. — Meu gato, Lino, está por conta própria agora que eu parti, meu senhor faria a gentileza de garantir seu bem-estar até que ele possa se juntar a mim na pós-vida?

Seonghwa sorriu para ela com gentileza.

— Lino estará sob minha proteção até que seu tempo no mundo mortal se acabe.

A noite estava no ápice de sua escuridão quando eles adentraram a parte da floresta que Seonghwa procurava e Liana se assustou com o som de alguém — ou algo — se aproximando.

Seonghwa envolveu a mão dela em seu braço, tranquilizando-a, porque sabia quem estava se aproximando.

— Pode ficar calma, querida. É um amigo que se aproxima.

Liana assentiu, e poucos segundos depois, San surgiu por entre as vinhas e árvores com um sorriso no rosto.

— Saudações, mortal, eu sou San, deus da morte e responsável pela pós-vida.

A mulher o olhou; a túnica negra cobria seu corpo inteiro, seus olhos não tinham pupilas ou escleras e eram totalmente pretos. Seonghwa sabia que ele usava sua aparência mais amistosa para não assustá-la. Mortais menos afortunados viam seus piores pesadelos nas órbitas sem cor. Liana ofereceu uma reverência.

Seonghwa tirou a mão dela de seu antebraço.

— Aqui nos despedimos, querida, San vai cuidar de você pelo resto do caminho.

Liana o olhou como se sofresse com a separação.

— Eu o verei de novo?

— Você me jurou sua lealdade e eu a aceitei como minha seguidora. Nosso laço é maior que a morte. Eu a visitarei em breve — respondeu ele, antes de assentir para San, que lhe ofereceu o próprio antebraço.

— Seja prudente, Seonghwa. Os deuses não devem interferir no mundo mortal — preveniu San.

Seonghwa endureceu sua expressão.

— Eles precisam ser castigados, e, se cabe a mim fazer com que se tornem menos cruéis, então assim farei. Qualquer que seja a punição que eu escolher, eles terão que enfrentá-la para aprender com seus erros, ou não são dignos de andar por esta terra.

San não retrucou, apenas se despediu com um aceno de cabeça antes de sair pela floresta, descalço, com Liana ao seu lado.

[...]

As flores silvestres plantadas ao redor da cabana estavam quase mortas quando Seonghwa chegou durante a madrugada,  buscando tempo para se instalar antes de começar a observar a aldeia, procurando algo que valesse a pena salvar.

Ele passou a portinhola de madeira e se sentiu observado, mas ignorou, pensando que não era nada mais que um dos moradores do povoado curioso ou um andarilho perdido. Em qualquer um dos casos, não era nada que oferecesse perigo, mesmo na pele mortal que assumira — uma condição imposta pelos outros deuses do panteão, para que ele não revelasse sua  divindade cedo demais. Seonghwa logo percebeu que o olhar que o seguia não era humano, quando encontrou um par de olhos escondidos entre as videiras de um dos canteiros de flores.

Ele não precisou de muito para somar um mais um.

— Lino? — chamou, com cuidado, abaixando-se e permitindo que um pouco de seu poder alcançasse o gato entre as videiras. — Liana me mandou para cuidar de você.

O gato pareceu desconfiado, estudando Seonghwa por entre as folhas, mas se rendeu eventualmente, depois que ele passou alguns minutos abaixado, deixando que o animal saísse quando achasse que devia. O pelo negro como a noite se revelou quando ele saiu de baixo do canteiro, se aproximando de Seonghwa aos poucos, cheirando-o, antes de se esfregar nas pernas dele.

Seonghwa acariciou os pelos sedosos e conversou com ele. Lino o encarou, e Seonghwa sabia que o gato entendia tudo que ele dizia, pois esse  era um dos dons de ser um deus.

— Liana não voltará, querido. Ela está esperando por você na pós-vida. Eu cuidarei de você, até que você possa encontrá-la.

Os animais sofriam o luto de formas diferentes dos humanos. Eles sabiam, com certeza, que havia um “depois”, e,  ao contrário das pessoas, que podiam passar por viradas de caráter ao longo da vida, tinham um bom destino garantido após a morte. Seonghwa sabia que San cuidava deles com mais atenção, porque boa parte deles já havia sofrido muito em vida e não se tornavam ruins por isso.

Lino o olhou mais uma vez antes de subir em suas pernas. Seonghwa o pegou no colo e seguiu para dentro da cabana.

[...]

Seonghwa não estava acostumado a sentir frio, fome ou cansaço. Não estava acostumado a ser mortal, e estava pagando por isso. Ele não sabia cozinhar, então teve que comer frutas silvestres e algumas ervas comestíveis. Usou o pouco poder mágico que tinha acesso para acender a lareira e se sentou no chão, enrolado com Lino, que estava de barriga cheia de carne de coelho, caça de Seonghwa.

Ele levou a mão à pelagem negra do gato em seu colo.

— A justiça será feita. Estou prometendo a você como prometi a ela, e cumprirei minha promessa para ambos.

Lino o olhou antes de esfregar a cabeça na mão que o acariciava, e Seonghwa sorriu, feliz de ter alguma companhia durante o tempo em que estaria preso naquela aldeia e naquele corpo.

[...]

Seonghwa precisou se acostumar com o corpo mortal e tudo que vinha com ele.

Ele passou dias para aprender a cozinhar e lavar roupas usando a água do rio e o sabão em barra que Lino lhe mostrou onde estava guardado. Acostumou-se a caçar com frequência e comer frutas silvestres, caindo em uma rotina antes de começar a observar a aldeia e seus habitantes.

Lino estava quase sempre ao lado dele, e os dois estavam cada vez mais próximos.

Com uma rotina estabilizada, Seonghwa finalmente pôde focar no que foi ali fazer.

Ele criou o hábito de sair à procura de ervas no campo do outro lado da aldeia, passando por ela e atraindo a atenção e a curiosidade dos aldeões com sua presença. Porém, ninguém se aproximou dele nas vezes que passou por ali, na primeira semana. Quase sempre estava acompanhado por Lino, com uma cesta de palha que encontrou na cabana pendurada no braço.

Suas roupas eram sempre simples e feitas para facilitar seus movimentos, e ele verdadeiramente aproveitava o tempo que passava no campo, cercado por flores silvestres e pequenos animais que ousavam estar tão próximos de uma aldeia humana. Seonghwa chegou até a vislumbrar uma raposa vermelha de passagem, à procura de roedores que se escondiam em suas tocas sob a terra fofa.

Em um desses dias, ele começou a sentir-se observado, mas não pelos poucos animais que os rodeavam — eram olhos humanos e, pior, mortais. Ele passou dias fingindo não perceber que alguém estava bisbilhotando, tentando entender o que levava uma pessoa a se esconder para observá-lo. Pensou que finalmente alguém do povoado se tornou mais corajoso e começou a sondá-lo, mas não. Era apenas um rapaz que parecia ter a mesma idade que a casca mortal que Seonghwa escolheu. Quando finalmente se revelou por entre o capim alto, como se estivesse se escondendo bem, o olhou com curiosidade, e não com julgamento, quando se aproximou. 

A princípio, ele não falava nada, apenas ficava perto de Seonghwa e Lino, enquanto o vento bagunçava os fios castanhos. Porém, ao perceber que não foi repelido, sua confiança cresceu e ele começou a falar. Primeiro se apresentou: Hongjoong, filho da dona da pousada próxima ao centro da aldeia. Depois, começou a falar sobre as pessoas que viviam por ali. 

Seonghwa não falava e Lino não se aproximava de Hongjoong, mas ele usava cada coisa que ele dizia como informação para ser usada em decisões futuras.

Passou a saber quem não se dava bem com quem, quem fazia vista grossa, quando as mulheres começaram a ser mortas e quem ordenou as mortes. Hongjoong também falava sobre si mesmo: sobre seu amor pela música e como gostava de ir à taverna, mesmo que não bebesse, só para ouvir os músicos que ali tocavam. Ou sobre como não gostava da forma que as mulheres eram tratadas, simplesmente por serem diferentes ou apenas saberem um pouco mais que os outros. 

Seonghwa deixava que ele falasse e, aos poucos, começou a esperar por ele, dia após dia, quando ia procurar ervas. Hongjoong nunca pediu que ele falasse ou perguntou seu nome, mas fazia-lhe companhia, e era bom ter um companheiro humano, mesmo que mortal.

Não foi até Seonghwa ter passado semanas no povoado que Hongjoong não apareceu em nenhum momento para falar com ele, e, mesmo que não quisesse confessar, ele ficou preocupado com sua ausência.

Quando ele finalmente apareceu, três dias depois, Hongjoong tinha olhos fundos e olheiras escuras, e só teve forças para lançar a Seonghwa um sorriso cansado antes de se sentar encostado em uma das árvores e pegar no sono, como se não tivesse que se preocupar com nada por tê-lo por perto. Seonghwa ficou até tarde, se ocupando no campo com ervas naquele dia, enquanto velava o sono dele.

No fim, Seonghwa se sentou ao lado de Hongjoong, com Lino entre suas pernas e o observou até que Hongjoong acordou e se espreguiçou, parecendo mais vivo depois de dormir.

— Obrigado por me deixar dormir e cuidar de mim enquanto isso, eu não esperava que fizesse isso — confessou ele.

Seonghwa o analisou da cabeça aos pés até tomar uma decisão.

— Seonghwa. Meu nome é Seonghwa.

Hongjoong sorriu, o sorriso mais largo que ele já viu desde que ele começou a aparecer em suas tardes.

— Bonito nome. Nunca tinha te visto por aqui antes de algumas semanas atrás. Mudou-se recentemente?

— Sim, estou ocupando a cabana que fica afastada do povoado.

— Deve ser bom morar afastado da aldeia. Eu moraria se pudesse; aquele lugar não faz bem para ninguém — falou Hongjoong, pensativo.

Seonghwa respirou fundo.

— Pode me visitar, se quiser. Vou recebê-lo.

Hongjoong sorriu mais uma vez e Seonghwa sentiu um calor estranho se espalhar por suas bochechas, assim como o fogo que ele prendia dentro da casca mortal, querendo sair pela ponta de seus dedos.

— É? — Seonghwa confirmou com a cabeça. — Então irei assim que possível.

Seonghwa sorriu para ele.

— Será bem-vindo.

Os dois não falaram mais, apenas ficaram sentados, deixando que a brisa lhes tocasse o rosto e a noite lhes cobrisse a visão.

[...]

Uma noite, um barulho se alastrou pela pequena trilha que ligava a cabana de Seonghwa à aldeia; vozes femininas e masculinas se juntavam em uma cacofonia incômoda, que o acordou de seu sono tranquilo. 

Estavam perto o suficiente para ele perceber a presença, porém longe demais para ele entender o que diziam. No entanto, ele sentia em seu âmago que algo bom não era, e  apressou-se a levantar e se vestir para ver o que causava a comoção e se era algo que ele precisava intervir.

Estranhamente, quando percorreu o caminho que imaginava que o grupo de pessoas tinha feito, com uma vela que ele mantinha acessa com seu fogo, não encontrou uma só alma fora de sua cama. Se não fosse um deus, talvez acreditasse que estava alucinando.

Procurou por mais algum tempo, mas, ao não encontrar nada e com o frio incomodando sua pele, desistiu e retornou à cabana para descansar o resto da noite que lhe restava, pensando que podia perguntar a Hongjoong no dia seguinte e confirmar se a casca mortal era mais fraca do que ele imaginava ou se algo estava fora do lugar na aldeia e as pessoas estavam se esforçando para esconder isso dele.

[...]

No dia seguinte, diferente de todas as outras vezes, Hongjoong já estava lá quando Seonghwa se aproximou, com Lino em seu encalço, e parecia tão cansado quanto nos últimos dias.

Seonghwa estranhou sua presença, mas deixou que ele ficasse tranquilo até o final da tarde, quando, finalmente, não aguentando mais a curiosidade, o questionou:

— O que está acontecendo no povoado?

Hongjoong suspirou como se estivesse esperando essa pergunta o dia inteiro.

— Eles pegaram outra mulher, dizem que é uma bruxa e que deve ser morta. Ela está presa em um dos quartos da pousada de minha mãe, sem comida ou água, e gritou durante a noite toda, dizendo que tem uma filha e que não fez nada de errado. Não consigo mais conviver com essas pessoas, e não consigo só assistir tudo acontecer sem fazer nada por elas.

O ódio cresceu no interior de Seonghwa como uma chama quente consumindo uma planta seca e ele deixou que o fizesse. Precisaria de combustível em breve.

Seonghwa olhou para Hongjoong, que estava encostado na árvore costumeira. Seus olhos estavam fechados e ele apoiava a cabeça no tronco, mas tudo ficou para trás quando Seonghwa falou apenas uma frase:

— Me ajudaria a resgatá-la?

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top