Recomeço
- Filho, cheguei.
Rosamund disse como todo dia, jogando a bolsa sobre o sofá enquanto caminhava ate o quarto do menino. Anthony e Claire estavam sentados na cama, cada um segurando um livro distinto. Ficou com medo de atrapalhar o meio do capitulo deles, mas Claire não demorou a levantar-se com um sorriso no rosto, assanhando os cabelos de menino antes de juntar as próprias coisas.
- Antes que você pergunte, correu tudo na maior normalidade, ele tomou o remédio da gripe e não sentiu nada a tarde. – Claire se antecipou com um sorriso – Vai precisar de mais alguma coisa hoje, chefinha?
A pergunta também era a de sempre. Rosamund já tentara dissuadir Claire dessa idéia de chamá-la de chefinha, mas a moça parecia irredutível e era uma benção que ela pudesse ficar com Anthony quando Rosamund precisava. O fato de trabalhar a noite tornaria o ato de conseguir uma babá praticamente impossível, mas a vizinha de 18 anos desempenhava esse papel não só com prazer, como também virara uma das amigas favoritas de Anthony. Com a folga do restaurante, os horários ficaram mais irregulares, mas como isso se dera ao mesmo tempo da folga de Claire na faculdade, as coisas ficaram comodamente fáceis, ainda que Rosamund ainda se sentisse desconfortável em pedir horas extras, como pretendia fazer naquela noite.
- Na verdade, vou sim. Você vai estar livre hoje à noite?
Talvez fosse o sorriso bobo – que definitivamente não era comum – que a entregara, já que a adolescente a olhara desconfiada, praticamente pronta para rir junto a ela.
- Depende se você vai me contar ou não o motivo desse sorriso.
Provavelmente não era certo colocar a carroça na frente dos bois, muito menos ficar conversando sobre o que acontecera naquela tarde, mas não conseguiu segurar a língua dentro da boca. Não quando estava prestes a explodir.
- Michael me chamou para jantar. – e, depois de uma pausa curta, ela completou com a única informação que achava pertinente no momento - Nós estamos conversando.
A palavra era exatamente essa, conversar, mas isso não impedia que Rosamund criasse expectativas. Provavelmente só não maiores do que as de Claire, que parecia ainda mais feliz do que ela ao imaginar uma possível reconciliação entre o casal enquanto dava pulinhos de expectativa só de imaginar. Para Rosamund, fora estranho encontrá-lo, ainda mais conseguir conversar com ele de modo adulto – mesmo que os dois se devessem isso há muito tempo. Quase seis anos de relacionamento não termina em uma porta batida antes de uma viagem de meses, mas os dois concordaram que a distância fora boa para muitas coisas, mesmo que não destruísse os problemas entre os dois. Na verdade, todos eles continuavam lá, junto com todo o amor responsável por fazê-la pensar nele diariamente.
- Não se preocupe. Eu volto para cá que horas?
- Às 8h?
Rosamund perguntou com um sorriso no rosto, sem deixar de balançar a cabeça negativamente antes a empolgação da outra. Seu lado racional precisava lembrá-la de que o fato de que ele a chamara para jantar não significava nada. Lembrar-se de que as coisas continuavam difíceis, mesmo que o próximo compromisso internacional fosse demorar mais de seis meses e que eles estavam finalmente calmos o suficiente para se encararem.
- Ta ótimo. Não se preocupe que eu durmo aqui caso as coisas fiquem bem.
- Isso não vai acontecer, sua espertinha. Agora volta para casa antes que me acusem de explorar trabalho escravo.
As duas se despediram entre alguns outros comentários espertinhos de Claire, que não demorou a voltar para casa. Pelo menos não teria problemas com Anthony durante a noite, o que fez Rosamund sorrir enquanto fechava a porta para a garota.
Deixou-se entreter pelo filho, mas só conseguiu ir se arrumar depois de fazer um mini banquete para o menino jantar. Explicou para ele que não jantaria em casa, o que fez o menino rir ante a idéia de preparar tanta comida somente para ele. Batatas sauté com filé de salmão ao molho de laranja, uma salada leve e, para a sobremesa, scones com geléia de morango. Talvez as pessoas tivessem razão ao chamá-la de stress Baker, mas pelo menos Anthony se divertiu enquanto a ajudava a preparar o banquete – cortando as batatas e colocando o tempero sobre as mesmas ou espalhando a geléia pelos scones de modo generoso. Rosamund jamais deveria notar que ele a olhava de modo estranho quando ela se virava, às vezes ensaiando perguntar algo, mas desistindo antes mesmo de entreabrir os lábios.
- Vou tomar meu banho enquanto você come. Já volto para saber se você raspou o prato.
Anthony anuiu com um leve balançar de cabeça, deixando que ela se servisse o prato como os garçons faziam para os clientes do restaurante. Não disse que estava sem fome e até comeu algumas garfadas antes de ela sair, mas perdeu logo o gosto pela comida, brincando com as batatas no prato sem muito interesse. Não gostava de jantar sozinho.
Rosamund demorou no banho e, por via das dúvidas, espalhou pelo corpo o óleo que Michael gostava. Não queria se preparar com tanto esmero, mas foi inevitável. Quando saiu da banheira, entretanto, rumou junto com seu roupão direto para a cozinha, encontrando o filho já colocando o prato vazio sobre a pia.
- Estava gostoso?
O menino balançou a cabeça positivamente antes que ela o abraçasse, beijando os cabelos pretos com carinho antes de assanhá-los.
- Você vai dormir fora de casa?
Rosamund o apertou ainda mais quando sentiu a nota de insegurança na voz dele, beijando-lhe algumas vezes a bochecha pálida. Deveria ter percebido que ele estranharia a primeira vez que ela sairia de casa em um final de semana, sem ser para o restaurante. Deveria ter notado que ele se sentia inseguro quanto aquilo, mas não se culpou quando se ajoelhou na frente dele, encarando-o com carinho. O mais importante é que ele soubesse que ela voltaria.
- Nada disso, mocinho. Quando eu chegar você já terá dormido, mas amanhã cedinho, quando você acordar, eu vou estar aqui. E você vai poder pular na minha cama e contar o que você e a Claire aprontaram na minha ausência, certo?
Anthony estreitou o cenho, mas balançou a cabeça positivamente, sem fazer nenhum outro comentário enquanto Rosamund o estreitava entre os braços mais uma vez.
- Agora vá escovar os dentes e pode voltar para o seu livro. Vou só me arrumar no meu quarto, certo? Eu não vou sair sem falar com você, e, qualquer coisa é só ir me ver no quarto.
Ele assentiu e foi para o próprio banheiro escovar os dentes, enquanto Rosamund voltava para o quarto. Escolheu com cuidado o conjunto de lingerie e o vestiu, mas o vestido preto que escolhera para a noite ficou separado sobre a cama enquanto ela se metia dentro de um moletom confortável e uma camisetinha fácil de tirar. Enquanto se maquiava pensava sobre o que teria que fazer antes de sair. Lembrar Claire de dar o remédio para a gripe de Anthony, dar comida para o gato – que estava preso desde antes dela chegar e guardar o pouco que sobrara do jantar de Anthony.
Os olhos já estavam marcados com a sombra escura e ela já passara blush nas faces quando ouviu a porta do quarto se abrir. Pegou o batom na mão e virou-se para o filho para perguntar se estava ficando bonita, mas estreitou o cenho ao vê-lo mais pálido do que o normal.
- Você está se sentindo bem?
Não precisou se aproximar muito para escutar a respiração chiada e entender o que se passava. No momento em que o batom caiu da sua mão não existia mais Michael ou jantar.
- Tá doendo pra respirar...
Ele disse levando a mão para o peito, fazendo com que a respiração de Rosamund ficasse pesada por um segundo. Ele estava branco como papel e os lábios arroxeados não podiam ser um bom sinal, muito menos uma complicação simples de uma gripe que não mostrara mais do que uma tosse boba e nariz entupido nos últimos dias.
- Eu vou pegar o seu casaco e nós vamos para o hospital.
Praticamente correu para o quarto do menino em busca de um casaco adequado e, quando voltou para o próprio quarto, o vestiu com cuidado antes de pegar um sobretudo para si - sem se importar com a própria aparência. Jogou a carteira e o celular na bolsa antes de pegar o filho no colo e sair com ele de casa. Não esperava encontrar com Claire no corredor, que mal teve tempo de perguntar o que ocorrera.
- Anthony não está se sentindo bem. Eu vou levar ele para o hospital.
- Quer que eu chame um taxi?
Rosamund agradeceu, descendo as escadas com cuidado para não acabar caindo com o filho no colo enquanto Claire corria na sua frente para chamar o taxi. Não teve que esperar muito até que a vizinha voltasse para dentro do prédio, informando que o taxi já os estava esperando do lado de fora. Agradeceu mais uma vez quando já estava sentada em um dos bancos, com o filho acomodado no colo. Foi só no meio do caminho que se lembrou de Michael e suspirou, pegando o celular na bolsa para fazer uma ligação rápida.
**
A poltrona ao lado do inalador era grande e confortável e, exatamente às 21 horas e 17 minutos, apenas uma delas estava ocupada, já que segundos antes uma garota de aproximadamente 15 anos saíra de uma das poltronas mais afastadas. Nem todo o conforto, entretanto, convenceu Rosamund de que Anthony estaria melhor ali do que no colo dela – assim como o menino não parecia muito disposto a soltá-la por mais do que um segundo. Fora por isso que, como por consenso, ela simplesmente sentara-se e o acomodara sobre as pernas, minutos antes, enquanto a enfermeira preparava a inalação dele. Agora, os dedos longos acariciavam os cabelos do menino enquanto a outra mão segurava com cuidado a mascara sobre o rosto pequeno. Depois da primeira medicação Anthony parecera bem melhor e a cor voltara quase que completamente para seu rosto, mas Rosamund só conseguira começar a se sentir tranqüila quando, naquela poltrona larga, começou a sentir a respiração dele ficar realmente calma, os dois movendo o tórax quase ao mesmo ritmo.
Ela fazia uma figura estranha, usando um moletom confortável, uma camiseta simples e um sobretudo sofisticado. Não usava batom, mas a pele estava com maquiagem e os olhos marcados com uma mistura de dourado, marrom e preto, que os tornava expressivos. Michael a achou linda quando entrou na sala com os inaladores e a viu, percebendo que ela certamente fora interrompida no meio do seu ritual para ficar pronta. Ficara preocupado quando ouviu a voz nervosa dela cancelar o encontro com ele em uma mensagem na caixa postal, dizendo apressada que levaria Anthony para o hospital porque ele não se sentia bem. Tentou não ficar preocupado, fumou dois cigarros e finalmente desistiu de reprimir a vontade de vê-la – só precisava saber se estava tudo bem e ela conseguira lidar com a situação, se não precisava de nenhuma ajuda. Agora, de pé, nos poucos segundos que antecederam o levantar de olhos dela para vê-lo e sorrir, Michael pensou nas coisas das quais estava abdicando quando terminou o relacionamento com Rosamund.
- Eu não esperava você aqui.
Rosamund não pensou que pudesse sorrir com sinceridade naquela noite, mas foi exatamente o que fez quando viu Michael parado a poucos metros de si, quase como se ponderasse se deveria ou não se aproximar. O sorriso foi o mais claro sinal de que ele deveria sim fazê-lo, bem como a alegria contida dela ao demonstrar sua surpresa em vê-lo.
- Eu só queria saber se você estava precisando de alguma coisa.
Foi só então que prestou atenção que, além dos olhos castanhos dela, um par de grandes olhos azuis também o encaravam. Era a primeira vez que se aproximava do garoto e não sabia exatamente o que fazer. Pelo menos já passara da fase de culpá-lo pelo rompimento, aceitando o fato de que a adoção do menino fora apenas a última grande discordância entre os dois, não mais importante do que todas as que vieram antes. Michael, entretanto, estava cansado de discordar e, principalmente, de estar sem ela. Nenhum dos dois adultos conseguiu entender o som abafado que veio por detrás da máscara, por isso Rosamund a afastou do rosto do menino, esperando até que ele repetisse o que quer que fosse.
- Você é o cara do filme.
Não era uma pergunta, e sim uma afirmação, mesmo que os olhos do garoto estivessem cheios de curiosidade ao encarar aquele estranho. Michael teve vontade de rir, mas não o fez, até porque antes que pudesse ver o menino de verdade Rosamund já voltara a máscara do inalador para o rosto dele. Talvez tivesse se esquecido de comentar com o filho de que o ex namorado era um cara famoso, mas não contava que os dois fossem se conhecer daquele modo. Na verdade, sua pequena prece interna, naquele exato momento, era unicamente voltada para que os dois conseguissem de dar minimamente bem. Então talvez houvesse uma chance, mesmo que pequena, de aquelas três pessoas completamente diferentes virarem uma família.
- Você assistiu?
Anthony resmungou alguma coisa por trás da máscara do inalador, mas como se adivinhasse que não ia ser liberado novamente dela tão rapidamente limitou-se a balançar a cabeça positivamente, antes de voltar a se acomodar confortavelmente no colo da mãe, ainda que ela o sentisse ficar meio inquieto.
- Por que você não puxa uma cadeira para perto? Eu ainda tenho que te pedir desculpas.
- Você não tem que pedir desculpas por nada.
Ela sugeriu com um sorriso, e sorriu ainda mais quando Michael de fato aproximou um banco leve da poltrona dos dois e sentou-se, observando-os. Podia sentir ao longe o cheiro de colônia e cigarro, mas não a desagradava. Era como estar em casa. Michael se sentia como se apreciasse um novo roteiro, ainda sem saber se era ou não adequado ao papel, por mais que algo dentro de si lhe dissesse que ele certamente se arrependeria de deixar aquele roteiro passar. Foi então que sorriu para o menino, puxando assunto com ele, porque não conseguiria fazê-lo com Rosamund.
- Então, o que mais você gosta de fazer além de ver filmes?
- De ler. Me conta como é fazer um filme.
O menino falou quando Rosamund tirou novamente a máscara do rosto dele e Michael sorriu porque poderia passar muito tempo falando sobre isso, sem ter que atrapalhar a inalação do garoto. Michael tinha a voz cadenciada enquanto falava do último filme que gravara, dos locais que visitara e das pessoas que conhecera. Rosamund acariciava os cabelos do filho enquanto se aproveitava de tudo que ele dizia. Era bom poder novamente escutá-lo empolgar-se com um projeto, sentir-se incluída na vida dele, mesmo que nenhuma das palavras fosse dirigida diretamente para ela.
- Eu acho que ele dormiu.
Michael falou depois de um tempo, dessa vez olhando diretamente para Rosamund. O soro já estava acabando e, de fato, Anthony não apenas respirava tranquilamente, como tinha os olhos fechados e emitia um leve ressonar. Ela sorriu, esperando o soro acabar para finalmente retirar a máscara do rosto do menino e beijar-lhe a testa, sentindo-se tranqüila.
- Vou chamar a enfermeira para saber se vocês já estão liberados.
Ele falou baixo e ela assentiu, sem se incomodar em se mover. Não demorou para que Michael voltasse acompanhado e, as exatas 21:41 Anthony estava oficialmente liberado para voltar para casa.
- Como você veio para cá?
Michael perguntou antes que ela levantasse.
- De taxi.
- Então eu deixo vocês em casa.
- Obrigada.
Os dois sorriam, mas Rosamund percebeu que algo o deixava desconfortável, o que lhe apertou o peito – pelo menos até que ele voltasse a falar, enquanto ela tentava arrumar o filho nos braços para poder levantar-se.
- Se você quiser eu o levo até o carro. Ele é pesado para você.
- Isso me faria eternamente grata.
**
Rosamund subiu as escadas logo atrás de Michael, observando-o carregar sem dificuldade o menino adormecido. Só o ultrapassou quando finalmente teve que abrir a porta, guiando-o pelos conhecidos caminhos da casa para o quarto que ele mão vira depois de reformado. Pediu que ele esperasse um pouco só enquanto tirava a colcha da cama antes de deitar o menino, agradecendo-lhe com um sorriso silencioso quando ele finalmente o fez.
Michael pensou em esperar na sala enquanto ela tirava os sapatos e as roupas pesadas do menino, vestindo-o com a calça do pijama e deixando-o com a mesma blusa que já estava antes de beijá-lo da testa e se afastar, mas não conseguiu sair da porta do quarto, observando-lhe os movimentos cuidadosos com atenção. Lembrava-se que uma ou duas vezes ela tivera que fazer o mesmo com ele, jogando-o na cama depois de alguma bebedeira, mantendo-o acordado até que colocasse duas aspirinas dentro da sua boca e o fizesse engolir. Ela nascera para ser mãe. Qualquer cego poderia notar isso só pelo modo que ela falava dos filhos das amigas. Ele só fizera questão de ignorar aquela faceta dela porque sabia não estar pronto para ser pai. Não quando estava sempre viajando para um novo projeto, dando mais atenção à carreira do que qualquer outra coisa.
Rosamund não reclamara em ocupar o segundo plano, na verdade, ela entendia as necessidades dele, até porque ela tinha o próprio trabalho. Uma criança, entretanto, merecia mais do que um pai ausente, e Michael sabia o suficiente disso. A pergunta era: ele estava pronto para deixar de dar tudo para sua própria carreira para se voltar para a família?
Os dois saíram juntos do quarto do menino em silêncio pelo menos até chegarem à sala. De todos os modos que ela imaginou terminar aquela noite, certamente aquele não tinha sido imaginado – ainda que a vontade de que ela não acabasse houvesse feito parte de algumas das conjecturas de Rosamund.
- Obrigada, de verdade. E perdão novamente por não poder ter ido jantar com você.
- Eu já disse que você não tem que pedir desculpas por nada. – e, depois de uma curta pausa, ele continuou – Você chegou a comer alguma coisa?
Rosamund só sorriu, balançando a cabeça negativamente. Sequer tivera tempo de pensar em sentir fome e, se fosse o caso, poderia tomar um copo de leite antes de ir para a cama.
- Se você ainda quiser o jantar eu posso comprar algo para nós dois.
- É uma ótima idéia, se você não se incomodar em trocar um bom restaurante pelo chinês da esquina e a mesa da minha cozinha.
- Eu nunca estive interessado no restaurante, mas na companhia.
Os dois sorriram, ela tentando esconder o rubor que subira em sua face enquanto ele fazia de conta que não o vira. Não demorou para que Michael saísse, levando consigo a chave dela, já que não tinha há algum tempo a chave daquele apartamento. O restaurante chinês, que ficava a menos de duas quadras do prédio, fora praticamente uma constante no relacionamento dos dois. Naquela hora já não mais tinha a onda de habituais fregueses e um dos garotos esquálidos de olhos puxados balançava a cabeça enquanto anotava os pedidos com agilidade.
Rosamund aproveitou-se da ausência dele para tirar a maquiagem do rosto e arrumar minimamente o próprio quarto. Quando voltou para a sala, não sem deixar de espiar o quarto do filho no caminho, encontrou-o entrando no apartamento com duas sacolas de comida e o cheiro familiar enchendo o ambiente.
- Eu ajudo você.
Os dois arrumaram a mesa e tão logo se sentaram os temores de que aquele seria um jantar silencioso mostraram-se infundados. Provavelmente haviam se esquecido da facilidade que sempre fora conversar com o outro, ainda que Rosamund sempre colocasse a mão sobre os lábios quando ia rir de algum comentário besta, temendo acordar o filho. Eles ainda riam quando saíram da mesa para o sofá, ela carregando os scones que sobraram do jantar de Anthony e ele levando duas xícaras de chá quente, que não combinavam em nada com o jantar chinês, mas que faziam com que qualquer pessoa se sentisse melhor.
Sentaram-se lado a lado e foi somente após mais alguma conversa, os chás bebidos e os scones não passando de um pires sujo na mesinha de centro que ela sentiu o peso do cansaço do dia. Recostar a cabeça no sofá e fechar os olhos longamente foi inevitável, bem como o sorriso ao abri-los e ver Michael lhe encarando.
- Você está cansada.
- Eu percebi.
O tom de voz dela era de quem não queria admitir aquilo. Levantou-se e apanhou o prato, colocando no meio dele as duas xícaras para levar tudo para a cozinha. Lavaria a louça no dia seguinte sem nenhum problema, por mais que não quisesse pensar no amanhã e em como estaria sua vida nele. O pensamento a prendeu na cozinha mais do que o necessário, e quando se deu conta Michael já ia a sua busca.
- Está tarde para voltar para casa. Eu estava pensando se você vai me deixar dormir aqui hoje.
Aquilo a pegara de surpresa e ela não sabia o que responder. Estava cansada e o susto que levara com o filho a fizera ficar vulnerável. Seria bom deitar novamente na mesma cama que ele, encostar a cabeça em seu ombro e relaxar. Tinha que pensar, entretanto, que não estaria confundindo apenas os próprios sentimentos ao fazê-lo, mas também os de Anthony – e nenhum dos dois tinha o direito de fazer aquilo com o menino. Michael sabia que a demora dela em responder não era um bom sinal, mas não ousava se mover enquanto ela não o fizesse.
- Mike, eu não posso... Não seria justo com o Anthony acordar e me ver dormindo com você.
Pelo menos não enquanto os dois não resolvessem todas as diferenças entre si. E ela sabia que, no fundo, por mais que quisesse, também não seria justo consigo mesma estar com ele sem saber que fim aquilo teria.
- Eu só quero ficar. Eu não me importo em dormir no sofá.
- E como vai ser amanhã?
- Vou esperar até ter certeza de que você está descansada e vou tentar te seduzir novamente. Até que você me deixe novamente entrar na sua vida.
Rosamund passara tempo demais sentando expulsá-lo dela. Tempo demais pensando em como seria se ele voltasse e se nunca mais voltasse, mas nenhum de seus pensamentos a preparara para aquela abordagem. Eles nunca preparavam. Encararam-se por um bom tempo e, por mais que ela tivesse muito a dizer, a única coisa que saiu dos seus lábios foi:
- Eu sempre disse a você que eu só terminava relacionamentos uma vez.
- Eu não estou pedindo para terminamos, e sim para que nós possamos recomeçar, e você não tem nenhuma regra quanto a isso.
O raciocínio dele a fez ficar calada por mais um tempo, mas dessa vez foi Michael quem rompeu o silêncio.
- Admito que errei com você. Não só com a questão da adoção, mas também com muitas outras antes dessa. Eu já ganhei até uma bronca dos meus pais por ter deixado você escapar, mas nada se compara a como eu venho brigando comigo mesmo. Eu tenho que te pedir desculpas por isso. – o fato de ela não desviar os olhos dele era um bom sinal, ainda que o rosto estivesse corado e ela completamente muda, então só cabia a ele respirar fundo e terminar o que tinha para falar, o que esperara a noite toda para fazer - Eu quero você de volta. E se com você vier um restaurante que suga boa parte da sua vida e um menino asmático, só me resta aceitar o pacote completo, porque eu já sei que sem você nem o meu vício em trabalho faz sentido, e eu também venho com um pacote que inclui algumas viagens e vício em nicotina. Então, desculpa. Eu não prometo que vou ser perfeito, mas eu posso prometer que vou tentar.
Rosamund suspirou com vontade de chorar, mas não poderia fazê-lo, não na frente dele. Percebeu a ironia daquilo estar acontecendo na cozinha de sua casa, enquanto o filho dormia no quarto perto e ela mais parecia uma gata borralheira do que uma mulher que merecia uma declaração de amor digna de um filme. Só de olhar para ele sabia que ele tinha decorado aquela fala – provavelmente prevendo que ela ficaria muda – mas também sabia que as palavras não eram de nenhum personagem, mas dele. Somente dele.
- Eu não sou completamente inocente em tudo o que aconteceu, Michael, mas eu não tenho como pensar nisso agora.
- Eu sei disso. E, como eu disse, eu vou esperar você estar descansada até tentar te conquistar de novo. Eu só quero que você me deixe ficar por perto. É só isso que eu quero essa noite.
Ela demorou novamente a responder, mas pelo menos se movia para fora da cozinha quando o fez.
- Eu vou pegar um lençol e um travesseiro para você.
**
Mais do que os raios de sol invadindo o quarto sem nenhum convite, ou mesmo a sensação de estar completamente descansado, ainda que a mente estivesse um pouco nublada fez com que saísse da cama. Na verdade, o único motivo para Anthony levantar-se cedo naquele sábado foi a sensação de boca seca e a sede que fazia ficar difícil pegar no sono novamente. Coçou os olhos preguiçosamente antes de jogar as cobertas para cima, testando a respiração por alguns segundos antes de pular da cama. Podia beber um bom copo de água antes de ir para a cama da mãe, se acomodar os braços dela e deixar que a preguiça reinasse. Entretanto, antes mesmo de entrar na cozinha, estancou ao ver que alguém dormia desconfortavelmente no sofá.
Lembrava que fora o tal Michael a carregá-lo na noite anterior até a cama, bem como que ele parecia ser um cara legal, mas não sabia se deveria gostar dele. Anthony sabia o que era um ex namorado e que aquele era o de Rosamund. Talvez o ex significasse apenas que ele devesse dormir no sofá invés de no quarto com Rosamund, ou então ela o estava punido por tê-la feito chorar antes – mesmo que a mãe sempre dissesse que era uma chorona por natureza e que ninguém tinha culpa por suas lágrimas, Anthony sabia que ela chorara muitas vezes por aquele ex namorado. O ponto é que o fato de ele parecer legal não era suficiente para gostar verdadeiramente dele.
Não havia o mínimo de conforto em um sofá pequeno para um homem de 1.80 metros, ainda assim ele só demorou a pegar no sono, virando praticamente uma pedra desde que isso aconteceu. Foi somente quando um especial raio de sol enveredou pela cortina não fechada da sala que Michael começou a tomar consciência da dor generalizada que se espalhava por seus músculos e ossos. Botar o lençol sobre o rosto jamais faria com que ele conseguisse voltar a dormir por isso o jeito foi abrir os olhos e esticar os músculos doloridos. Passou as mãos pelo rosto e bocejou e já estava quase levantando para ir ao banheiro quando encontrou os olhos do menino a lhe encarar.
- Você está se sentindo bem?
A voz saiu mais rouca do que o habitual, mas aquilo não era de se estranhar, ao contrario da pergunta feita. Afinal, ele passara muito tempo alimentando a teoria de que não devia se importar o suficiente com o menino.
- Eu tô só com sede.
Anthony respondeu depois de algum tempo, rumando até a cozinha. Michael não se limitou a observá-lo, mas também a segui-lo com certa curiosidade. Rosamund lhe falara sobre as coisas difíceis pelas quais a criança passara, mas ele parecia confiante em busca de um copo, mesmo que ainda um pouco pálido, e não a criança problemática que ele sabia que ela retirara do orfanato. O que lhe veio na cabeça foi uma frase que a própria Rosamund lhe dissera, mas que, á época, ele não entendera bem o significado: "O amor faz as coisas e as pessoas florecerem." Ela então estava fazendo um bom trabalho ao amar aquele garoto.
- Água ou suco de laranja?
- Só água.
- Eu pego para você.
Esperou que o menino lhe entregasse o copo que levava na mão, o que demorou um pouco, mas aconteceu, enchendo-o de água antes de entregá-lo novamente para ele. Os dois se sentaram frente a frente à mesa da cozinha, em uma discreta análise um do outro, medindo forças sobre quem primeiro quebraria o silêncio.
- Você realmente gosta da Rosamund?
A primeira mãe de Anthony sempre dissera que dormia na mesma cama que os outros homens porque gostava deles, por isso não entendia muito bem o porque Michael dormira na sala, já que ele tinha certeza que Rosamund gostava de verdade dele. Se Michael estivesse bebendo alguma coisa, provavelmente teria engasgado ante a pergunta, mas, por sorte ou azar, ele estava com a boca seca e sem nenhuma boa desculpa para evitar o confronto com um menino de 6 anos de idade.
- Sim, eu gosto de verdade dela.
A resposta saiu mais clara do que ele esperava, e ele não estava se utilizando de nenhuma das técnicas de palco para conseguir modular a voz. A verdade era que amava aquela mulher, e nos últimos tempos não fazia muito sentido esconder isso se si mesmo. Também já não era também muito novo, e, mesmo que parecesse ridículo, ele queria se aquietar. Não tinha o mesmo pique para as grandes festas e, mesmo que o trabalho requisitasse dele longas viagens, os últimos seis meses foram mais do que suficiente para provar-lhe o quão era importante ter um local para voltar. Não uma casa vazia, mas um par de braços quentes que não se importavam unicamente com a estrela de cinema, mas com o homem por trás dela. Anthony pareceu notar a sinceridade na voz dele, tanto que ficou calado enquanto bebia demoradamente a própria água, ainda pensando em ir para a cama da mãe.
- O que você come de café da manhã?
Michael aproveitou-se do silêncio dele para mudar de assunto, bem como fazer algo útil enquanto Rosamund não acordava.
- Eu como cereais e leite e torrada com geléia de morango. – ele respondeu de pronto, com um sorriso de quem aprovava a idéia de café da manhã – E você?
- Eu tomo café, torradas com margarina, às vezes bacon, ovos, lingüiça e salsichas. Se eu tiver sorte, também tenho panquecas.
Anthony riu e Michael sentiu o estomago reclamar de fome ante a imagem mental de toda aquela comida. Poderia acordar Rosamund e pedir um café da manhã digno, mas acabaria por ser morto por privá-la de algum tempo de sono, bem como não ganharia nenhum café da manhã. Foi essa constatação que o fez ter uma idéia brilhante, enquanto se perguntava se o menino aceitaria virar seu cúmplice na prática do delito de mexer nas panelas de uma chef.
- O que você acha de fazermos um café da manha reforçado? Depois nós poderíamos levá-lo para a cama da Rosamund e ver se ela nos aprova.
Mais uma vez Anthony o olhou desconfiado, antes de rir com gosto. A mãe já o ensinara a cozinhar algumas coisas, apesar de ensinar muito mais para o tio Severus e deixar ele usar o fogão e as facas. Talvez ela gostasse se ele fizesse o café da manhã, por isso se animou com a idéia, levantando para deixar o copo no lugar antes de ir buscar a frigideira.
- A mãe não deixa eu usar o fogão, mas ela deixa o tio Severus. Acho que ela também deixa você usar.
- Ela me deixa sim. Só temos que trabalhar em silêncio para ela não acordar.
Não era bem uma verdade, mas também não uma mentira. O problema era só o fogão dela, mas ele pretendia deixar tudo organizado. Balançou a cabeça positivamente para o menino antes de pegar a frigideira dele, indicando que ingredientes ele deveria pegar antes de enfiar a cabeça dentro da geladeira.
Rosamund jamais tivera por hábito dormir com a porta do quarto fechada – exceto nos finais de semana quando ainda morava com os pais, só para não ser incomodada pelos barulhos da casa enquanto queria dormir até tarde do dia – e, desde que adotara Anthony, o hábito de portas abertas ganhara ainda mais força. Demorara bastante para conseguir dormir na noite anterior, mais do que a habitual insônia. Virara de um lado para o outro na cama, refletindo sobre os últimos seis anos da sua vida, os últimos 8 meses e o que Michael dissera na noite passada. Chorou o que quisera chorar na cozinha, escondendo o rosto no travesseiro de modo a nenhum ruído ser ouvido fora do quarto. De repente, sem que ela se desse conta, os pensamentos foram silenciados pelos sonhos e ela finalmente relaxou como merecia.
Uma hora estava em um quarto de hotel em Paris com Michael, outra na casa dos pais, enquanto sua mãe dançava com Anthony de modo divertido. Fazia tempo que não os visitava e talvez fosse bom para Anthony algum tempo com os avós. Ele se apaixonara quase que imediatamente por eles, provavelmente pelo fato de que fora comprado com livros e doces, além do que conseguira brincar com os primos, o que era importante para uma criança da idade dele. A II Oficina Culinária para crianças seria um sucesso e Lara certamente não se oporia a ajudá-la e passar um tempo de férias no campo. Era com isso que estava sonhando, ensinar aos sobrinhos e aos filhos como fritar bacon, quando sentiu o corpo se puxado para a direita, bem como um peso indistinto ser retirado de sua cabeça e alguma coisa cutucar sua bochecha.
- Acorda, mãe. A gente fez o café da manhã para você.
Não foi difícil chegar a conclusão de que Anthony deveria ir na frente para o quarto de Rosamund e de que Michael deveria segui-lo, levando a pesada bandeja que continha praticamente tudo que antes havia na geladeira de Rosamund. Anthony se divertira ao vê-lo virar as panquecas, e acabou por admitir que elas estavam gostosas quando ele lhe deu um pedaço pequeno apenas para ser experimentado. Nada que o menino dissesse, entretanto, foi suficiente para que ele ganhasse um segundo pedaço de bacon, o que teria sido decepcionante se Michael não lhe tivesse dito que ele poderia comer o quanto quisesse quando acordassem Rosamund. O menino se esmerou ao colocar as torradas, a geléia e as panquecas na bandeja e foi categórico quando mandou, penas com um gesto, Michael esperar fora da cama enquanto ele subia nela para acordar a mãe.
Rosamund ocupava quase que completamente a cama de casal quando eles entraram. Dormia de bruços e atravessada, com as pernas entreabertas e o rosto escondido precariamente embaixo do travesseiro, a primeira coisa que Anthony tirou de cima dela quando finalmente a alcançou. Só assim puderam ver que a mascara de dormir estava funcionando como tiara, sem cobrir-lhe os olhos, os cabelos estavam realmente assanhados e o rosto descansava sobre parte do lençol embolado e uma das mãos dela.
- Mãe...
Foi só no segundo chamado que Rosamund abriu os olhos, olhando para o filho por apenas um segundo antes de sorrir, puxando-o para um abraço antes de deitar-se encima dele, beijando-o demoradamente no rosto.
- Bom dia, meu príncipe. Dormiu bem? Tá se sentindo melhor?
- Para, mãe! Eu tô bem.
Ele fez uma careta enquanto tentava escapar dela, mas o tom de voz demonstrava contentamento mesmo quando ela o largou e pegou o celular na mesinha de cabeceira para descobrir que ainda não tinha chegado a hora do remédio dele, e de que não era tão cedo, mas também não tão tarde.
- A gente trouxe café da manhã! Vem, Michael!
Só então Rosamund virou-se para a porta, descobrindo que o sonho de bacon frito não era culpa apenas da sua imaginação gulosa. Sorriu e sentou-se na cama, não sem deixar de balançar a cabeça negativamente enquanto escondia a parte debaixo do rosto com o lençol.
- Deve ser recompensador preparar café da manhã para um espantalho de mau hálito.
- Bom dia para você também, espantalho.
Ela estreitou os olhos e tirou a máscara de dormir dos cabelos, buscando a liga de cabelo que sempre deixava ao lado da cama para controlar a juba, antes de começar a espiar o conteúdo da bandeja que fora colocada sobre o seu colo.
- Eu já posso comer bacon?
- Pode.
O menino sorriu ante a resposta de Michael, pegando um dos pedaços de bacon e o colocando na boca, mastigando feliz.
- Senta também, Michael. Você não pode comer ai de pé.
Anthony disse sem desviar o olhar para ele, pegando dessa vez o bacon com a colher e o colocando sobre uma torrada, sem se importar com os adultos que se encaravam. Michael pedia autorização, e não apenas para sentar-se na cama e compartilhar com eles uma refeição. Ela pensou sobre tudo em menos de um segundo, porque, dentre todas as coisas importantes que ali estavam envolvidas, as duas mais importantes estavam ao alcance de suas mãos – e ela não se daria ao luxo de deixar nenhuma escapar. Balançou a cabeça positivamente, de modo praticamente imperceptível, fazendo-o abrir um de seus sorrisos de tubarão enquanto sentava-se ao seu lado. Tinham muito a conversar, muitos problemas a resolver, mas teriam tempo para aquilo.
O importante é que ele tinha razão, ela não tinha uma regra quanto a recomeçar. E fora um recomeço que ela dera a Anthony quando o adotara. Era um recomeço que ela oferecia a Michael enquanto encostava a cabeça no ombro dele só por um segundo antes de entregar-lhe uma torrada com queijo e ovos, sem querer chamar atenção do menino para os dois. Era um recomeço, e Michael não pretendia fazê-la quebrar a regra sobre acabar duas vezes.
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