⇥ Um inspector a sério ⇤

A polícia fechou o estúdio 4 — onde estavam a gravar a série Rastos de Sangue — em menos de uma hora e meia e este não seria aberto tão cedo. Não deixava de ser algo irónico: tinham tanta pressa para gravar os últimos episódios e agora só poderiam fazê-lo depois do crime ser resolvido.

Todo o staff — técnicos, atores, assistentes, seguranças e até mesmo a equipa que trata da limpeza do estúdio — foi retido para prestar declarações. A morte tinha ocorrido na noite anterior, a 25 de Dezembro, e todos os que têm acesso ao estúdio são considerados suspeitos. Quando fossem verificados os álibis, pelo menos metade daquela gente seria ilibada. No entanto, de momento, não se podia descartar ninguém.

A inquietação no estúdio era palpável. Agentes da polícia andavam para cima e para baixo a verificar identidades e a remexer tudo à procura de provas, enquanto a verdadeira equipa forense analisava o corpo da mulher assassinada.

Bryson e os colegas estavam impacientes. Tinham sido os primeiros a falar com a polícia, mas por ordem do inspetor responsável pelo caso — que ainda não tinha sido visto por nenhuma alma em canto algum, diga-se de passagem — ninguém saía da cena do crime se não tivesse um forte álibi e todos aqueles que saíssem antes do tempo seriam arrastados até à esquadra, algemados e no banco de trás de um carro da polícia, que abriria caminho com as sirenes ligadas de propósito para o espetáculo.

— Quando é que podemos ir embora? — perguntou Daisy pela milésima vez, voltando a roer as unhas em seguida. A jovem tinha um verniz negro a decorar as unhas no início daquela manhã mas, com o nervosismo, tinha-o retirado todo. O passo seguinte foi retornar ao vício de criança que tinha abandonado com sucesso há 12 anos.

Os olhos de Simon abriram-se naquele momento. Tinha estado a praticar uns exercícios de respiração e meditação para se tentar manter zen, mas era impossível. Por muito que tentasse bloquear o mundo exterior para encontrar paz e calma, a ansiedade e o desconforto dos outros à sua volta estavam a entranhar-se na sua pele e não havia maneira de as afastar. Para distrair a sua mente já de si atarefada, Simon ia responder à colega de trabalho e, provavelmente, iniciar algum tipo de discussão. Porém, uma figura recém chegada captou-lhe a atenção.

Acabava de entrar no estúdio uma mulher alta, jovem, de cabelo negro preso ao crânio em inúmeras tranças que lhe passavam os ombros em comprimento, pele escura e brilhante e óculos de sol a esconder os olhos.

— Acham que é o tal inspetor? — perguntou Damien com curiosidade. — Ou inspetora, neste caso.

A mulher olhou de relance a multidão de suspeitos. Em seguida, retirou os óculos escuros da cara, revelando uma nódoa negra junto ao olho direito, antes de os pendurar no decote em V da camisola preta. Pensando no longo trabalho que teria pela frente, esta dirigiu-se ao cenário onde a equipa forense terminava a recolha de provas.

— Madeleine!

A mulher ruiva sobre o cadáver levantou o olhar para a mais nova, ajeitando os óculos de ver ao perto com as costas da mão enluvada.

— Willow! — saúdou com um sorriso, que depressa foi substituído por um semblante preocupado. — O que é que te aconteceu ao olho?

A morena agachou-se ao lado da mulher que tinha idade para ser sua mãe, levando algumas das tranças a escorregar das costas para o seu peito.

— Não foi nada. Devias ter visto o outro gajo — respondeu, tentando sorrir para evitar um interrogatório extenso. — O que é que temos aqui?

A ruiva franziu o cenho, vincando as rugas da idade, mas deixou as dúvidas da curiosidade morrer. Insistir com Willow só traria um silêncio irritado àquela cena do crime, que em nada os ajudaria a terminar o trabalho mais depressa.

— Mulher na casa dos 30 — começou Madeleine com um suspiro. — Não tem identificação e até agora não encontrámos nenhuma mala ou saco com objetos pessoais. Foi encontrada assim pelos atores que estiveram a manhã toda a gravar um episódio de uma série.

A inspetora desviou o olhar da cara da colega para o cadáver deitado de barriga para cima à sua frente.

— Com ela ao lado?

— Ao que parece.

— Como é que alguém não repara que está ao lado de um cadáver? Especialmente se lá estiver ao lado por horas a fio?

Madeleine encolheu os ombros.

— Disseram que pensavam que era um manequim da maquilhadora...

Willow fez uma careta de desagrado. Não gostava de atores e aquela falta de atenção à realidade parecia ser mais uma razão para somar à sua lista dos porquês.

— Um ferimento perfurante no abdómen levou a uma hemorragia massiva que a conduziu à morte — continuou Madeleine, puxando o tecido que cobria o corpo da vítima para que Willow pudesse ver aquilo de que falavam. — Penso que tenha sido uma faca ou uma tesoura comprida, mas ainda não encontrámos a arma do crime para provar a minha teoria.

A negra assentiu e a ruiva tapou o corpo outra vez.

— Pelas minhas contas, terá morrido há 16 ou 17 horas atrás. Não há indícios de que o corpo tenha sido mexido, pelo que deduzo que tenha morrido aqui. A quantidade de sangue no cenário também apoia a minha teoria. À primeira vista não encontro marcas defensivas, mas só terei a certeza quando fizer uma autópsia pormenorizada. Porém, encontrei marcas de dedos no pescoço.

— Estrangularam-na?

— Não fatalmente, mas acredito que sim. As marcas não são muito visíveis, mas estão lá. Provavelmente tentaram dominá-la.

Willow levantou-se com um suspiro, olhando depois sobre o ombro, para o staff do estúdio à beira de um ataque de nervos.

— Como é que o estúdio está aberto a dia 26? Estes gajos não tiram férias?

— Podia dizer o mesmo de nós — resmungou Madeleine entre dentes, arrumando o seu material. 

— Infelizmente, o crime não tira férias, pelo que nós também não podemos — interviu o agente Laker, um veterano da polícia conhecido das duas mulheres, que se aproximava delas com passos largos. — Hollywood até costuma ter umas férias consensuais de 21 de Dezembro a 7 de Janeiro, mas isto não é Hollywood. Parece que a produtora está a passar por um aperto e quer gravar tudo o quanto antes, tanto para aproveitar que ainda consegue pagar aos atores como para fazer coincidir a estreia dos episódios com a altura em que se prevê que tenham um pico de audiências.

— Estás muito bem informado, Benjamin — disse Willow, estendendo uma mão para o homem.

— Ter a minha idade traz os seus benefícios — disse com um sorriso sábio, apertando a mão negra da mais nova. — E ter uma sobrinha em Hollywood também.

Uma equipa veio buscar o corpo da vítima e o estojo dos materiais da Madeleine enquanto a mesma cumprimentava o recém-chegado.

— Tenho de ir andando para o laboratório, que o trabalho não se faz sozinho — queixou-se Madeleine, retirando os óculos da cara até que apenas a corrente ao seu pescoço os impedisse de cair no chão.

— Informa-me assim que souberes alguma coisa útil — disse Willow.

A mais velha abanou a mão à sua frente, como que dispensando o comentário.

— Sabes que és sempre a primeira a quem eu conto as novidades. — Com um gesto, a mulher ruiva despediu-se dos colegas. — Não se esqueçam de me enviar as coisas interessantes que encontrarem entretanto. Até logo!

E em menos de nada, a maioria da equipa forense tinha desaparecido, como a bruma matinal evaporada pelo calor dos raios do sol nascente.

— Will, devias parar de arranjar confusões, dentro e fora do trabalho. As nódoas negras e os arranhões não ficam bem a uma jovem da tua beleza.

Willow olhou de soslaio o ancião ao seu lado, escolhendo ignorar o gracejo barato. A intenção dele era fazê-la comprar uma briga que a levasse a expor a verdade, mas ela conhecia o amigo, e de certa forma também mentor, demasiado bem. Não iria cair tão facilmente na sua jogada.

— Deduzo que tenhas informações importantes para mim — disse, olhando o ir e vir do pessoal no estúdio.

— Se sentires que isto é demasiado para ti e que estás à beira de explodir, faz uma pausa para tomar ar puro, por favor. Todos compreendemos.

— As. Informações. Benjamin — sibilou ela, esforçando-se por conter a irritação que lhe começava a borbulhar nas veias.

O veterano estudou-a, reparando na tensão que lhe possuía o corpo e que ela era incapaz de dissipar. Desde pequena que Willow sempre fora transparente naquele aspeto. Por muito que fosse profissional e que conseguisse esconder as suas emoções do escrutínio alheio, a raiva e a irritação eram sentimentos que escapavam com frequência do seu controlo, tingindo-lhe as faces negras e os olhos achocolatados. E era por isso que o homem sabia que ela não estava preparada para ouvir o que ele tinha para lhe dizer. Talvez nunca estivesse.

— Segundo a maquilhadora e o realizador, a vítima chama-se Grace Reagan, mas a minha equipa está a verificar. Escusado será dizer que estás à frente do caso e todos os meus recursos são teus. Vou reportar-te tudo o que os meus homens descobrirem e a última palavra será sempre tua.

Willow assentiu, incentivando-o a continuar.

— As chefias e a produtora pedem discrição e celeridade a resolver o caso, pelo que terás rédea larga desta vez. — Um sorriso felino cresceu no rosto da jovem e o homem revirou os olhos. — Mas vê lá se não exageras...— suspirou. — Também já começámos a fazer a verificação dos álibis e até agora bate tudo certo.

Willow assentiu de novo, voltando-se para ele.

— Já mandaste chamar aqueles que estão em falta?

Os olhos do velho Benjamin, naturalmente meio fechados, arregalaram-se.

— Pensava que não tinhas chegado a tempo de ouvir isso.

Ela sorriu.

— Lá porque não me veem, não quer dizer que eu não esteja por perto.

Willow não se tinha feito visível logo ao chegar ao estúdio. Em parte era para angariar toda a paciência que conseguia para resolver o caso, mas servira principalmente para poder analisar o espaço e as pessoas que o preenchiam sem que as mesmas se sentissem inibidas pela sua presença. Assim, caminhando nas sombras dos bastidores, tinha conseguido ouvir alguns dos primeiros depoimentos prestados pelo pessoal do estúdio 4 e descoberto que algumas das figuras que tinham estado presentes na noite anterior estavam ali em falta. Era, por isso, importante que a sua equipa os reunisse o quanto antes. Algum deles poderia ter sido o último a ver a vítima com vida.

O veterano abanou a cabeça ligeiramente, desenhando um sorriso sem dentes com os lábios fendidos e gretados.

— Já pus alguns agentes a tratar disso.

A jovem agradeceu mentalmente pela eficiência do homem a seu lado. Benjamin era sábio e experiente o suficiente para mandar fazer coisas simples sem que Willow precisasse de as ordenar, o que tornava o seu trabalho muito mais fácil.

— Mas não me estás a dizer tudo — disse ela ao fim de uns momentos de silêncio. — Desembucha.

O velho não conteve um arrepio. Havia uma boa razão para Willow ter chegado a inspetora tão cedo na sua carreira.

Olhando em volta, ele agarrou-a suavemente pelo braço e conduziu-a para uma zona menos movimentada do estúdio que, mesmo assim, estava à vista de todos. Estava na altura de ser franco e ele tinha o dever de proteger quantas almas conseguisse das consequências das suas palavras.

— O teu... — Benjamin pigarreou, corrigindo o seu discurso. — O comandante distrital quis oferecer-te um presente de Natal atrasado.

Ela congelou de repente, libertando o seu braço com brusquidão.

— O quê? — Os seus olhos estreitaram. — Quem? — sibilou, dando um passo na direção do veterano com uma pose involuntariamente ameaçadora.

Benjamin emudeceu-se e baixou a cabeça, desviando os seus olhos velhos e míopes das íris achocolatadas que o perfuravam. Havia sangue naquele olhar.

— Não mates o mensageiro — advertiu ele, ainda sem a encarar.

Willow ficou em silêncio, tentando entranhar no cérebro o facto de que se deveria controlar. Porém, os seus esforços foram interrompidos.

— Inspetora Crossford — disse uma mulher franzina e fardada, que se tinha aproximado deles sorrateiramente.

— Sim? — cuspiu a negra, com uma brutalidade desnecessária e não intencional.

A agente engoliu em seco antes de falar, incentivada pelo aceno de cabeça de Benjamin, seu superior.

— Está ali um inspetor a tentar colocar-se ao corrente do caso e a requerer a sua presença.

Willow olhou por cima do ombro da mais baixa, procurando na multidão distante o homem referido.

— Quem é que ele pensa que é para invadir a minha cena do crime sem permissão?

A caucasiana fardada tinha ar de quem preferia estar em qualquer lugar do mundo menos ali, a passar o recado que lhe fora confiado.

— Ele... ele diz que é o seu novo parceiro.

A réstia de controlo esfumou-se, levando a inspetora Willow Crossford a não parecer humana naquele momento: quem quer que a encarasse poderia facilmente confundi-la com um enorme e enraivecido touro negro.

— Feliz boxing day — disse Benjamin Laker, recuando uns passos para trás na tentativa de se proteger do que quer que fosse que viesse a acontecer a seguir.

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