Capítulo 10

OS DIAS que seguiram depois que cheguei na casa de Viktor, foram tão agitados quanto um lago congelado no inverno.

Praticamente passei todas as manhãs e tardes fazendo coisas como pensar em como provaria a minha inocência, dar de comer a Chess, que graças à ajuda de Ty já tinha sua comida, caminha e até mesmo alguns brinquedinhos que ele comprou por conta própria e ajudar Bertha na cozinha ou simplesmente conversar enquanto ela preparava seus quitutes.

Tyron tinha resultado ser um amante dos animais e cada vez que ele chegava, minha gata ia correndo receber carinho do cara de quase dois metros de altura.

Eu também percebi que ele estava ficando cada vez mais na casa e menos no cassino, então depois de um bom interrogatório como só eu sabia fazer, descobri que Ty tinha sido designado como meu guarda-costas pessoal.

Ou melhor dizendo, eu tinha ganhado uma babá que mais parecia um armário ambulante e com bíceps maiores que a minha cabeça.

Mas eu não reclamava, o cara era uma boa companhia e amava escutá-lo falar sobre sua namorada com tanto afeto.

Ty até poderia aparentar ser um brutamontes, mas por dentro, ele não passava de um garotinho apaixonado e isso fazia um frio percorrer no meu estômago desejando sentir o mesmo ao saber que alguém se importava tanto comigo ao ponto de seus olhos brilharem com a simples menção do meu nome.

Ty era do tipo de pessoas que poderia passar de alguém amoroso e gentil a extremamente letal em um piscar de olhos. E eu adorava essa sua capacidade de controlar seus sentimentos a tal ponto que qualquer um se surpreenderia com a rapidez com que ele se transformava.

Bertha dizia que Tyron era um bebê fofo no corpo de um homem que facilmente poderia quebrar um pescoço, e eu concordava ao cem por certo com isso.

Por falar na governanta, ela e eu acabamos nos aproximando quando ela fez questão de deixar bem claro que o amor que sentia por Viktor, era o mesmo de uma mãe com um filho, embora eu tenha afirmado várias vezes que não estava preocupada em obter essa informação.

Ela era uma mulher tão interessante e cheia de vida que não sei como conseguia ficar naquela casa, trancada numa prisão luxuosa vinte e quatro horas por dia.

Eu até cheguei a ficar com pena dela, inclusive tentei convencê-la de sair um pouco, passear na cidade e tomar um café, mas ela me garantiu que estava bem com essa decisão que não a trocaria por nada, então parei de insistir.

Cada um sabia o que fazia com a sua vida.

Passamos uma tarde inteira conversando sobre seus familiares que descobri serem todos da Alemanha. Ela me contou que jamais se casou, que o único homem que ela chegou a amar, morreu em um acidente de carro e levou com ele um pedaço do seu coração, de forma que ele nunca mais voltaria a ficar inteiro e por isso ela não achava justo se relacionar com outra pessoa, já que não poderia se entregar por completo.

Sua história era triste e romântica ao mesmo tempo, mas eu a entendia perfeitamente.

Ao desaparecer, Viktor não só quebrou meu coração em pedacinhos, como também levou parte dele consigo me fazendo viver à base das migalhas emocionais que eu recebia de homens que nunca seriam capazes de chegar aos seus pés.

Por mais que tivesse sido ferida pelo abandono de Viktor, ainda assim eu sabia que ele seria o único capaz de me fazer feliz. Eu sabia que estaria presa para sempre nas lembranças daquilo que poderíamos ter sido e ao pensar nisso, ficava ainda mais evidente o quão burra tinha sido durante todos esses anos ao esperar que ele de fato fosse voltar.

E agora que eu o tinha ali perto de mim, agindo como um desconhecido, me provocando e arrastando a fúria contida todos esses anos para fora de mim, eu sabia que era questão de tempo para que algo muito ruim acontecesse.

Por isso, durante uma semana inteira cogitei a ideia de me refugiar na casa dos meus pais para não ter que estar no mesmo ambiente que ele, comendo na mesma mesa ou cruzando com ele nos corredores. O problema, é que como a policial que eu era, eu sabia que a casa dos meus pais seria um dos lugares que eles me procurariam e que seria uma tolice minha me entregar de bandeja apenas por não querer ficar perto do cara que eu...

— Você anda muito pensativa ultimamente, querida. Está tudo bem? Aconteceu alguma coisa? -Bertha retirou uma enorme forma de dentro do forno, colocando-a na mesa bem na minha frente e respirei fundo, o cheiro de biscoitinhos frescos se infiltrando pelas minhas narinas me arrancando um gemido de fome acompanhado de um ronco no meu estômago.

— Não é nada, só estava tentando montar esse quebra cabeça bizarro chamado minha vida.

Suas sobrancelhas se levantaram em uníssono e como todas as vezes, eu não conseguia ficar alheia à sua beleza.

Bertha parecia uma modelo de revista e quando descobri que ela tinha apenas quarenta e nove anos, confesso que fiquei chocada.

Ela não parecia passar dos trinta, e essa foi a principal razão por eu ter pensado que ela e Viktor estavam juntos, embora a idade não fosse relevante caso eles decidissem se relacionar.

Mas era surpreendente ver como uma mulher tão linda e elegante se negava a mostrar essa beleza para o mundo.

— Tem certeza? Porque eu acredito que conheço muito bem esse olhar, sabia? -Sorri balançando a cabeça para os lados.

Desde o dia que Viktor e eu brigamos porque pensei que ele estava traindo a sua esposa inexistente, Bertha não parou de tentar me empurrar para cima do seu chefe e amigo, mesmo eu tendo dito mil vezes que não queria saber dele.

Quero dizer, eu ainda gostava de Viktor mais do que queria admitir, porém não correria mais erros.

Não jogaria meu coração para os leões correndo o risco de ser destroçado outra vez.

Eu não sabia nada sobre os seus sentimentos, o Viktor que eu conhecia e me lembrava era um adolescente, as pessoas mudam ainda mais depois de tanto tempo e era difícil reconhecer, mas ele era outra pessoa agora, alguém muito diferente do que estava acostumada a ver todos os dias.

Não fazia ideia se ele gostava de alguma garota ou talvez de um cara, ou talvez dos dois...

Porque uma coisa era ele ter me dito que não estava com Bertha, mas isso não significava que ele fosse solteiro.

E eu não deveria sequer pensar em nós dois juntos.

Tinha coisas mais importantes e urgentes com as quais me preocupar, como por exemplo, continuar viva e livre.

Porra, eu estava com medo, não iria mentir.

Mas também tinha a consciência tranquila por saber que era inocente, o que me facilitava muito na hora de pensar com mais clareza.

— Esse olhar, significa que estou de saco cheio de ficar entediada. -Brinquei jogando um biscoitinho de maisena na boca.

Depois que descobri que era Bertha quem fazia essas maravilhas redondas e sequinhas, pedi que ela me ensinasse a receita, mas a mulher decidiu que seria mais interessante me empanturrar todos os dias com uma quantidade insana dos biscoitos que eram a sua especialidade.

Segundo ela, uma das maiores provas de amor é cozinhar para outra pessoa, e ela realmente amava fazer isso.

— Hum... não tem nada a ver com certa pessoa então. -A loira insistiu e revirei os olhos pela décima vez.

— Nem tudo tem a ver com Viktor, Bertha.

— Eu sei, meu bem, mas isso não significa que não pense nele.

Puxei uma longa respiração antes de responder.

A última coisa que eu queria era faltar ao respeito com alguém que só tinha me tratado bem desde que cheguei.

— O que quer que esteja planejando, pode ir parando por aí. Não precisa tentar dar uma de cupido comigo e com Viktor, porque não vai funcionar. Eu gostava dele quando era uma criança sim, mas agora os tempos mudaram. Não sou mais uma garotinha e sei muito bem o meu valor para ficar correndo atrás de alguém que nunca se interessou por mim. Ele não me interessa mais e mesmo se fosse o caso, não faria nem questão porque sei que não vale a pena. -Embora essa não fosse a minha intenção, soei mais séria do que pretendia e me senti péssima ao ver como seus olhos ficaram arregalados conforme me escutava, no entanto, minha expressão de culpa foi substituída por curiosidade quando notei que seu olhar se dirigia para algo atrás de mim.

Oh não.

Apesar de estar de costas para a porta, demorei menos que um milésimo de segundo para perceber que obviamente alguém havia chegado e engoli em seco apertando as pálpebras quando senti o cheiro do perfume amadeirado tão perto do meu corpo como se eu tivesse borrifado em mim mesma.

— Não se preocupe com Bertha, Alicia. Ela é uma romântica incurável e não entende que eu não estou nem um pouco interessado em uma relação no momento. -As palavras de Viktor vibraram no mais profundo do meu ser e senti o gosto amargo de cada uma delas. — Bertha, preciso de alguns documentos, será que pode trazê-los para mim? É uma pasta azul que está na segunda gaveta da minha mesa no escritório. E pegue também a caixinha branca que está em cima da escrivaninha ao lado da poltrona, por favor. -Ele continuou, se aproximando dela e puxando-a para um abraço carinhoso antes de beijar sua bochecha com intimidade, um gesto que fez meu estômago se contorcer desejando estar no seu lugar.

Argh. Isso não estava indo nada bem.

Não pense besteiras, Alícia!

— T-tudo bem... já volto. -Bertha escapou da cozinha como o diabo foge da cruz, e me levantei para segui-la sem nenhuma intenção de ficar ali depois do que acabava de escutar.

Eu era tão confusa que seria cômico se não fosse trágico.

Dizia a todos que não sentia nada por Viktor, que não me interessava por ele ou que não estava nem aí se ele tivesse alguém o esperando no final do dia, mas por dentro, meu sangue fervia nas veias quando o via, minha respiração falhava com a sua simples presença e minha cabeça dava voltas e voltas cada vez que ele falava comigo com aquela maldita voz rouca.

Parecia como se meu corpo fosse programado para reagir ao seu timbre e quando ele falava, uma corrente elétrica era enviada até uma zona estrategicamente localizada no meio das minhas pernas.

Era horrível estar perto dele, saber que ele dormia a apenas alguns metros de distância do meu quarto, escutar a sua voz, sentir o seu cheiro...

Mas agora que tínhamos nos encontrado novamente, eu sabia que seria ainda mais horrível quando tudo isso acabasse e eu voltasse para a minha realidade, uma realidade onde ele e eu éramos meros desconhecidos.

Dei alguns passos na direção da porta, quando seus dedos se enroscaram no meu pulso e me puxaram levemente para trás fazendo meu corpo inteiro tremer com o contato inesperado.

— Onde pensa que vai? -Respirei profundamente sem coragem para me virar e ter que encarar seus olhos azuis.

— Para o quarto, tenho que ver como Chess está, ela pode ter fome e... -Não consegui continuar falando.

Seu dedão esfregava minha pele me fazendo ter consciência de que ele ainda não tinha me soltado e puxei meu braço com delicadeza arrancando uma respiração pesada dos seus lábios carnudos.

— Preciso conversar com você, por isso vim. Será que consegue parar de fugir cada vez que apareço, Alícia? -Ok, ele tinha um ponto.

Eu me propus a encontrar o mínimo possível com Viktor enquanto permanecesse na sua casa.

Só assim manteria minha sanidade mental intacta e meu coração inteiro.

O problema, é que ao que tudo indicava, ele tinha notado isso e ficado bravo por alguma razão que eu não conhecia.

— Não estava fugindo. -Menti descaradamente. — Sabe como os gatos são esfomeados e Chess tem ansiedade de separação... -Outra mentira esfarrapada.

Escutei mais uma risadinha rouca e cruzei os braços envergonhada agradecendo o fato de que ele não podia ver meu rosto.

— De todas formas, o que queria conversar? -Continuei ainda de costas.

— Não vou falar com a sua bunda, por mais que seja uma ideia tentadora. -Me virei subitamente bem a tempo de ver o vestígio de um sorrisinho safado percorrer seu rosto e balancei a cabeça para os lados soltando uma lufada de ar.

— Sente-se. -Viktor ordenou e levantei uma sobrancelha desafiante. — Se quiser ficar em pé, ótimo, mas eu vou tomar um café enquanto falamos. -Ele explicou dando de ombros sem se abalar.

— Alguém já te disse que você pode ser muito irritante às vezes? -Puxei uma cadeira fazendo exatamente o que ele pediu, contradizendo o que acabava de falar.

— Já fui chamado de muitas coisas, mas essa é a primeira vez que dizem que sou irritante. -Seus lábios se curvaram em outro sorriso que mostrava todos os dentes e por um breve momento esse pequeno gesto me hipnotizou como se fosse uma miragem.

Era incrível como seu rosto se transformava por completo ao sorrir. Uma covinha se formava na bochecha onde não tinha cicatriz, seu olhar se suavizava parecendo duas lagoas pacíficas em vez das pedras de gelo de sempre e até mesmo as pequenas rugas que se formavam nos cantos dos seus olhos fazia com que ele parecesse ainda mais sensual.

— Nesse caso é bom ir se acostumando. -Mordi um biscoito agora frio e foi a sua vez de levantar uma sobrancelha.

— Isso quer dizer que não tem planos de ir embora?

Soltei uma gargalhada sonora.

— Isso quer dizer que enquanto eu ficar aqui, vou te chamar do que eu quiser.

Provoquei como se tivesse quatorze anos e não vinte e nove.

Viktor abriu a boca para falar algo, mas pareceu repensar e desistir ao levar a xícara até os lábios bebendo um longo gole de café fumegante.

Ficamos em silêncio por quase dez minutos, apenas comendo alguns quitutes, bebendo as nossas bebidas e travando uma batalha de olhares antes que um dos dois resolvesse dizer algo.

— Já chega. -Grunhi com impaciência, a curiosidade me corroendo. -Diga logo ou vou te deixar falando com as paredes. -A ameaça não pareceu lhe afetar em nada, mas mesmo assim ele colocou a xícara com cuidado em cima da mesa e coçou a garganta.

— Estive investigando as gravações da casa de Steven, e cheguei à conclusão de que devem ter contratado uma pessoa para matá-lo e fazer parecer que foi você. -Viktor soltou tudo de uma vez e tive que voltar a me sentar na cadeira para não cair de bunda no chão.

— Como teve acesso a essas imagens? Pensei que fossem evidência e estivessem sob proteção policial...

Levei o dedão até os lábios e mordi minha unha que já estava tão curta que seria questão de tempo para que começasse a mordiscar minha própria carne.

— Você se surpreenderia com o que se pode fazer quando se tem dinheiro e influência suficientes.

Franzi o cenho.

Isso não estava certo.

— Não me diga que pagou para obter uma cópia desse vídeo?

Viktor levantou os ombros sem negar nem confirmar a minha pergunta e suspirei pesadamente.

— Cara, isso é ilegal! Não tem medo de ser preso? -Minha voz ficou tão aguda que não sei como não quebrei uma das taças de vinho penduradas no bar elegante atrás do seu corpo imponente.

Acho que deveria aproveitar melhor o tempo, em vez de gastá-lo com adivinhações sem resposta. -Viktor sussurrou com a xícara encostada nos lábios.

O sorriso que ele exibia agora era diferente.

Quase... travesso.

Como uma criança que é pega colocando tachinhas nos sapatos do pai, mas não se arrepende de nada.

— Vai citar Alice no País das Maravilhas agora, é sério? -Resmunguei sentindo aquele frio na barriga proveniente de um sentimento que conhecia muito bem: a nostalgia.

— Então você não esqueceu. -Ele sussurrou me lançando um olhar de surpresa e espanto.

— Não mude de assunto, Vik. Quero saber como fez para conseguir esses vídeos e não se atreva a mentir para mim. -Repreendi com os braços cruzados na frente do corpo e seus dedos apertaram a xícara com tanta força que por um instante fiquei com medo da peça de porcelana se esfarelar em cima da mesa. — Por que está me olhando assim? -Sussurrei sem entender o que estava acontecendo e seu pomo de Adão subiu e desceu lentamente conforme ele engolia.

— Do que me chamou?

Apertei as pálpebras o mais forte que consegui ao perceber o que tinha acabado de fazer.

Droga.

Eu tinha cometido um deslize e me sentia estúpida por isso.

Esse tipo de coisas não deveria acontecer.

Abri meus olhos outra vez antes de falar:

— É só um apelido, Viktor. Não faça disso um grande acontecimento, porque não é.

Um lampejo de decepção atravessou seu rosto, mas como era de se esperar, ele se recuperou rapidamente.

Sua cabeça se moveu para cima e para baixo em concordância e ele terminou de beber o café lentamente, como se tratasse de lembrar qual era o tema da nossa conversa.

Enquanto nenhuma palavra era dita, aproveitei para observá-lo mais um pouco sem correr o risco de parecer uma garotinha apaixonada ou uma psicopata.

Viktor tinha crescido alguns centímetros ao longo dos anos, mas mesmo antes de sumir, sua altura já era impressionante para a maioria das pessoas.

A diferença era que agora, seus braços tinham músculos, assim como as suas pernas e eu podia jurar que também seu abdômen.

Os cabelos perfeitamente penteados e o rosto angulado com aquela barba rasa eram uma combinação perigosa e tudo isso somado ao resto do seu corpo...

— Bom, por mais que seja óbvio que alguém fez o trabalho sujo para te incriminar, estou quase certo de que se trata de uma mulher mais ou menos do seu porte. -Pisquei lentamente perdida nos movimentos dos seus lábios carnudos. — E esse táxi parecia saber o que estava acontecendo, já que esperou até que ela terminasse para poder levá-la de volta para...a sua casa.

— O-o que? Como assim?

— Pensa comigo, Alicia. -Viktor se aproximou ainda mais e contive um gemido de desaprovação. — Se eles queriam fazer algo bem, provavelmente pensaram em tudo para que ficasse evidente que foi você a culpada. Além do mais, como explica o fato de que você tenha chegado em casa e que sua arma estivesse com o cartucho incompleto?

— Não... -respirei fundo — não estou entendendo onde quer chegar com isso.

Viktor deixou escapar um suspiro impaciente.

Uma mania que ele tinha desde que era criança.

— Acha mesmo que quem armou tudo isso, faria de qualquer jeito? Eles não podem ter margem de erro, caso contrário, tudo iria por água abaixo.

Nesse momento algumas peças finalmente começaram a se encaixar e senti o ar deixando meus pulmões pouco a pouco, me fazendo experimentar uma tontura leve, como quando você levanta muito rápido da cama e acaba caindo de volta em cima do colchão.

Só que agora não havia uma cama macia para aliviar a minha queda e sim uma provável cela fria e úmida.

— Q-quer dizer então que eles e-estão atrás de mim?

Pela primeira vez desde que tinha decidido trabalhar para a polícia, eu senti um medo real.

Aquele tipo de medo que te deixa com as pernas bambas e faz o seu coração se acelerar e o ar parecer tão pesado que seu peito não suporta mais uma respiração e de repente você sente que vai desmaiar a qualquer momento.

Alguém queria me prender, mas mais do que isso, alguém queria me ferrar.

E dado que Steven tinha sido o felizardo escolhido para fazer papel de vítima, eu tive ainda mais certeza de que se tratava de algum membro ou talvez de todos, da Red Demons.

Eles claramente queriam matar dois coelhos de um tiro -ou nesse caso oito- e assim como Viktor tinha profetizado anos atrás, eu era uma Coelhinha.

— Você está aqui sob a minha proteção, Alicia, e meus funcionários foram treinados para fazerem o que for necessário para cumprir minhas ordens. Eu não admito erros e se algum idiota tentar invadir a minha propriedade pra fazer algo contra você, ele vai descobrir antes mesmo de dar um passo, que já é uma pessoa morta. -Viktor cruzou os braços se apoiando no encosto da cadeira com uma expressão sombria no rosto.

— Porque, ninguém se mete com o perigoso Viktor Schultz, não é mesmo? -Debochei imitando sua posição de uma maneira exagerada.

Viktor por sua vez levou os dedos até o queixo sem parar de me encarar.

— Sabe, eu me pergunto quando você vai começar a agir como uma adulta...

Arfei completamente ofendida me levantando subitamente, a cadeira se arrastando para trás com o movimento.

— Como você se atreve a... -Me detive ao ver Bertha passando pela porta com uma pasta azul e uma caixa nas mãos.

— Desculpe interrompê-los, aqui está o que pediu, querido. -Seu olhar alternava entre Viktor e eu, parecendo captar a tensão sem querer se envolver.

— Obrigado, honig. -Franzi o cenho ao escutar como aquele sotaque que suspeitei fosse alemão, soava tão sensual em conjunto com a sua voz.

— Se me derem licença, irei ver se o jardineiro está fazendo o que pedi. -Bertha escapou sem perder tempo.

Seus saltos golpearam o chão produzindo um barulho oco, que se dissipou na medida que ela se distanciava.

— Também vou indo, não quero mais continuar essa conversa sem sentido. -Murmurei ainda chateada com o que tinha escutado minutos antes, mas como da outra vez, Viktor segurou meu braço me impedindo de sair. — Cara, é o seguinte: se continuar fazendo isso, vou ser obrigada a te aplicar um golpe de Muay Thai.

A ameaça arrancou-lhe uma gargalhada e rodei os olhos, irritada com a sua coragem e afronta.

Pelo visto, ele gostava de brincar com o perigo.

— Não precisa ficar brava, só queria te entregar isso. -A caixinha branca que ele recebera de Bertha, apareceu no meu campo de visão e observei o objeto atentamente, como se de dentro dele fosse sair uma cobra ou algum outro animal peçonhento.

— E o que devo fazer com ela?

— Primeiro de tudo, abri-la. -Fiz mais uma careta pegando a caixa entre os dedos sentindo seu peso.

Retirei a tampa com cuidado, ainda desconfiada e prendi a respiração ao revelar um aparelho celular bem parecido ao meu, porém de um modelo muito mais atual.

— Ty me contou o que aconteceu e embora confie nos meus funcionários, quero que possa se comunicar comigo caso seja necessário. É pós-pago, então não precisa se preocupar com os créditos. -Balancei a cabeça devagar.

— Obrigada, novamente. Vou aproveitar para avisar meus pais que estou bem, eles devem estar preocupados. -Lembrei a mim mesma, pensativa.

Desde que Ty tinha quebrado meu celular e jogado o coitado pela janela, eu não havia conseguido entrar em contato com eles e não queria que os dois pensassem que estava sei lá morta ou que tivesse sido sequestrada.

— Hum... quanto a isso, eu já falei com eles. -Fui tirada dos meus devaneios pela sua declaração e senti todo o sangue se esvaindo do meu rosto, me deixando branca como um papel.

— Você fez o quê?

Perguntei em um grasnido como se de repente tivesse virado um ganso.

— Eles precisavam saber que você está bem, Alícia, e embora sua mãe tenha deixado bem claro que me odeia tanto quanto você, ela entendeu a situação e até me agradeceu à contragosto. -Estreitei os olhos inclinando a cabeça para um lado.

— O quê mais ela te disse?

— Que se eu te machucar outra vez, ela irá puxar a minha orelha pessoalmente até que ela fique vermelha.

— Muito bem. -Respondi simplista ao passo que me movia até a porta com o coração batendo tão acelerado dentro do peito quanto uma bateria em um show de rock pesado. — Nos vemos depois, e por favor, não ligue mais para os meus pais, eu me encarrego a partir de agora. -Pedi com seriedade e ele apenas concordou com o queixo erguido banhado em prepotência como se nem fosse mesmo fazer questão disso.

Era bem provável que Viktor só tivesse avisado meus pais porque não queria que a polícia batesse na sua porta lhe acusando de me sequestrar.

E não sei como mamãe não o xingou de todos os pronomes que ela conhecia, já que desde que ele sumiu, ela tomou para si a minha dor transformando-a em algo seu também, de maneira que cada vez que eu acordava chorando por algum pesadelo ou que chegava da escola triste por saber que não o encontraria ali debaixo da nossa árvore, ela chorava junto comigo, se entristecia junto comigo e amaldiçoava até a décima geração do garoto, junto comigo.

E por isso eu a amava incondicionalmente.

Caminhei para o meu quarto com o celular pesando nas minhas mãos.

Finalmente poderia me comunicar com meus pais e Suzanna para saber o que estava acontecendo na delegacia.

Ela só não estava tendo um ataque de nervos, porque pedi a Ty que lhe mandasse uma mensagem de minha parte por meio da sua namorada, para que ninguém desconfiasse de nada.

Ao chegar no quarto, caminhei até a poltrona deixando meu corpo cair em cima do tecido macio, sendo acompanhada por Chess que subiu no meu colo antes mesmo que minha bunda terminasse de tocar o assento.

— Você é folgada, mas mesmo assim eu te amo... -Acariciei seus pelos suaves enquanto discava o número da minha amiga e esperava que ela atendesse.

Vários segundos se passaram e quando estava quase pensando que a ligação cairia na caixa de mensagens, ouvi sua voz do outro lado da linha em um sussurro para que eu esperasse um momento.

Escutei alguns barulhos de portas batendo, chaves girando e inclusive uma descarga ativada.

O que diabos estava acontecendo?

— Pode falar. -Sua voz estava tão baixa que quase não percebi quando ela tornou a falar.

— Olá Suzanna, te liguei para saber como estão os cactos, já os regou hoje? -Perguntei calmamente e esperei pela sua resposta que não demorou a chegar.

— Eles estão lindos, até floresceram. Não os reguei hoje, mas prometo que o farei amanhã. -Soltei a respiração que até então estava presa.

— Está sozinha?

— Sim.

— Ótimo. Consegui um celular, mas não salve esse número nos seus contatos, anote em um lugar que ninguém tenha acesso, caso queira me ligar.

Para qualquer pessoa que estivesse de fora, essa era apenas uma conversa entre duas amigas que gostavam de plantas, no entanto, para mim e Suzy se tratava de um código secreto criado por nós duas para esses tipos de situações, assim saberíamos se era seguro falar ou se a outra estivesse em perigo caso desse a resposta errada.

Quem ligasse tinha que fazer a pergunta e a pessoa que atendesse, deveria responder exatamente da mesma maneira que fizemos.

Como Suzanna tinha saído de um esquema de tráfico de mulheres, nos primeiros anos, eu ainda me preocupava pela sua segurança e por isso combinamos de falar esse código para saber se tudo estava bem.

E confesso que não pensei que voltaríamos a usá-lo tão cedo.

— Como você está? -Suzy indagou depois de alguns minutos — Precisa se cuidar, Rage e Andrew já disseram a todos que Viktor está te protegendo e Harvey ficou furioso, ela pensa que você realmente matou Steven e por isso fugiu. -Praguejei sentindo meu corpo inteiro gelar.

— Aqueles idiotas... eles me deixaram com um olho roxo por quase uma semana.

— Não acredito! Como eles tiveram coragem? -Sorri com escárnio para a tela, mesmo que ela não pudesse me ver.

— Sabe como eles são nojentos e aposto que trabalham para os Red Demons, portanto tenha cuidado, ok?

Suzana concordou rapidamente, sabendo que não poderia dar bandeira enquanto estivesse sozinha na delegacia.

Eu odiava o fato de que não poderia protegê-la agora que tinha me tornando uma foragida, mas ao mesmo tempo sabia que ela conseguiria valer por si mesma se fosse necessário.

— Eu vou ter, Ali. Se escutar alguma coisa sobre o seu caso, tentarei te ligar o mais rápido possível. -Ela prometeu solene e agradeci em seguida. — E como está sendo rever o seu ex amor de infância? -Respirei fundo. Era de se esperar que ela fizesse essa pergunta, já que sabia praticamente tudo sobre a minha vida.

Retirei uma sujeira invisível da poltrona extraordinariamente limpa tentando encontrar a resposta correta sem parecer uma maluca.

Como estava sendo a minha estadia naquela mansão?

Tediosa. Irritante. Solitária.

Passava praticamente o dia inteiro no quarto com Chess e quando me cansava de não fazer nada, ia ajudar Bertha com qualquer coisa, mesmo contra os seus protestos.

Viktor saia de manhã e só voltava de noite do Cassino, o que significava que eu quase não o via e isso me chateava e me deixava irritada por ficar chateada.

Eu não deveria esperar por ele, não deveria querer encontrar com ele e muito menos desejar que ele voltasse mais cedo nem que fosse para discutir comigo.

Mas era exatamente isso que eu fazia.

Eu era uma contradição ambulante. Em um minuto eu o evitava sem nem ao menos dissimular e no minuto seguinte, esperava com ânsias a sua chegada em casa.

E me deixar levar por essas emoções confusas não me faria nada bem.

O problema, era que eu queria o meu amigo de volta, mesmo sabendo que isso era impossível.

Era triste pensar no que ele tinha se tornado e cada vez que me respondia daquela maneira fria e grosseira, uma parte de mim desmoronava e eu tinha medo de não sobrar mais nada no final.

Todos esses sentimentos estavam me desgastando e se eu não transasse com alguém urgentemente, iria explodir.

Precisava relaxar, mas tinha esquecido meu vibrador em casa e a vergonha me impedia de pedir que Ty me comprasse outro.

— Está sendo péssimo. -Falei depois de divagar comigo mesma por alguns minutos. — Ele se tornou alguém completamente diferente do Viktor que eu conhecia e embora tenha ficado mais bonito, essa beleza é descompensada pelo seu mau humor e caráter duvidoso. -Soltei tudo de uma vez, obviamente guardando para mim a parte que eu me sentia extremamente atraída por esse seu lado obscuro.

— Hum...

— O quê foi?

— Tem certeza que você ainda o odeia?

— Por que está me perguntando isso? -Mordi o canto do dedo até arrancar um pedaço de pele morta.

— Ali, te conheço há um bom tempo, não pense que pode me enganar. Sei que por trás de todo esse ódio enrustido, ainda há uma boa camada de tesão. -Chess pulou do meu colo quando comecei a tossir engasgada com a minha própria saliva.

— E-eu não... eu não sinto nada por Viktor, Suzanna. -Afirmei com tanta convicção que quase acreditei nas minhas palavras. — Quero dizer, além da aversão e repulsa, é claro. -Completei rapidamente.

— Tudo bem, amiga. Só não diga que não te avisei quando estiver pelada na sua cama ganhando um orgasmo do seu inimigo.

— Isso não vai acontecer. Agora é melhor você voltar ao trabalho antes que comecem a te procurar. Me ligue apenas quando estiver cem por cento segura. -Recomendei mesmo que ela já soubesse como proceder.

A verdade é que eu só queria mudar de assunto e parar de falar na minha queda pelo cara mais temido da cidade.

— Até mais Alícia e por favor, não perca contato. Te amo amiga e fico mais tranquila de saber que você está bem.

— Também te amo Suzy, obrigada por tudo. -Encerrei a ligação para não abusar da boa vontade do meu anfitrião.

Se bem que ele era rico de todas maneiras, então algumas cifras a mais na sua conta no final do mês não iriam fazer nem diferença.

Eu ainda tinha que ligar para os meus pais para saber como eles estavam, no entanto, minha bexiga estava cheia e decidi me aliviar antes, já que uma vez que mamãe atendesse o telefone, era certo que ficaria pelo menos uma hora respondendo ao seu interrogatório.

Coloquei Chess que tinha voltado para o meu colo, delicadamente no chão e me levantei com a intenção de ir até o banheiro, no entanto, meu olhar foi atraído até a porta e dei de cara com Viktor encostado no umbral, me olhando com a sobrancelha levantada e os braços cruzados deixando à mostra seus bíceps definidos por baixo do tecido fino do terno azul marinho.

— Há quanto tempo está aí? -A seriedade na minha voz pegou a ambos de surpresa quando levantei o queixo e caminhei até parar na sua frente, odiando o fato de que ele sequer se abalou com a minha aproximação.

— O suficiente. -Seus olhos azuis escanearam meu corpo lentamente e as sobrancelhas se uniram em uma careta de desaprovação fazendo meu sangue ferver de raiva. — Você diz que eu mudei depois de todo esse tempo e está coberta de razão, no entanto, não percebe que você também já não é mais a mesma Alícia de quinze anos atrás. -Sua mão se levantou até a altura do meu rosto e ele segurou uma mecha de cabelo encaracolado entre os dedos como se quisesse testar a suavidade dos pelos, soltando-a em seguida. — Se tornou uma garota hipócrita, prepotente e arrogante, mas o pior de tudo, é que quer se convencer de que não é nada disso. Pelo menos eu sou consciente do que me tornei, não vivo em uma bolha de ilusão. -Antes mesmo de me dar a chance de me defender, Viktor se virou e caminhou para o seu quarto me deixando sozinha com a minha própria humilhação.

NOTA DO AUTOR

Eu sei, eu sei... demorei, mas cheguei hahha
Espero que tenham gostado do capítulo,
Não se esqueçam de votar e comentar.
Um ótimo final de semana a todos! 

Amo vcs 🥰
Bjinhossss BF  🖤🖤🖤

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