Nas margens do divino lago Kiv
Oitavo memorial
Nas margens do divino lago Kiv
"...quando tive que mais uma vez, confrontar meus sentimentos. Alegria e a dor. A dor, a dor e a dor..."
A preparação para o ataque foi realmente rápida. Ao fim de três semanas, partíamos para o combate. Saímos do monte Hostenoist e cuidamos dos preparativos finais em altitudes elevadas às margens do belíssimo lago Kiv (também conhecido com lago divino, ou celestial). Finalmente, seguiríamos para a montanha dos três picos.
Antes de deixar o lago Kiv, muitos de nós tivemos a chance de trocar últimas palavras e cumprimentos.
Uma das conversas, que evitava há muitos anos aconteceu entre eu e Scarlett. De nossos sete filhos, apenas uma ainda vivia e sentia remorso pelos filhos que morreram em batalhas sob meu comando. Tinha medo que Scarlett me culpasse por isso.
– Imagino que seja tarde para saber por que nos evitou por todos estes anos, amado Quill.
Menti – Você sabe a resposta: é que meu coração endureceu. Vivo para batalhas e não para buscar ou nutrir afeto.
– É triste ver que você torna-se cada vez mais como nossos inimigos. Frios e sanguinários.
– Esta é a vida de um guerreiro. Queria eu ter nascido em tempos de paz. As coisas poderiam ser diferentes.
Os olhos de Scarlett estavam cheios de lágrimas, ela se esforçava para não chorar. Desta vez, mais que todas as outras vezes, sabia que não retornaria do combate. Eu também sentia isso. Ela me abraçou e beijou-me o rosto.
– Sei que a Balcatemi irá te conduzir para as batalhas mais difíceis e perigosas. Prometa-me uma coisa, é meu último desejo.
– Diga Scarlett.
– Prometa, que vai cuidar de nossa filha. Prometa que vai também procurar sua irmã e conhecer seus filhos, os gêmeos. Ela sabe onde estão.
– Minha irmã? Os filhos de Jilija?
– Procure-os em Nish. Prometa-me.
– Por que quer que eu procure nossa filha? Minha irmã? Os filhos de Jilija?
– São seus filhos também! É preciso que faça isso Quill, você não entende, pois se não o fizer, logo será um deles. Será um demônio. É isso que deseja? É contra isso que lutou tantos anos? Para no fim ser como eles?
– Se esse é seu último desejo, eu lhe prometo.
Scarlett se foi, Forthálik e os demais precisavam dela para os preparativos. Cada grupo tinha uma função a cumprir. Eu estava sem sono e mais tarde na madrugada, fui procurado por outra insone: Shasticara.
A noite estava bonita e o lago refletia a luz das grandes luas em sua superfície.
– Quill? – a voz dela tocou meus ouvidos e meu coração acelerou. Depois de tanto tempo meus sentimentos por ela ainda estavam lá, sob sangue, batalhas e muita coisa ruim, os sentimentos, amor e desejo permaneciam lá no fundo. Talvez, Scarlett estivesse enganada. Talvez eu não estivesse com o coração tão frio.
– Shasticara? Não esperava que nos falássemos antes de amanhã.
– Sei que não é apropriado, mas... – Ela hesitou. Seus cabelos estavam compridos e bem amarrados atrás da cabeça. Mas a memória de seus cabelos curtos e despenteados ainda era forte. Seus olhos brilhavam e seus lábios continuavam tão atraentes.
– O que foi?
– Vim pedir-lhe perdão.
– Perdão? Como assim? Eu não entendo... Talvez seja eu quem devesse dizer isso.
– Eu, peço perdão por não ter sido verdadeira com você, peço perdão por ter negado meus sentimentos. Por não...
– Shh... – aproximei-me – está tudo bem. Não podemos mudar o passado.
Ela segurou minha mão. – Depois desses anos todos, você ainda? Quero dizer... Tem sentimentos por mim?
– Sim. Nunca deixaram de me habitar. Talvez, em algumas ocasiões, iam para longe, mas encontravam o caminho de volta.
– Me odiei todos esses anos, odiei meu marido, nosso tempo juntos foi de grandes amarguras, todo esse tempo, somente amarguras.
– Partilhamos destinos semelhantes Shasticara.
– A morte paira sobre nós, querido Quill. Eu queria voltar atrás e ter me entregado, queria ter sido sua. Amo-o com toda fibra de meu ser, nunca amei meu marido de verdade. Foi um casamento arranjado, mas também senti que nunca poderia desonrar minha família. Mas agora frente a isso? O que fazer amado Quill? O que fazer?
Não dava mais para ficar falando. Abraçamos-nos e beijamos longamente. Depois de alguns instantes, percebemos que ambos chorávamos de alegria. Mas alegria e a tristeza estavam muito próximas. Faltava pouco para partirmos definitivamente para a grande batalha. Àquela altura, dormir não era uma opção. Sabíamos que aquela madrugada era todo o tempo que teríamos. Depois, restava apenas enfrentar a batalha final. Às vezes penso na justiça dos deuses e imagino, se algum dia, nos será permitido um reencontro, uma segunda chance. É uma esperança vã, pois o que aprendi sobre os deuses é que não é possível escapar da rede do eterno sofrimento.
Mas que terrível paradoxo! O que teria sido pior? Morrer sem tocar Shasticara ou tocá-la e perdê-la? Mesmo depois da morte e tantas outras desventuras, é uma pergunta para a qual não consigo uma resposta. A pior de todas as perguntas de minha existência.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top