Invasão Sorrateira
Segundo memorial
Invasão Sorrateira
"...quando os novos poderes da Balcatemi revelavam uma realidade assustadora e um futuro terrível para todos..."
Meus dias fora da terra fizeram parecer que os traumas sofridos seriam curados. Lá estava em um local isolado das influencias do mundo e sem contato com os planos astrais. Eu decidi retornar desistindo de aguardar o retorno de Midrakus à sua torre. Retornar foi bastante dolorido. O peso sobre minha cabeça era terrível, voltava à minha memória a batalha contra o Duque Marlak, as mortes de Shasticara, Aztazûr, Helmut e os demais. Eu estava só e sem saber se ao menos Raastad e Scarlett haviam sobrevivido.
O portal me trouxe a uma região repleta de bosques. Após dois dias de caminhada, avistei fumaça. Poderia significar apenas duas coisas: uma batalha, ou uma vila.
Era uma vila e avistei humanos. Um velho acenou, sua expressão era de preocupação. Me apontava uma besta e tremia, braços e pernas.
- Olá - chamei erguendo a mão e acenando.
O velho baixou a besta e cumprimentou de volta.
- Meu nome é Quill - apresentei-me - como se chama?
- Uremag - respondeu o velho. Houve um reboliço e crianças se aproximaram. O velho ordenava para que não se aproximassem, mas foi ignorado.
O velho mancou ao caminhar em minha direção. Era mutilado e utilizava uma perna de pau. Carregava uma besta de haste cumprida que também lhe servia como bengala.
- Olá Uremag, como se chama este lugar?
- Este vale é chamado de Último Refúgio.
Caminhamos até a vila. Estava desolada e tinha a semelhança de um campo de refugiados. Havia apenas algumas mulheres, crianças e outro homem idoso. Ele convidou-me para sua casa.
- Quem está defendendo a vila? - indaguei.
- Ninguém - revelou o velho - lutei na guerra há muitos anos. Aqui estão apenas os que não podem lutar. Disse que seu nome é Quill, não é mesmo? Ouvi histórias sobre um elfo e sua espada de fogo. Mas dizem que morreu anos atrás.
- Verdade? Como?
- Num ataque contra um dos grandes demônios.
- Anos, você diz?
- Com licença - pediu a mulher que entrou no casebre. Trazia consigo uma cumbuca de madeira com pequenos frutos silvestres que me ofereceu. Provei. Eram azedas, mas saborosas.
- Obrigado - agradeci à moça - Sabe Uremag, aquele Quill da espada de fogo não morreu.
- Então é o senhor! - constatou o velho - Será que poderia mostrar a espada?
Desembainhei a Balcatemi e mostrei suas chamas. Seus olhares demonstraram fascínio.
- É muito bonita! - o velho coçava o nariz.
Ao desembainhá-la, fui tomado por uma estranha sensação que me deixou distraído, sem dar atenção para as palavras do ancião humano. Logo, passei a escutar as batidas de seu coração e enxergar pontos negros que se moviam lentamente em seu interior. O outro velho, assim como mulheres e crianças que estavam reunidos, também apresentava aquelas manchas estranhas. Nunca antes tivera esse tipo de visão.
A mulher que ofereceu os frutos era portadora de belos olhos verdes. Ela possuía ao invés de pontos, milhares de linhas, que se movimentavam velozes sob sua pele. Um pouco assustado, coloquei a Balcatemi de volta na bainha.
O velho falou - Desculpe pedir-lhe isso, senhor Quill. Pelo que parece isso lhe trouxe memórias ruins, verdade?
- Suponho que sim.
- Deve estar cansado também, já é tarde. - sugeriu a moça de olhos verdes.
Concordei e me recolhi na modesta cabana deitando-me sobre um estrado de feno um tanto desconfortável. Tive saudades da maravilhosa cama de meus aposentos na Torre de Midrakus. Voltava a ter pesadelos e estes se misturaram de uma forma terrível à realidade. No sonho, um verme enorme se aproximava de mim, pronto para me devorar. Ao acordar, deparei-me com a moça de olhos verdes, iluminada por velas de um candelabro que tinha à mão. Vestia pouca roupa e aproximava-se silenciosamente. Eu respirava intensamente e observava seus movimentos um pouco desconfiado. Ela deixou o candelabro numa mesa, ao lado da cama, e deixou cair o manto fino revelando seu corpo jovem e belo, desnudo.
Ela se insinuava para mim dizendo - Por favor, me aceite, senhor Quill. Estou só há muito tempo...
Ela me tocou e fiquei confuso por um momento, indeciso entre ceder ao desejo ou a seguir meus instintos de combate que desconfiavam de algo errado. Arrastei-me na cama até ficar sentado contra a cabeceira.
Ela avançava - O senhor é tímido? Não se preocupe, já estive com elfos antes.
Busquei a Balcatemi e toquei o cabo. Senti suas intenções com clareza. Seu intuito era me devorar, assim como o verme em meu sonho. Desembainhei a espada acendendo suas chamas. A moça recuou imediatamente, com agilidade sobrenatural. Ela grunhiu. Tal qual o menino na batalha contra Marlak, vermes brotaram de sua boca e cantos dos olhos. Não hesitei por nenhum instante a mais. Liberei o fogo da Balcatemi sobre ela. Ela queimou, gritando horrivelmente. A vila acordou, mas alguns outros já estavam a me esperar no lado de fora. Traziam foices e outras armas improvisadas. Estavam dominados por Vormostat, mas não passavam de mulheres e crianças camponesas. Queimei uma dezena daquelas possuídas pelo terrível demônio.
Outras pessoas também contaminadas por aquela praga, porém em pequena quantidade gritavam em desespero, sem saber o que se passava, ou mesmo sem ter consciência de que também continham aquele terrível mal dentro de si. Minhas dores e sofrimentos acumulados eram potencializados através do fogo e desejava mais e mais queimar o maldito verme. Uns fugiam, outros imploravam, chorando, mas não poupei ninguém. Todos os contaminados por Vormostat sucumbiram sob as chamas da Balcatemi.
Uma mulher e duas criancinhas choravam ajoelhadas diante de mim e implorando por suas vidas.
- Por favor, não nos queime! São só crianças!
- Desculpe pelos demais. Estou apenas ajudando.
- Ajudando? Queimando a todos? Por acaso é louco?
- Estavam doentes. Isso! Uma terrível doença! Mas você e estas crianças estão bem.
- Seu monstro louco! Ninguém estava doente. Ninguém tossia... Não havia feridas!
Tentei explicar, mas de fato aquilo tudo soava como loucura. Uma loucura que estava apenas começando. Prossegui meu caminho por aquele bosque e suas pequenas aldeias de refugiados. Queimaram sob o olhar da verdade da Balcatemi, que era capaz de enxergar a contaminação. Além da contaminação, via em meus sonhos o que aconteceria se não impedisse o avanço de Vormostat. Enxerguei um mundo, sem vontade própria, assimilado pela fome do terrível demônio, o mais terrível ser que confrontaria em minha existência.
A notícia de que um elfo, possuído por demônios incendiava vilas com mulheres e crianças indefesas, espalhou-se na região do Último Refúgio, até que grupos de caçadores vieram ao meu encalço. Alguns deles contaminados, outros não, mas infelizmente sob o ataque e perigo, não podia fazer tal distinção, eliminando-os para poder seguir meu caminho.
Tinha pesadelos com crianças e mulheres chorando e implorando, crianças e mulheres queimando. Mas sabia que precisava continuar, ou então, o mundo seria tomado em pouco tempo pelo terrível Vormostat.
Ao norte, entre um grande rio de corredeiras e um desfiladeiro íngreme, havia uma cidade fortificada, que defendia a entrada do vale do Último Refúgio. Atrás de mim, deixava um rastro de cinzas e sofrimento. A cidade defendia-se contra ataques dos demônios vindos do continente norte. Minha visão revelou nela um ponto de grande infestação. Não poderia tomá-la sozinho. Haveria uma milícia de milhares de homens treinados e por mais que o poder da Balcatemi estivesse ao meu lado, sabia que não teria chances num confronto direto.
Fiquei acampado à distância observando a rotina, atacando grupos pequenos que seguiam a trilha em direção às vilas que queimei. Logo, a movimentação na região cessou, pois todos temiam ser atacados e queimados pelo elfo demoníaco, assassino de mulheres e crianças. Neste tempo, aprendi um pouco sobre a velocidade em que a força de Vormostat aumentava. Mês após mês, era possível perceber que sua força aumentava, e que a aura de pontos negros crescia cada vez mais na cidade-fortaleza.
A primeira de uma dezena de lendas ruins a meu respeito surgiu naqueles tempos. Dizia que ao confrontar o Duque Marlak meu corpo fora possuído, transformando do herói Quill, num terrível assassino. Mais tarde, soube de coisas piores que diziam a meu respeito e que tais histórias já eram contadas em Nelfária. Imaginava o porquê de Midrakus não falar a meu favor. Por que ele teria deixado que minha reputação fosse arruinada? Amarguei minha situação, mas por hora, precisava me concentrar na cidade infecta e encontrar uma maneira de limpá-la.
A oportunidade veio um ano mais tarde. Na ocasião, uma densa horda atacou a entrada norte da cidade, que se defendia com sucesso. Aproveitando-me do combate, infiltrei-me pela muralha sul, explodindo o portão com a Balcatemi. Uma vez na cidade, espalhei dezenas de pássaros de fogo que tinham instruções para incendiar telhados e construções de madeira. A cidade ardeu em chamas.
Depois de tanto tempo, começava a entender o que Midrakus dissera sobre dominar o poder pleno da espada. Do intenso calor das chamas, pude torcer as dimensões, tendo acesso aos planos ígneos de onde vinham as criaturas elementais do fogo. Após a ativação do nexo no confronto com o duque Marlak, a Balcatemi juntamente com o Machado da Lava e o Brilho Escarlate, deixaram para trás sua antiga condição de armas poderosas para tornarem-se um instrumento de nexo, que atingia através das chamas os planos do fogo.
Muito mais fortes que os pássaros de fogo, os elementais obedeciam aos comandos do grande elemental aprisionado na Balcatemi. Eu brandia a espada e uma fila com dezenas de seres do fogo varriam, humanos e demônios que vinham de determinada região. Eu e a Balcatemi éramos regentes de um incêndio que consumiu em poucas horas toda a cidade, deixando apenas cinzas em seu lugar. Mais uma vez, foi impossível distinguir entre inocentes e os possuídos por Vormostat. Mas soube, no final, que cumprira minha missão.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top