Desejos de Queimar
Quarto memorial
Desejos de Queimar
"...quando eu e Balcatemi ficamos mais íntimos e aprendi a liberar um pouco mais de seus poderes..."
Com meu exército dizimado, passei a integrar o exército do general Kriegor Steffundil como seu subcomandante. Apesar de participarmos de uma ou outra batalha, nenhuma foi tão grandiosa quanto à batalha das Três Hordas. Era um período excitante. Aprendia muito com o general Kriegor e às vezes tinha chances de estar por perto de Shasticara, por quem eu nutria uma paixão não correspondida, ou algo parecido. Era uma atração muito diferente da admiração e respeito que senti pela princesa Jilija. Quanto a Shasticara, eu a desejava, mas tinha poucas oportunidades de me aproximar. Nada conspirava a meu favor.
– Ouvi o general Kriegor comentar sobre seu marido.
– Verdade, senhor? Que tipo de comentário? – sua expressão era melancólica, mas ainda assim, me trazia alegria aquela chance de conversarmos.
– É um sacerdote, correto?
– Sim, do templo de Noosar.
– Claro. Nobres guardiões de Brás-Niaira.
Ela concordou com um aceno e seguiu seu caminho, educadamente me ignorando. Senti-me tolo tecendo comentários óbvios demais.
– Espere capitã!
– Sim, senhor general – ela virou-se com as sobrancelhas arqueadas. Olhar diretamente em seus olhos valeu à pena.
– Só queria parabenizá-la pela ótima atuação na batalha de ontem.
– Apenas mais um dever cumprido. Com sua licença general, preciso cuidar das montarias feridas.
Fiquei frustrado. Mais uma vez ela escapava de minhas tentativas de aproximação. Busquei Az e deixamos o acampamento. Já ao longe, encontramos um local sossegado para pousar. Desembainhei a Balcatemi e projetei fogo para o alto. As chamas subiram muito mais que o de costume.
– Está furioso, hem? – provocou Aztazûr. Seus olhos expressivos demonstravam malícia.
– Estou sim, e daí?
– E daí que ela é casada e não vai acontecer nada entre vocês.
– Obrigado Az. Assim você me anima de verdade...
– Você precisa aprender a ser realista, Quill.
– Não enche, Az!
O dragão soltou fumaça pelas narinas e mais uma vez perdoou minha insolência. – Já que tem as emoções alteradas, deveria aprender a utilizá-las a seu favor.
– Hem?
– Não percebe? É muito triste... O quanto você é limitado em termos de visão, Quill.
– Você é um dragão muito convencido, Az!
– Realista! Nós dragões somos muito mais inteligentes que vocês bípedes, humanos, elfos, anões... Eu não entendo os antigos, eles...
– Fala logo o que quis dizer, senhor iluminado!
– As emoções! Sinceramente, não sei como não percebeu ainda...
– O que Az? O que!?
– Ora, que as emoções são um canal para os poderes da Balcatemi. Que com as emoções você pode entrar em contato com os Nam-lu aprisionados na lâmina.
"Maldito! Ele tem razão. Ele sempre tem razão... Como eu não havia percebido antes?"
Lendo minha expressão ele disse, todo convencido – Eu não disse?
– Claro Az! Obrigado pela ajuda.
– Você sabe Quill, somos parceiros! Estou sempre contente em ajudá-lo. Por falar nisso, se quiser mesmo aquela garota...
– Sim?
– Não, pensando melhor, é melhor não sugerir nada assim.
– Você está brincando, né Az?
– Brincar? Eu sou muito sério e nunca brinco. Já devia saber disso.
– Então, por que você não vai caçar?
– Ótima ideia! Vemos-nos mais tarde no acampamento. E vê se dá uma folga para a moça. Ela precisa respirar, sabia?
***
Minha paixão e desejo por Shasticara, eram intensos. A cada batalha em que ela atuava, minha admiração crescia. Era uma guerreira formidável e recebera uma das armas do Hostenoist. Um cajado com poderes sobre a água e gelo.
– Quando pretende tirar uma folga?
– Folga? Do que está falando senhor?
– Folga, por exemplo, para visitar seu marido.
Ela demonstrou irritação – Ora! Estou cumprindo meu dever! É o que sempre digo ao general Kriegor: folga só no fim da guerra.
– Há quanto tempo não vai a Talís? Quero dizer, há quanto tempo não vê seu marido, seus filhos?
– Não é de sua conta, general!
– Desculpe, não pretendia ofender...
– Eu que me desculpo, acho que exagerei – seu tom de voz mudou, agora pesaroso e apertado. – Mais de duzentos anos. Duzentos anos de guerra. Compreende isto?
– Tenho uma ideia – na verdade, havia nascido dentro da guerra e não conhecia a vida em tempos de paz – É melhor eu ir...
Percorri o acampamento um pouco perturbado pela discussão. Eu só queria estar perto dela e conversar, mas desentendimentos como aquele era freqüentes. Como de costume, passei nas barracas e rodas de conversa ao redor de fogueiras, cumprimentando os soldados e oficiais. Pediram reforço na fogueira e usei a Balcatemi para atender ao pedido. Eles adoravam aquilo. Ficava pensando em como agradar Shasticara, mas não tomava coragem para algo mais agressivo, como oferecer flores. Afinal, cortejar abertamente uma mulher casada era algo ofensivo em nossa cultura.
Nas batalhas, quase semanais, enquanto o general seguia por terra, eu passei a integrar o esquadrão aéreo, juntamente com Aztazûr. Além de estar próximo de Shasticara, (menos do que realmente gostaria) fiz novos amigos no esquadrão: Rerlecost e Scarlett. Nós formávamos uma espécie de quarteto. Eu e Shasticara tínhamos armas do Hostenoist, uma do fogo, outra do gelo. O que era, no meu modo de pensar, mais um motivo para que ficássemos juntos, as tais coincidências. Rerlecost e Scarlett, eram elementalistas dos templos de Pettjik (terra) e Ilksuut (ar) respectivamente. Rerlecost montava um grifo, enquanto Scarlett voava dominando pela magia as correntes aéreas em torno se seu corpo. Nos combates, a utilização combinada da magia dos quatro elementos nos colocava mais perto da vitória. Éramos muito bons, nos quatro juntos.
Era véspera de mais uma operação e eu estava inquieto em minha barraca, sem dormir. Escutei passos e imaginei quem seria. Era Scarlett. Ao passo que Shasticara esquivava-se de minhas investidas e rejeitava meu afeto, Scarlett agia de maneira oposta Era viúva, como eu (nada incomum durante a guerra) e via em mim um futuro companheiro.
– Com licença, estava passando e percebi, pelas chamas da Balcatemi, que não dormia.
– Claro Scarlett, entre, por favor.
Ela era muito direta – Desculpe-me falar assim general, mas penso que deveria parar de assediar a capitã Shasticara.
– Assediar?
– Ora, sabe bem do que estou falando.
Dei com os ombros, não havia como negar.
– Deve respeitá-la, afinal, é casada, tem filhos. Não é elegante essa sua postura.
– De fato, você tem razão Scarlett, obrigado por me dizer isto de uma forma tão...
– Assertiva.
– Isto.
– Sem querer fazer o mesmo e sendo sincera e direta. Sabe que eu tenho desejos por você, não sabe?
– Não vou negar.
– Por que não ficamos juntos? Digo, somente em algumas ocasiões.
– Mas o regulamento...
Ela aproximou-se e me cobriu de beijos e abraços.
– Você falava de regulamento?
Dei com os ombros – que se dane o regulamento. – E assim, passamos nossa primeira noite juntos.
Aquele ritual se repetiu. Sempre nos víamos na véspera de uma importante batalha. Scarlett era um tanto perturbada e sempre acreditava que a próxima batalha seria sua última. Quando ficávamos juntos, ela aproveitava como se fosse a última vez. Algo que tornava nossos encontros bastante estimulantes. Às vezes, eu lhe falava sobre Shasticara. Ela reconhecia meus sentimentos, entretanto não parecia se importar com isto.
Anos se passaram enquanto servia junto ao exército de Steffundil. A batalha das Três Hordas acabou sendo um marco importante na guerra e a partir dela, as hordas do duque Vetzla foram repelidas do vale do leste que mais tarde ficou conhecido como vale de Öfinnel. Ao norte deste vale, além das montanhas havia um vale que era local de eclosão das ninhadas demoníacas, sob comando do quarto duque dos infernos: Drenzult. As hordas de Drenzult quase nunca eram encontradas nos campos de batalha e sua atuação parecia estar ligada à reprodução e treinamento em combate dos demais demônios.
Penetrar nos domínios do duque Drenzult não era uma tarefa simples. Ainda que não possuíssem hordas organizadas e plenamente preparadas para o combate, eram muito numerosos, sendo o local conhecido por ser a maior concentração de demônios da terra. Cruzar a cordilheira ao norte com um exército mostrou-se impraticável, pois as defesas ali eram bem organizadas. Mas, se não eliminássemos os focos de reprodução dos demônios, estaríamos fadados à derrota.
Foi neste contexto, que o general Steffundil subdividiu o esquadrão aéreo em grupos menores e iniciou uma campanha de ataques localizados e fuga. Estabelecemos nossa base em uma grande ilha rochosa, a meio caminho para vale seguindo pelo mar, conhecida como ilha do pico cinzento. Os ataques dos grupos eram coordenados, ocorrendo de forma simultânea em diferentes lugares no vale de Drenzult. Além de eliminarmos alguns criadouros de demônios, descobrimos algumas tribos humanas aprisionadas e escravizadas em diversos pontos do vale.
Os antigos Holmös diziam que o vale tomado por Drenzult tinha sido drenado de toda sua vida e esplendor. Tornou-se uma terra estéril e, em alguns pontos, desértica. Nos ninhos, nos quais eram depositados milhares e milhares de ovos, havia uma espécie de demônios que chamávamos de operários que drenava a energia das plantas e animais e em poucos anos, florestas cheias de vida tornavam-se extensos cemitérios de galhos secos e troncos ressequidos. Os ovos eclodiam e as larvas demoníacas iniciavam seu frenesi devorador. Comiam de tudo, desde os restos das florestas, carniça, eventualmente animais e humanos aprisionados para lhes aplacar a fome. Por fim, as larvas atravessavam uma metamorfose tornando-se demônios adultos, das mais variadas espécies. Todo o ciclo de renascimento era alimentado pela própria guerra. As essências vitais dos demônios que derrotávamos, ano após ano, retornavam aos ovos para renascer em um novo corpo. Juntavam-se a estes, essências de humanos, elfos, felinos e lagartos enganados e corrompidos pelo ardil dos lordes demoníacos. Seus números não paravam de crescer.
Os doutores, contempladores de astros e místicos, revelavam que com os criadouros instalados na terra, o ciclo de renovação dos demônios era dez vezes mais veloz que outrora, no início da invasão. Caso conseguíssemos eliminá-los, as essências precisariam retornar aos planos infernais, para lá crescerem lentamente. Isto ocorria devido à escassez de vitalidade daqueles ambientes. Dizem os que tiveram visões das terras infernais, que são como grandes desertos estéreis, onde quase nada cresce e que a única fonte de nutrição é o canibalismo ou parasitismo.
Eu e a Balcatemi já estávamos unidos há mais de cinqüenta anos. Minhas emoções de ira, sentimento de vingança, medo e orgulho, provocavam efeitos magníficos durante um combate. Mas uma emoção, até recentemente estranha para mim, provocava o desejo de queimar a tudo, não só os demônios, mas florestas, seus ninhos e o que mais fosse possível. Meus desejos reprimidos por Shasticara, a própria paixão era canalizada pela Balcatemi e seus Nam-lu que ressoavam. Produziam chamas intensas e de grande alcance. Em certo ataque, eu e Az fizemos um voo rasante sobre uma floresta seca, repleta de larvas. Convoquei um grande cone de fogo, mais potente que um sopro de dragão que incendiou tudo em nosso caminho. A cada investida, aprendia mais sobre a relação entre as minhas emoções e os efeitos que era capaz de produzir com a espada.
Na ocasião, Az zombou de mim de seu modo circunspecto – Para alguma coisa prática servem estas suas emoções reprimidas.
– Cala a boca, Az!
– Se você não se deitasse tanto com Scarlett, a potência e expansão das chamas poderiam ser ainda maiores.
– Cala a boca, Az!
– Eu tenho que compensar essa sua perda de energia, afinal.
– Se você não se calar, juro que vou te tostar.
Enfim, um pouco de silêncio. Mas ele tinha razão. Sempre tinha a maldita razão!
Na maioria das vezes, nossas missões não eram tão perigosas e duravam pouco tempo. Queimávamos hordas de larvas, e ocasionalmente, um ninho ou outro, desprotegido. O problema era quando encontrávamos aquelas gigantescas reprodutoras que chamávamos de rainhas. Certa vez, uma delas, que possuía enormes asas como as de insetos, nos perseguiu e abocanhou metade de nosso grupo. Sua bocarra era descomunal e poderia ter engolido eu e Aztazûr numa só mordida. Somente com o esforço combinado de rajadas de fogo e gelo, aliadas a um tufão convocado por Scarlett, conseguimos atrasar o avanço da rainha vingativa e escapar. Tivemos notícias de outros grupos dizimados em encontros semelhantes, que por sorte, eram raros. Pelo que constatamos, havia poucas rainhas espalhadas por todo o vale. Elas coordenavam a construção de ninhos, depositavam os ovos e seguiam para o próximo ponto. Depois de termos destruído mais de uma centena de ninhos, Drenzult adaptou suas defesas, deixando grupamentos treinados defendendo os ninhos. Nossa estratégia começava a falhar e fomos obrigados a recuar.
Foi quando o General finalmente percebeu que apesar de bons resultados com a eliminação de larvas e ninhos, toda a estrutura daquele criadouro ruiria caso confrontássemos e destruíssemos as rainhas. O problema era formular uma estratégia que oferecesse uma chance de sobrevivência. Todos pensavam, e possivelmente tinham razão, que tais ataques seriam suicidas. As rainhas tinham um nível de poder equiparado, senão superior, ao dos próprios treze lordes infernais. Originalmente, eram dezesseis lordes, mas três deles haviam sido derrotados. Xastzar, Grevos e Dreorj.
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