A Campanha das Armas
Primeiro memorial
A Campanha das Armas
"...o poder de fato, muda as pessoas..."
Estava coberto de lama e sangue. Meus cabelos desgrenhados e grudados à face. O calor da Balcatemi pulsava em meu punho, sua vibração acompanhava os batimentos do meu coração.
– Malditos covardes! Queimarei até o último de vocês! – gritei amaldiçoando os demônios que se retiravam.
Sentia algo incrível. Onde estava o cansaço? Após uma longa batalha meus músculos não doíam.
Tentáculos emergiram de baixo de uma pilha de cadáveres. Ainda havia um daqueles monstros disformes escondido. A lâmina tornou-se candente e as chamas brotaram. Minhas pernas foram enroscadas e fui violentamente puxado para a criatura. Sua boca enorme com suas dezenas de dentes serrilhados parecia faminta, mas não comeria naquele dia. No último momento, antes de ser abocanhado, girei a espada para cravá-la na lateral da cabeça. O calor ferveu o sangue da besta causando uma pequena explosão.
– Setenta e sete! Meu melhor número... – desabafei eufórico.
Uma mão forte ajudou-me a ficar de pé.
– Setenta e sete?
– O número de bestas de despachei de volta ao inferno.
O soldado humano olhou-me incrédulo. – Está exagerando... – sugeriu.
Levei a lâmina ao peito dele e ameacei – Não custa somar mais um!
Assustado, o soldado deu um passo atrás, tropeçou na cabeça de um demônio abatido e no chão implorou – por favor, me desculpe, senhor elfo, não pretendia...
Senti vontade de agredi-lo, mas controlei o impulso – Pode me chamar de Quill, exterminador de demônios – não resisti e gargalhei bem alto.
Muitos gemiam e procuravam ficar de pé agora que a batalha havia cessado. Observavam-me como se eu fosse um louco. Gargalhar não condizia com a situação, milhares de baixas, um extenso campo de batalha coberto de dor e morte.
– Vencemos! – incitava-os, mas poucos ali compartilhavam de meu estado de espírito. – vencemos! – repetia, mas era uma comemoração sem eco.
Aquele era o fim da primeira batalha da campanha das armas. Centenas de batalhas sucederam aquela na medida em que penetrarmos no vale sagrado, lar do antigo reino de Vellistrë. Era uma terra de ruínas, convertida na principal base das hordas do Duque Zimbros, senhor do caos e da deformidade. As três primeiras armas, foram justamente embebidas de poderosos espíritos do fogo por uma razão: Zimbros e suas hordas, as mais horripilantes e disformes, tinham como fraqueza o fogo.
A campanha era realizada por três exércitos. O primeiro, mais numeroso e formado em sua maioria por homens era comandado pelo rei Öfinnel, patriarca de uma das longevas castas superiores da humanidade, conhecida como Holmös. Este teve seu reino usurpado pela invasão do Duque Zimbros, e tinha a missão de tomá-lo de volta. O segundo exército era menor em números, mas dotado de muitos feiticeiros e alguns dragões. Era comandado por meu mentor, Raastad. O terceiro exército agrupava diversas raças, sendo composto por anões, felinos, lagartos e até mesmo elfos desgarrados de suas divisões, cidades, ou grupos originais. Este era comandado pelo general Grible, do martelo dourado, um príncipe da raça dos anões. Era um sujeito de palavras e atitudes de comando sábias, mas também guerreiro feroz no campo de batalha.
Foi apenas quando a batalha deu-se por encerrada que retornei a espada para a bainha. Neste instante, senti-me envergonhado. Lembrei-me dos fatos ocorridos dias antes de chegarmos ao Vale Sagrado. Foi uma ocasião especial, quando pudemos avistar o pico celestial, uma das moradas dos deuses, era tão alto que ao nos aproximarmos dele, não conseguíamos enxergar mais seu topo. Era madrugada e havíamos superado a última grande montanha da cordilheira Jedhê Isninkri. O céu estava limpo, estrelado, sem luas e antes do amanhecer, o sol tocou o topo do pico, que se tingiu de um laranja intenso iluminando a madrugada. Era como um segundo sol, ou mesmo uma décima lua, tão próxima e tão radiante. Era uma visão rara, que podia ser apreciada por poucos instantes, e apenas de certa distância. Muitos dormiam, mas Raastad e alguns outros despertaram especialmente para apreciar o fenômeno. Logo o sol passou a iluminar todo o resto e o alvorecer diminuiu o efeito da iluminação do pico.
Todo o vale sagrado, berço da civilização humana, havia sido tomado e restava apenas um foco de resistência no próprio pico celestial.
– Uma visão e tanto, não é mesmo rapaz? – comentou Raastad.
– Ah, sim. Magnífica!
– Escute-me Quill, devo adverti-lo quanto à campanha que nos aguarda.
Assenti, aguardando suas palavras.
– A Bimu Balcatemi não é a primeira lâmina dos elementos.
– Não?
– Armas assim já foram construídas no passado. Na guerra contra os Vëtmos, houve armas assim. Mas após a guerra, foram destruídas.
– Destruídas? Não teria sido melhor guardá-las, para um caso de necessidade, como agora, por exemplo?
– Isso não importa. O que quero dizer é que a Balcatemi não é uma arma simplesmente. Há inteligência nela, há emoções, e isto, poderá interferir no seu julgamento.
– Interferir? Mas como?
– Se eu soubesse, lhe diria. Infelizmente não há como prever. É possível que nada ocorra. Para isso, há casos e casos.
– Entendo, mas o que farei então?
– Não se preocupe, pois ainda não é a hora. Você saberá quando alguma interferência ocorrer. Quando isto acontecer, peço que dedique atenção especial para estes fatos. A espada é seu instrumento e não o contrário, compreende?
– Sim, general. Obrigado!
***
A força dos exércitos estava reduzida. Rumávamos para as ruínas de Drexa, a antiga cidade sagrada dos Vëtmos, plantada em terras elevadas na região central do vale. Ficava sobre uma versão diminuta do gigantesco planalto divino, ou seja, uma extensa região elevada formando um paredão íngreme e de difícil acesso. Na realidade, um local muito bem protegido, inacessível ao nosso exército. Para alcançar Drexa, local no qual estava o comandante militar das hordas, Lorde Grevos, tivemos de chegar pelos céus.
Viajávamos juntos, eu e os outros dois portadores das armas do Hostenoist. O general Raastad nos liderava pessoalmente. Eu carregava a Balcatemi, Helmut, o Fgak TàNiah e o príncipe Dévian, filho de Öfinnel, o cajado conhecido como Brilho Escarlate.
A contragosto, compartilhei minha montaria com Devian e Aztazûr ficou mal humorado, assim como eu. Hel, o dragão de Raastad, carregava Helmut. Também voavam conosco uma pequena escolta da cavalaria aérea dos elfos, composta por magos combatentes cujas mentes eram ligadas às dos cavalos, desde que estes nasciam. Ferraduras especiais lhes conferiam a habilidade de alçar voo por curtos períodos de tempo, mas sob certos encantamentos especiais, voos podiam durar um dia ou dois.
Os magos se esforçavam para manter todo o grupo oculto através de camuflagem mística. Mas descobrimos que ocultar um dragão do porte de Hel estava além das capacidades deles. Quando fizemos contato visual com o grande templo, uma centena de demônios alados veio a nosso encontro. Os cavaleiros cuidaram de distraí-los enquanto nós e os dragões voamos diretamente para a torre do grande templo.
Hel seguiu na frente e chocou-se contra a abóbada da torre, rompendo-a com facilidade. O dragão era muito grande para penetrar no templo sem, no entanto, destruí-lo por completo, de forma que se empoleirou no topo dando chance para o general Raastad e Helmut entrarem. Eu, Devian e Aztazûr vínhamos logo atrás e foi difícil de acreditar no que vimos. Raastad e Helmut se atiraram do topo da torre em queda livre no interior oco da torre, que era alta como um farol. Seguimos atrás para ver surgir um enorme pássaro de fogo, convocado por Raastad, que os conduziu com segurança até o solo. Az, não podia voar diretamente torre abaixo, pois não teria com manobrar e frear. Descemos realizando um movimento de espiral, com amplos círculos, acompanhando a linha das escadarias que desciam junto às paredes da torre.
Devian desmontou e ajoelhou-se para vomitar. Eu detestava aquela fraqueza dos homens. Ao mesmo tempo me espantava com seu estranho senso de humor.
– Uma descida e tanto! – disse limpando o canto da boca – Não vejo a hora ir novamente.
– Vamos, vossa alteza, está nos atrasando!
– Você leva tudo muito a sério, capitão Quill!
Eu estava tenso – É sim! Tudo muito sério... Vai acabar morrendo se não perceber isto logo, príncipe Devian.
– Estou em paz com a morte, por isso eu rio disso tudo. E você, está?
Dei com os ombros e ignorei sua pergunta sem refletir – Vamos, eles foram por ali.
Montei Aztazûr novamente e Devian preferiu seguir a pé.
O interior do templo estava sombrio. Seguimos a trilha de Helmut e Raastad até uma enorme câmara na qual pudemos ver Lorde Grevos. Certamente, era o demônio mais medonho que já tinha visto. Era uma espécie de lesma gigante, com uma bocarra que se abria no sentido vertical, repleta de dentes pontiagudos, grandes como adagas em fileiras sucessivas que desapareciam na direção de sua garganta. Ao redor da boca e ao longo do corpo, centenas de tentáculos e sob o abdome, centenas de pernas articuladas, mas peludas, como as de certos crustáceos. A besta era enorme, talvez maior que o dragão de Raastad.
O lorde demoníaco falou com sua voz medonha e potente – Gentileza de vocês, comandantes, se entregarem a mim. – a voz de Grevos também era irritante e chiada, e, ao escutá-la, Aztazûr ficou inquieto e difícil de controlar.
Raastad nos advertiu – para derrotá-lo, precisamos destruir o espelho, que é a fonte de seu poder.
Dito isto, reparei que atrás de Grevos, havia um grande espelho oval preso à parede. Grevos não se afastava deste, como se montasse guarda.
O monstro prosseguiu falando e então Aztazûr não mais estava sob meu controle. Era agora influenciado por um encanto de controle mental. Fui atirado para longe, enquanto Raastad esquivou-se de uma mordida feroz de Az. Rolei pelo chão e me machuquei um pouco.
Helmut deu alguns passos à frente e convocou o poder do machado dizendo –TàNiah-Shix! – Em seguida, golpeou contra o chão fazendo surgir uma fenda da qual lava brotou na forma de um jato na direção do demônio. Grevos rolou, com agilidade impossível para uma criatura de seu tamanho, livrando-se do jato de lava. Mas foi atingido por alguns respingos que queimaram sua pele rugosa e de aspecto úmido. Seu grito horrendo preencheu a câmara, quase nos ensurdecendo. A ação de Helmut pareceu quebrar o encanto de Grevos sobre Az e percebi que ele balançava a cabeça, confuso.
– Az, vá embora! Vá agora!
O dragão obedeceu abandonando a grande câmara.
Ao mesmo tempo, Grevos avançou veloz contra Helmut tentando segurá-lo com meia dúzia de tentáculos. Helmut cortou alguns deles que vinham no alto, mas simultaneamente outros já estavam se enrolando em suas pernas curtas derrubando-o com violência. Devian disparou um potente feitiço do fogo. Soprou uma intensa rajada de chamas contra o rosto de Grevos. O monstro recuou atirando Helmut contra o chão. Em seguida, o anão levantou-se um pouco zonzo.
Projetei bolas de fogo da ponta de Balcatemi. O fogo queimava a pele, mas logo se dissipava sem causar maiores danos. Tive a impressão de que não feríamos a criatura de verdade.
Raastad aproveitava nossos ataques e corria para aproximar-se do espelho. Ao mesmo tempo, uma névoa púrpura tomou o solo e começaram a surgiu uma dezena de servos demoníacos das hordas do Duque Zimbros. Cada qual, com sua deformidade. Eram demônios repulsivos. Uns se arrastavam, outros caminhavam sob patas aracnídeas, e o número de olhos destes variava entre nenhum e uma centena.
Balcatemi cortava as carapaças rugosas fazendo salpicar em mim seus fluidos escuros, gosmentos e de odor pútrido. Avancei até alcançar Devian, que queimava as criaturas que ousavam aproximar-se do Brilho Escarlate.
– Quill, rápido! Vamos unir as armas. – chamou o príncipe.
Enquanto isso, mais e mais criaturas emergiam da névoa púrpura. Cruzamos nossas armas. As chamas aumentaram em intensidade e calor. Sob o comando de Devian, formou-se uma parede de chamas ao nosso redor. Com isso ficamos protegidos por alguns instantes.
Adiante, Helmut lutava com ferocidade – Você pode ser grande... – foi atingido e recuperou-se – Droga! Tome isso! E isso!
Através das chamas, pude observar que Raastad conseguira aproximar-se do espelho, mas que o próprio Grevos estava em seu encalço. Deixando Deviam para trás, atravessei a parede de fogo e corri para alcançar Grevos. Apesar de ter-me dado as costas, o demônio logo me avistou, pois além de olhos na face, possuía alguns olhos espalhados pelas costas.
Outra boca menor, mas não menos ameaçadora, localizada em sua cauda, fez me duvidar se de fato estava na frente ou na retaguarda da criatura. Atrás de mim, clarões de fogo, explosões de lava e os gritos de Helmut indicavam que a batalha contra os subalternos de Grevos se intensificava.
Simultaneamente, Grevos atacava a mim e a Raastad, projetando uma dúzia de seus tentáculos de forma que não conseguíamos nos defender de todos, por mais velozes que fôssemos.
Vendo eu e Raastad subjugados pelos tentáculos de Grevos, Helmut desistiu de defender-se, atirando o machado contra o espelho. Ao atingir o espelho, nenhum som ocorreu. A não ser a gargalhada que Grevos não pode evitar. Sua pausa nos deu mais uns instantes de vida – Há há há! Eu sabia que um de vocês iria atirar uma das armas contra meu espelho ilusório. – A ilusão se desfez, mostrando no lugar uma grande janela aberta –Tão ingênuos em pensar que o deixaria desprotegido, num lugar tão óbvio! Há há há! Agora é hora de comer suas carnes e suas almas seus id...
O estrondo foi forte e rochas voaram sobre nós todos, não poupando ninguém de sofrer ferimentos. Por trás da enorme parede que ruíra, Hel atacava Grevos com uma mordida certeira no meio de suas costas. Os tentáculos que prendiam a mim e a Raastad se afrouxaram e caímos. Mal pude ver quando Grevos foi puxado para fora do templo pelo dragão.
A luta do lado de fora parecia feroz. Eu estava zonzo e bastante ferido. Raastad já estava de pé. Tossia e mancava em minha direção, enquanto Devian lançava jatos de chama contra o que restava dos subalternos de Grevos. Para nosso alívio, a terrível névoa púrpura começou a se dissipar.
Raastad me deu a mão – Vamos Quill, precisamos encontrar o espelho, imediatamente!
Enquanto seguíamos templo adentro, escutávamos, vindos de fora, os rugidos de Hel e os gritos cheios de maldição de Grevos. No início de nosso avanço, Raastad me ajudava a seguir em frente. A cada passo, ele gemia fazendo terríveis caretas, como se fosse golpeado. Percebi o que ocorria, sua ligação com Hel era forte e profunda, de forma que na medida em que o dragão sofria ferimentos, Raastad não só compartilhava a dor, mas também era perfurado.
Logo, eu e Helmut tivemos de carregá-lo, pois não conseguia fazer nada além de gemer e murmurar – Hel... Não... Hel...
Convoquei Aztazûr de volta com o toque do apito e acomodamos Raastad em suas costas.
O príncipe Devian, utilizando seu conhecimento místico, conseguiu localizar uma grande fonte de energia e nos conduziu até a câmara do espelho. Ele indicou – Está logo adiante, atrás daquela p...
Paredes ruíram e o chão estremeceu. Grevos estava de volta. Terrivelmente ferido, arrastava-se com dificuldade, mas rápido o suficiente para alcançar-nos, fazendo-nos correr por nossas vidas. Instruí Aztazûr a seguir outro caminho levando Raastad para longe do perigo. Minhas pernas queimavam de tanta dor, mas sabia que se não corresse com todas as minhas forças, estaria condenado. Estávamos próximos do local indicado por Devian, mas seríamos alcançados antes mesmo de ter a chance de chegar. Devian gritou – Quill, Helmut, sigam! Vou tentar atrasá-lo.
E esta foi última ação do príncipe Devian. Atrasar o avanço do terrível Lorde Grevos.
Chegamos à câmara na qual identificamos o espelho de Grevos. Era bem menor que o espelho ilusório. O espelho estava apoiado numa mesa de metal retorcido esculpida com motivos macabros.
Quando Grevos penetrou na câmara ele já implorava – Não! Por favor! Vocês não sabem o que estão fazendo! Vamos negociar! Posso lhes dar qualquer coisa! Qualquer coisa.
Enquanto eu pensava duas vezes no que poderia vir a significar "Qualquer Coisa", Helmut deu o primeiro soco contra a superfície do espelho.
– Não! – urrou Grevos em pânico.
Sob o segundo e terceiro socos de Helmut contra o espelho, que era difícil de quebrar, observei o corpo de Grevos começar a se dissolver e degenerar. Logo, minhas dúvidas acabaram e terminei de quebrar o espelho com num golpe pesado da bela Balcatemi.
Grevos agonizou e dissolveu-se e finalmente evaporou diante de nós. Entre seus restos pudemos recuperar, intacto, o Brilho Escarlate. O monstro engolira o cajado junto com Devian. O que restou de seu corpo era uma massa de carne e ossos.
A derrota de Grevos foi um importante ponto de virada. O duque Zimbros ficou sem seu grande estrategista e comandante militar. Suas hordas começaram a ser derrotadas, batalha após batalha, até que o vale sagrado ficou livre novamente.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top