Capítulo Um:
Enquanto caminhava pelos corredores do colégio, Theodora, ou melhor Dora, tinha certeza de que sua nova cor de cabelo era a mais escandalizadora do último mês. Pelo menos para os seus colegas da Greenfield School, onde o normal era ter cabelo castanho claro ou escuro. No máximo, ruivo e loiro tingidos.
Roxo definitivamente não fazia parte do padrão entre as pessoas dali.
— Olhesó para nós — disse Eduardo, seu melhor amigo e fiel — escudeiro. —Não é maravilhoso voltar de um ótimo fim de semana já cercado por ódio às... Que horas são mesmo?
Dora consultou o horário no celular.
— Oito e quatro.
— Isso. Às oito e quatro da manhã. — Ele respirou fundo com um sorriso no rosto, os óculos tortos descendo pela ponte do nariz.
— Consegue sentir o aroma do que promete ser mais uma péssima semana?
— Não seja tão pessimista — Dora disse, parando em frente ao seu armário e jogando os livros lá dentro. — Talvez você consiga passar da quarta-feira sem ter a cabeça enfiada na privada.
Ed fez uma careta, recostando-se nos armários.
— Que lembranças doces...
— Já disse mil vezes que posso resolver essas situações em um passe de mágica — Dora comentou com um meio sorriso.
— E então todos descobrem que você é uma fada.
Dora olhou para os lados, certificando-se de que não tinha ninguém por perto.
— Fala um pouco mais alto e talvez o presidente escute você. Ed soltou uma gargalhada.
— E eu não sou nenhuma fada. — Só de pensar naquilo ela tinha vontade de vomitar.
Dora bem sabia que não tinha absolutamente nada a ver com a versão estereotipada das fadinhas brilhantes que Hollywood impregnara na população. Ser comparada com a Tinker Bell era uma ofensa à Tinker Bell. Dora tinha certeza que a fadinha de Peter Pan torceria o nariz para as suas jaquetas de couro, coturnos e calças pretas.
— Se continuar trocando a cor de cabelo a cada segunda-feira
— continuou Ed, olhando sério para ela agora —, as pessoas vão começar a desconfiar. — Dora sufocou uma risada, sem conseguir acreditar no que estava ouvindo. — Ei, tô falando sério! Nenhum cabelo normal resiste a tanta tintura.
— É porque eu não uso tintura, querido — ela falou, dando as costas para Ed e caminhando pelo corredor na direção do armário dele. — Uso mágica.
Dora jogou os cabelos curtos sobre um dos ombros, dando uma piscadinha para ele. O amigo revirou os olhos.
— Tá legal. Depois não diz que eu não avisei.
Ed abriu o próprio armário para pegar os livros da primeira aula. A decoração dele era totalmente diferente da de Dora. Enquanto ela insistia em colar adesivos de caveiras e caldeirões, além de um milhão de fotos do seu ídolo Elvis Presley na porta do armário da escola, Ed tinha figurinhas de animes, frases de Game of Thrones e alguns certificados de concursos escolares que já tinha ganhado.
Dora gostava de pensar que a melhor parte de se estudar em uma escola internacional no sul de Minas Gerais não eram os ótimos professores ou a grade curricular que visava formar alunos com excelência, mas sim poder usar armários como nos filmes norte-americanos que ela tinha crescido assistindo. Ela nunca tinha contado à mãe, mas metade do seu esforço estudando seis meses com afinco para ser aceita na Greenfield School foi para realizar o sonho de ter um armário escolar e poder decorá-lo como quiser.
— Se eu tivesse magia de fada, usaria os meus poderes para fazer outras coisas em vez de pintar o cabelo — Ed disse enquanto eles caminhavam pelo corredor. — Tipo, sei lá, me teletransportar por aí...
— Você tá careca de saber que eu não posso me teletransportar. Isso é coisa de filme de ficção cientifica. — Dora bufou, sussurrando para o amigo. — E eu não sou uma fada, caramba.
Ed sorriu para si mesmo. Ele sabia como chamá-la de fada a irritava. Aliás, Dora não tinha asas nem varinha de condão. Quer dizer, ela podia levitar por aí se quisesse, mas só porque conseguia controlar muito bem as correntes de ar que a manteriam flutuando.
Também não era como se, ao trocar a cor do cabelo magicamente, fazer aparecer, desaparecer e levitar objetos, um brilho encantado surgisse a cada mínima pitada de magia. A mágica simplesmente acontecia. Estava no seu sangue, correndo por suas veias há gerações. Ela não precisava de varinha mágica. Tudo que bastava era um pensamento bem direcionado.
— Você não precisa se imaginar como uma fada, uma bruxa ou seja lá o que for — a mãe sempre lhe dissera, desde que era uma garotinha. — Se imagine como alguém que nasceu um pouquinho mais diferente que os outros. E se lembre sempre disso, Theodora: diferente. Não estranha. Certo? — E ela sempre respondia que sim.
— Você é como eu, como sua avó antes de mim e a sua bisavó.
— Todas elas eram... diferentes? — a Dora de oito anos perguntava, só para ter certeza de que ela e sua mãe não eram as únicas, porque nunca chegara a conhecer outro membro mágico da família. A magia só corria forte pela linhagem de sua mãe, e sua avó havia morrido antes que ela nascesse.
— Eram sim — confirmou a mãe em uma noite particularmente clara no jardim dos fundos. — E, com o passar do tempo, se tornaram cada vez melhores nos dons que possuíam.
Então sua mãe aproximava ainda mais o rosto do da filha, seus olhos verdes brilhando como estrelas cadentes.
— Mas elas mantinham os dons escondidos. Compartilhavam o segredo apenas com a família e uma ou outra pessoa que amavam e confiavam. É assim que tem de ser. Foi comigo, e será com você.
— Por que ninguém pode saber?
— Porque, querida garota curiosa — a mulher se esticou com a filha na toalha de piquenique que haviam estendido na grama.
Ambas fitaram as estrelas no céu —, as pessoas lá fora não estão preparadas para aceitar o diferente. Mulheres que não eram nem verdadeiras bruxas foram queimadas no passado, o que você acha que fariam com as de verdade?
— Mas... — Dora franziu as sobrancelhas, voltando a olhar para a mãe. — Podemos usar a magia em segredo, né? Para brincar e... ajudar as outras pessoas. Sabe, nós podíamos ter ajudado papai quando... — Mas a garotinha não conseguiu concluir, pois sentiu como se uma dor muito grande tomasse conta do peito e da garganta, lhe impedindo de falar.
A mãe ficou em silêncio por um longo tempo, e Dora quase achou que ela não fosse responder.
— Querida, certas coisas nem mesmo a magia pode resolver — ela disse, aninhando a filha nos braços. — Há coisas que são bem mais fortes do que um pensamento seu e um estalar de dedos.
— Então não podemos trazer o papai de volta? Nós duas juntas?
— Não, Dora. Nós não podemos — a mãe disse, e as palavras pareceram cortar como lâminas afiadas.
Dora, com raiva, sentiu os olhos lacrimejarem. Enxugou as lágrimas com as mãozinhas pequenas. Odiava chorar como um bebê.
— Ei, escuta. — A mãe segurou as mãos de Dora, impedindo-a que esfregasse mais o rosto. — Não podemos trazê-lo de volta, mas podemos nos lembrar dele de um jeito que a magia permite.
— Como? — perguntou Dora, esperançosa.
Com um simples gesto da mão esquerda, uma miragem surgiu diante dos olhos das duas. Era uma lembrança. Uma lembrança do aniversário de seis anos de Dora. Nas imagens translúcidas, Dora podia ver o pai ajudá-la a soprar a velinha do bolo, em seguida a pegando nos braços e rodopiando pela sala, enchendo-a de beijos e dizendo que ela já havia se tornado uma mocinha.
A miragem tremulou e desapareceu, como a chama de uma vela quando o vento sopra.
— Pode me ensinar a fazer isso? — ela perguntou imediatamente à mãe, ansiosa para rever, não só aquele, mas vários momentos que só guardava na memória.
— É claro — respondeu a mãe. — Mas há um jeito bem mais fácil de se lembrar do seu pai, e até mesmo conversar com ele. — Ela então apontou para uma estrela no céu, a mais brilhante e linda de todas. — Está vendo aquela estrela, Dora? Lá é onde papai mora agora. Sempre que olhar para o céu e pensar nele, vai saber que ele está por perto. É só olhar para aquela estrela.
Dora olhou, todas as noites e pelos nove anos que se seguiram. Sempre que se sentia triste ou zangada, sempre que tinha uma novidade que queria compartilhar com o pai que perdera. Todas as suas conquistas e erros, ela havia confidenciado a ele.
A estrela sempre esteve ali. Mais presente e constante que a magia.
— E é por isso que eu acho que vou ser um horror na prova de japonês.
Dora piscou depressa e desviou a atenção para Eduardo, que estivera tagarelando durante todo aquele tempo. Ela mal tinha prestado atenção, tão perdida que estava nos próprios pensamentos.
— Você é o melhor aluno do curso de japonês, Ed, todo mundo sabe disso. — ela falou. — Você tá nervoso à toa.
— Eu não sou o melhor. Stella Vieira é a melhor. Nunca vi alguém que consiga aprender línguas tão rápido!
— Disse o garoto que fala inglês, espanhol e já está entendendo japonês...
— Stella sabe todas essas e ainda arrasa no alemão.
— Acho que você anda preocupado demais com o progresso da Stella...
— O quê? — Ed notou a sugestão no rosto de Dora e ficou vermelho. — Você nem começa. Não quero ouvir uma palavra.
Dora começou a cantarolar baixinho o hino nacional dos apaixonados brasileiros: É o Amor, de Zezé Di Camargo e Luciano.
Eles ainda estavam se implicando quando de repente todos os olhares foram atraídos para o fim do corredor, onde o grupo mais chamativo, não só do colégio, mas de toda cidade de Santa Tereza, praticamente desfilava.
Era como se as três garotas e os três garotos fossem estrelas de cinema, caminhando em câmera lenta pelo corredor enquanto todos paravam o que estavam fazendo para assistir ao grupo magnífico.
Dora tinha certeza de que ainda vomitaria por causa deles algum dia. Já conseguia sentir o estômago embrulhar.
— É melhor a gente dar o fora. — Ela ouviu Ed sussurrar em seu ouvido, enquanto a puxava pela manga da jaqueta jeans, cheia dos seus bottons favoritos.
— Eu não — Dora disse, se desvencilhando e dando as costas para os astros de Hollywood. — O corredor é público, não é? Não tenho o mínimo interesse em sair daqui. Na verdade, gosto bastante desse lugar. Sempre tão iluminado a essa hora... Você sabe como eu adoro a luz do sol.
Ed ficou pálido, enquanto observava de olhos arregalados o grupo se aproximar por trás de Theodora. A garota, porém, sempre detestara o modo como os garotos populares do colégio tratavam seu melhor amigo e odiava ainda mais o que eles geralmente faziam com ele.
Se pelo menos sua mãe não a enterrasse viva se ousasse ajudar...
— Theodora — uma voz irritante, grave e provocadora disse perto dali. Ela endireitou as costas e se virou lentamente para Owen, o queridinho da escola, filho de empresário americano e mãe brasileira que se achava a última bolacha do pacote, o verdadeiro bam bam bam do pedaço.
Dora o odiava. Ela o odiava tanto que às vezes precisava sufocar sua magia para que não escapasse e acabasse transformando aquele imbecil em uma lagartixa. Uma que ela poderia esmagar com o cano do seu coturno.
— Owen — ela falou com o seu melhor sorriso debochado, porque não respondê-lo faria parecer que ela tentava passar despercebida, e Dora nunca aceitaria uma derrota se tratando daquele cara.
— Gostei do cabelo — ele disse, os olhos faiscando. — E da jaqueta. Andou assaltando uma loja de fantasias punk?
Os garotos atrás dele soltaram risadinhas. As meninas ainda estavam mais distantes no corredor, mas Dora percebeu o olhar de Júlia, namorada de Owen, analisar a cena com uma mistura de raiva e interesse.
— E você parece ter saído de dentro do armário de um mauricinho — Dora rebateu, analisando o uniforme perfeitamente passado e engomado de Owen com tranquilidade. Tirando a gravata frouxa, ele parecia ter saído de um daqueles folhetins de divulgação do colégio. — Mas nada contra suas roupas. Acho que o problema é a sua cara mesmo.
— Ah, porque você é muito bonita... — ele disse com óbvio sarcasmo.
— Eu sou. Mas obrigada por reforçar.
Naquele instante, Dora sentiu o corpo ser impulsionado para frente com brutalidade quando alguém passou por ela em um encontrão obviamente intencional.
— Ah, desculpa... — uma voz fina e afetada disse. A loura alta se virou para ela. Aquele batom vermelho familiar, Dora supunha, poderia ser usado como semáforo em uma rua menos movimentada.
— Ah, é só você, Theodora.
Dora encolheu quando ouviu o nome sair da boca desprezível de Júlia Teixeira, a líder do grupo. Pela milésima vez, teve vontade de confrontar a mãe e perguntar o motivo pelo qual lhe dera aquele nome horroroso.
— Não te reconheci — Júlia continuou, por causa do salto alto, olhando Dora de cima. — Aliás, até semana passada você estava usando um cabelo... O que era mesmo? Verde tipo limão azedo?
Amanda e Marilu, namoradas e verdadeiras princesas da escola, soltaram risinhos, enquanto os três garotos, os melhores e mais bonitos jogadores de futebol do ensino médio, deram gargalhadas estrondosas.
— Esse mesmo — Dora respondeu, parecendo despreocupada e sem se deixar abalar. — Limão azedo bem parecido com essa sua cara, por sinal.
Os risos cessaram e, ao seu lado, Dora ouviu Ed arquejar. O coitadinho só faltava morrer.
Júlia se inclinou para frente, fuzilando Dora com aqueles enormes olhos azuis.
— Olhe aqui sua...
— Sua o quê? — desafiou Dora, desejando ser pelo menos cinco centímetros mais alta naquele momento. Seu um metro e cinquenta e quatro não eram lá muito úteis. Já pensara em mudar sua altura muitas vezes, mas, sempre que tentava, seus músculos ficavam terrivelmente doloridos. — Você não faz ideia de como eu quero que você fale alguma merda, Júlia.
Assim, talvez, eu vou ter mais um bom motivo para te transformar em um sapo gosmento, pensou Dora. Não que a mudança vá trazer alguma diferença, afinal de contas.
— Ei, garotas, está tudo bem aqui, não é? — interveio Ed naquele momento, enfiando-se entre as duas. Ele sabia quando Dora estava a ponto de explodir. Se ela fosse um pouco mais descontrolada e ruim naquela coisa de magia, sua raiva poderia extrapolar na forma de raios ao redor da sua cabeça. — Aposto que não querem ir parar na detenção em plena segunda-feira. Não é, Dora?
— Se eu fosse você, saía daí, cara — Owen disse.
— Você é quem devia dar o fora — Dora rebateu.
— Ora, é bem fácil lidar com esse daqui. — Júlia tinha perdido o interesse em Dora, empurrando Ed como se ele fosse um saco de batatas. Ele se desequilibrou sobre os calcanhares, mas, por um pequeno esforço da mente de Dora, não caiu no chão. — Não é difícil imaginar por que nenhuma garota se aproxima de você, não é Ed? Está sempre andando com essa daí para cima e para baixo como um cachorrinho abandonado. — Dora precipitou-se para frente, mas, no mesmo instante, foi interceptada por um dos caras altos e fortões do grupo.
Júlia inclinava-se sobre Ed como um gigante cruel prestes a devorar sua presa. Um gigante que usava batom vermelho e brincos dourados.
Dora tentou empurrar o garoto na frente dela, mas ele não se moveu um centímetro. Se pudesse, mandaria todos pelos ares.
— Deve ser bem chato, não é? — continuou Júlia. — Além de ser tão patético, andar em péssima companhia e ser praticamente um zero à esquerda, ter que frequentar essa escola sabendo que só está aqui porque seu pai é o zelador e conseguiu um desconto generoso na mensalidade do colégio.
Aquilo foi a gota d'água.
Dora juntou suas forças e as combinou com uma pitadinha de magia para mover o garoto do grupinho de Júlia da sua frente.
Caminhando até Ed, ela o segurou pelo pulso. Dora sabia que ele não demonstraria qualquer reação às palavras cruéis de Júlia. Ele era assim. Seu modo de defesa era esconder-se dentro de si mesmo e tentar ignorar a dor o máximo que conseguisse.
— Suma daqui — foi tudo o que Dora conseguiu dizer para Júlia, que, com um sorriso, estava disposta a continuar com aquela cena ridícula.
— Eu não ob...
Mas Owen segurou-a pela mão, fazendo com que se afastasse deles.
— Deixa disso, Ju — falou para a namorada. — Não vale a pena.
E, tão rápido como veio, o grupo foi embora.
Olhando para os lados, Dora se deu conta da multidão que havia se reunido no corredor para assistir ao espetáculo. Sentiu a raiva crescer dentro de si.
— Vamos, Ed.
Juntos, deixaram o corredor, conseguindo refúgio na cantina vazia.
— Vou dar um jeito nisso, Ed. Prometo — Dora falou, olhando para o amigo, que parecia a todo custo tentar conter as lágrimas.
— Não, Dora — ele murmurou, balançando a cabeça. — Agradeço por tudo que sempre faz por mim, mas nada de magia. Sua mãe sempre diz isso e nós sabemos que é verdade. É melhor deixar as coisas como estão.
— E aguentar isso até o dia da formatura? — Dora questionou, encabulada. — De jeito nenhum.
— E o que você quer fazer, então?
Dora sorriu com malícia, a ideia tomando forma na sua cabeça.
— Se não sou uma fada, bem, posso ser uma bruxa — ela considerou, sentindo a empolgação correr pelas veias. — Querido, Sabrina ficaria orgulhosa se soubesse o que vamos fazer.
— Do que você tá falando? — Ele olhava para Dora como se a amiga tivesse enlouquecido de vez.
— Vamos preparar amor engarrafado, Ed — revelou com um sorriso. — E vamos oferecer de bandeja para Júlia.
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