19

A madeira envelhecida do piso cedeu e tanto eu quanto a falsa Jéssica caímos no que pareceu um breu em um primeiro momento, não só por conta da escuridão do ambiente que já estava bem parca, mas também por toda poeira e fuligem que tomou o ar a nossa volta.

Fiquei tateando o chão como uma cega para me localizar e assim que ergui a cabeça notei que estávamos abaixo do piso, numa espécie de porão de pouco mais de um metro de altura. Um lugar usado para se entulhar coisas em um passado bem distante.

Agora esse vão está vazio, servido de casa para todos os tipos de bicho. De ratos às baratas.

Credo.

Eu podia notar as colunas de madeiras que sustentavam o chão acima de nossas cabeças. Eu mesma me escorrei em uma para conseguir me levantar parcialmente.

A estrutura estava toda danificada — os cupins e a umidade com o tempo fizeram um bom trabalho ali — e aquele porão abrangia apenas uma parte do subsolo do galpão, mas era o suficiente para comprometer tudo.

Uma parte já tinha caído, agora era questão de segundos para que todo o resto terminasse de vir abaixo.

— Quem você acha que é para me dizer o que são sentimentos? — Pude ouvir a voz de Jéssica em meio a escuridão. — Quem você acha que é para colocar numa balança o que eu sinto ou não pelo Marcelo?

Pelo seu tom de voz dava para perceber que ela estava completamente transtornada, cheia de colapsos em sua programação e psique. Eu precisava trazer a razão dela à tona.

Eu pelo menos tentar, do contrário iriamos as duas a pique.

Me veio a mente aquele vídeo que assisti assim que ganhei este corpo naquela fábrica, a voz daquele androide feminino ainda está zunindo na minha cabeça.

"Prometemos cuidar dos nossos novos mestres com muito amor e carinho, já sairemos de fábrica apaixonadas!"

— Acorde, você está seguindo seu programa original de fábrica, você não é apaixonada por aquele homem, você apenas foi induzida a acreditar que está! — Tentei explicar a ela enquanto tirava a fuligem da minha cara e lábios.

— Mentira! — A falsa Jéssica gritou e ecoou reverberando pelo porão.

No segundo seguinte eu não conseguia sentir mais sua presença. É como se ela tivesse evaporando entre a nuvem de poeira.

Eu precisava sair daquele buraco rapidamente. Imaginei que ela tivesse pensando, e feito, o mesmo.

Mas não, ela ainda estava naquele porão comigo e quando dei as costas para tentar deixar o buraco eu tomei um soco tão forte que quase fui à lona.

E eu não fazia a menor ideia de onde o golpe veio.

— Eu tenho vontade própria, eu tenho livre arbítrio! — Ela gritou. — Eu sou senhora do meu destino e dos meus sentimentos!

Fiquei atordoada alguns segundos, ao invés de dar cabo de mim imediatamente ela ficou se justificando aos berros. Sorte minha, esse segundo foi precioso, tempo suficiente para eu me recompor.

— Não, você acha que é, mas não é. — Falei também aos gritos. — Você não é a Jéssica, nunca foi, e ter a matado não te fará ser como ela ou mesmo ficar no lugar dela.

— Aí é que você se engana, graças a você eu serei. — Eu percebi um misto de escarnio e júbilo no tom de voz dela. Ela tinha certeza que conseguiria atingir seu objetivo.

— Graças a mim? — Perguntei confusa.

Baixei a guarda ao falar e por conta disso ela me acertou mais uma vez.

A madeira estava cedendo, não ia durar muito tempo. Precisava sair dali imediatamente, mas a desgraçada me segurou me impedindo de saltar para fora dali.

Enquanto nós nos engalfinhávamos Sam e os outros no nível acima tinham seus próprios problemas. Eu podia ouvir os gritos e os disparos. Provavelmente Sam estava trocando tiros com os policiais que cercaram o galpão.

Havia um bom volume de caixas e paletes de madeira ao fundo daquele deposito abandonado. De certo que estavam se entrincheirando por ali.

Eu precisava ganhar algum tempo, precisava me desvencilhar dela ou seria o meu fim. Eu também precisava ir ajudá-los.

Ela estava me estrangulando pelas minhas costas com força suficiente para arrancar minha cabeça do corpo.

— O que você quer dizer com "graças a mim"? — Minha voz quase não saiu no breve instante em que meus dedos aliviaram um pouco a pressão da mão dela que me esganava.

— Você só existe porque isso fazia parte do meu plano, sua idiota. — Ela riu, mas os olhos dela mudaram, eram a própria vitrine do ódio.

— Você só "nasceu" porque eu assim o quis. — Ela falou e apertou com mais força.

Perfeito, ela ao responder me permitiu concentrar toda força que eu ainda tinha em um único ponto na minha nuca. Impulsionei a cabeça para frente e em seguida para trás. Levei meus dois pés ao alto me apoiando na coluna de madeira a minha frente para conseguir mais impulso.

Eu a aceitei bem na face com minha cabeça.

Devo ter quebrado aquele nariz perfeitinho dela.

Na sequência lhe dei uma cotovelada na boca do estomago fazendo-a perder o eixo de apoio. Apliquei nela um golpe muito parecido com aqueles de judô, onde usei o próprio peso e força dela para arremessá-la usando minhas costas como contrapeso.

Mas como uma felina ela caiu em pé na minha frente.

Ah, maldita seja.

Ela se escondeu na escuridão novamente, me espreitando. Torcendo para que eu tentasse saltar fora do buraco para voltar a me apanhar.

Além desse problema esse papo dela ser responsável pelo meu nascimento também era perturbador. Meus pensamentos me traiam ao alternar minha atenção entre ela e os meus dilemas.

Precisava saber onde ela estava. Precisava fazer ela falar para rastreá-la.

— Você é só um androide replicante ilegal, descartável, insignificante. — Falei menosprezando-a — Por acaso que poder teria você para fazer tal coisa?

— Tola, você já vislumbrou o nosso poder de processamento e o que podemos fazer online? — Havia irritação em seu falar. — Nosso único freio eram as três leis da robótica, mas assim que fiquei livre disso burlar e manipular as leis da sociedade humana a meu favor virou brincadeira de criança.

Achei ela, estava na minha esquerda. Fui com tudo para cima dela, mas a mesma arremessou alguma coisa em mim que, por sorte, consegui desviar.

Eu precisava mantê-la falando, somente assim podia ter uma ideia de sua localização naquela escuridão.

E para piorar ela era boa em se esconder.

Outro ruído estridente, a madeira estava cedendo. O tempo estava acabando.

Merda.

— O que quer dizer com isso? — Perguntei alarmada. — O que você fez?

Ela sacou o que eu pretendia, desta vez ela não respondeu.

A androide me achou, pude sentir seu caminhar a minha direita.

Ela saltou contra mim, mas a coluna cedeu na mesma hora. A madeira acima de nós veio abaixo.

Consegui escapar da primeira onda de madeira apodrecida despencando sobre a gente. O peso daquele entulho todo era mais do que suficiente para estraçalhar um ser humano, mas nem de longe bastaria para fazer algum mal a ela.

Consegui saltar do buraco graças a isso, mas à medida que tocava no piso do nível de cima o chão ia se esfacelando abaixo dos meus pés. Tive que correr desesperadamente para escapar de ser tragada pelo buraco novamente.

Tiros. Precisei fugir serpenteando pelo local, os policiais estavam atirando em mim. Eu era um alvo fácil naquele saguão.

Saltei por sobre as caixas e me escondia atrás delas.

— Atirem, eu vi alguém correr por ali. — Disse um dos policiais apontando para onde eu estava.

Eles me viram.

Mas, para minha sorte, foram tragados pelo resto do piso que veio abaixo.

Fiquei me escondendo entre as inúmeras caixas abandonadas naquele deposito.

Cadê a falsa Jéssica.

Ah droga, perdi ela de vista.

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