18
— Jéssica? — A minha voz quase não saiu. Eu estava diante da Jéssica em pessoa, isso não fazia o menor sentido.
Eu vi o corpo dela imóvel, pálido, gelado.
Morta.
Lá estava ela estirada naquela maca comum no IML com um número escrito em um papelzinho qualquer e preso ao seu dedão do pé.
Uma pessoa resumida a apenas uma carcaça com um número.
Eu vi a marca da perfuração da faca. Eu estava lá.
Não pode ser ela.
Mas quem é essa pessoa parada aqui na minha frente? Uma miragem, eu fui hackeada?
Não faz sentido.
Nada anda fazendo sentido.
— Surpresa? — Ela sorriu maliciosamente para mim.
Fiquei sem reação, tive dificuldade de articular e pronunciar uma frase.
— Como isso é possível? — Perguntei ainda abismada.
Ela avançou contra mim numa velocidade astronômica, e passou a deferir uma sequência de chutes e pontapés dignos de um lutador profissional de MMA. Seus movimentos disparados a quase Mach 1.
Ou seja, beiravam a velocidade do som.
Para mim, mesmo possuindo este corpo muito mais ágil que o de um ser humano normal, desviar dos ataques foi muito difícil.
A velocidade era tamanha que se eu ousasse defender a chance de ser estraçalhada por conta do fator velocidade e massa era altíssima. Isso era física dinâmica básica. Só me restava esquivar, mas eu não me movia tão habilmente quanto ela.
De uma hora para outra ela resolveu muda de estratégia e passou a me atacar com chutes. Seus golpes pareciam movimentos de Muay Thai executados com destreza.
Eu tinha que me manter a uma distância segura dos pés dela, já que eu não fazia a menor ideia de como defender isso. Se eu estivesse online poderia buscar e baixar da rede informações e aprimorar minhas habilidades de luta instantaneamente.
Mas eu estava off-line. Baita desvantagem.
Uma hora ela ia me acertar.
E acertou.
Jéssica encaixou um pesado chute no meu peito me arremessando para longe.
Senti tudo se revirar dentro de mim. Se eu fosse humana talvez meu corpo tivesse explodido tamanha a força do impacto.
Assim como Sam eu cai pesadamente de costas no chão liso e gelado e ainda deslizei por vários metros até parar.
Fiquei atordoada. Minhas vistas falharam por alguns instantes, meus músculos se retraíram.
Achei que meu corpo estivesse plenamente danificado.
Para minha sorte não, eu ainda me movia. Virei o pescoço para o lado.
Vi minha arma no chão. Tentei alcançar.
Mas antes que eu pudesse esticar o braço e pegá-la a maldita a chutou para longe e, quando eu pensei em me recompor, ela já estava em cima de mim praticamente com um joelho sobre meu peito e com uma mão pressionando minha face.
— Você vem comigo. — A expressão dos olhos dela era de pura fúria.
Os dedos dela começaram a danificar a estrutura do meu rosto, sentia os músculos rasgarem e meu esqueleto artificial começar a trincar.
Apesar de seu desejo de me levar cativa imagino que o estado físico de meu corpo tenha baixíssima utilidade para ela.
Ela ia me destruir sem dúvidas, mas foi interrompida, parou de se mexer.
Um disparo. O som ecoou demoradamente pelo ambiente daquele galpão gigantesco.
Me soltei e mesmo caída tornei a olhar para o lado e vi Sam apontando sua pistola contra Jéssica.
Ele havia recuperou sua arma e acertou ela no ombro. Eu escapei de baixo dela e rolei pelo chão para longe da mesma.
Ela olhou o ferimento causado pelo tiro. Dava para ver a leve fumaça subir do buraco criado pela bala.
Jéssica não urrava de dor, não parecia se incomodar.
Olhou com desdém para o dano causado. Não tinha escorrido uma única gota de sangue sequer.
Por alguns segundos ela ficou encarrando Sam e o mesmo se esforçava para mantê-la na mira.
Jéssica se movia para o lado ele se movia apontando a arma também, ela se movia para o outro e a valsa se repetia. Eu via a arma tremer na mão dele.
O pobre coitado estava tenso. Ele sabia que se errasse o alvo daquela distância ela o pegaria.
Ele atirou.
E errou.
Ela saltou na direção de Sam, mas prevendo seu movimento eu saltei junto e a interceptei em pleno ar fazendo-a cair.
Assim como aconteceu antes comigo a acertei e a fiz deslizar no chão liso, com a diferença de que ela só parou quando se chocou com a parede do galpão.
Após impedir o avanço dela contra Sam eu me ergui e a desafiei com o olhar. Ela se ajeitou calmamente ficando apoiada em um dos joelhos sem também tirar os olhos de mim.
Nenhuma de nós sequer piscava,
— Você não é a Jéssica. — Afirmei olhando ela nos olhos. — Quem é você?
Ela se levantou com maestria e correu em uma única explosão de impulso em minha direção.
— Eu sou...
E em seguida me acertou outro chute desconcertante.
— ... a Jéssica. — Ela gritou como se aquela expressão, para ela, fosse um kiai, aqueles gritos que praticantes de caratê soltam quando esmurram alguma coisa.
Eu me recompus aos tropeços antes que ela subisse em cima de mim novamente.
— Não... — ofeguei, meu corpo artificial precisava acumular oxigênio para as explosões musculares que viriam — Você não é. É um androide, assim como eu.
— A Jéssica seria incapaz de matar uma mosca, quiçá acertar alguém com chutes, ou mesmo se mover como você. — Completei.
— Não... — ela balançava a cabeça em negativa com veemência — Você está enganada... Eu sou a Jéssica.
Antes que voltássemos a nos esmurrar notamos Sam se aproximando de nós duas.
— Não, você não é a Jéssica. — Sam falou em tom de ironia com ela. — E você sabe muito bem disso, a quem acha que está enganando?
— Eu já disse eu sou a...
— Mentira! — Gritou Sam a interrompendo. — Você sabe que não é ela. Você sabe quem você é e eu sei quem é você.
— E quem é ela Sam? — Perguntei rangendo os dentes sem descuidar de vigiar um único movimento dela.
— Ela é um androide. — Sam apontou o indicador para ela. — Como você. — Ele se virou para mim.
— Mentira! — Ela gritou transtornada. — Eu sou ...
— Um androide de conforto ilegal. — Sam interrompeu ela novamente aos berros.
Ela parou de se mover. Ela parecia lutar dentro de si contra aquela afirmação.
— Como é que é? — Indaguei confusa.
— Ela é o androide construído de forma clandestina sob encomenda de Marcelo — Sam respirou fundo como se estivesse se lamentando. — Para ficar no lugar da Jéssica original.
Ela reagiu como se aquela informação tivesse sido um tapa na sua cara.
Sam se aproximou mais de nós duas, mas com a arma engatilhada e pronta para disparar. Daquela distância ele não errava.
— Um androide substituto, uma réplica igual ao androide que o senhor Reed mandou fazer para copiar a sua esposa, a senhora Reed.
— O senador Reed e sua mulher? — Questiono como se afirmasse ao mesmo tempo. — A mesma que entregou o dossiê para Jéssica?
— Esses mesmos. — Ele respondeu. — Os pivôs disso tudo.
— Você... — a falsa Jéssica olhou com ódio para Sam — você é o culpado.
Desta vez foi Sam que devolveu uma careta ao melhor estilo "não estou entendendo".
— Ele ainda seria meu.
Ela bate no peito e grita ainda mais alto.
— Ele seria só meu! — Ela enfim berrou a plenos pulmões.
— Que maluquice é essa, Sam? — Pergunto.
— O dossiê que Jéssica espalhou, — ele tomou folego para falar, tamanha sua tensão — denunciou todos os clientes dos Gepetos que encomendavam androides ilegais. Marcelo estava na lista, eu sei disso porque essa mesma lista fui eu que copilei.
— Ele não ia me abandonar... — ela tremia enquanto falava, parecia fora de si — não ia me abandonar... foi culpa sua... — ela apontava para Sam com o seu indicador que sacolejava no ar — sua!
Isso fazia todo sentido agora para mim, já que provavelmente Marcelo apavorado com a ideia de ser taxado de Agalmatofilo, e ainda ter que responder por crime de replicação de terceiros sem autorização, se viu obrigado a devolver sua androide para o Gepeto que a fabricou.
Ele a da mesma forma que uma família descarta um cão na rua, mesmo após o animal ter ficado anos ao lado deles, como se fosse lixo.
Isso que ela era.
Isso que ela é.
Descartável.
— Marcelo só não contava que o seu Gepeto também tinha sido denunciado. — Sam continuou. — Esse mesmo Gepeto acendeu uma grande pira para queimar tudo e sumir com seus androides ilegais.
— Você só escapou porque ele não a desativou por algum motivo. — Eu deduzi e apontei para a androide. — Mas porque ele não te desligou?
Ela se pôs a gargalhar.
— Ele não me desativou porque precisava de mim para um último trabalho sujo: — Ela falou orgulhosa. — Ter que matá-lo.
As nossas expressões foram mais de surpresa do que qualquer outra coisa.
— Ele decidiu pôr fim a própria vida. — Ela se deu ao trabalho de explicar.
Ela bateu no próprio peito como uma forma de afirmação.
— Eu era a próxima, ouviram bem? — Ela gritou mais alto. — Eu era a próxima a ser consumida pelo fogo.
Ela foi se aproximando de nós dois e a cada passo que ela dava recuávamos dois.
— Ele me poupou, apenas para remover de mim as diretrizes que me obrigavam a obedecer às três leis da robótica. — Ela sorriu de uma forma muito sinistra. — E me deu uma última missão: Que eu desse cabo da vida dele já que o mesmo não tinha a coragem necessária para fazê-lo. — Ela completou.
O que fazia sentido, visto que ele também, assim como outros Gepetos, foi desmascarado pelo dossiê. Arruinado ele optou pelo suicídio.
— Marcelo disse que viu você queimar. — Sam interveio, sua voz quase não saia tomado de temor.
— Ele não viu nada, — ela retrucou — ele fugiu tão logo me deixou com aquele velho.
— Nada faz sentido. — Me intrometi — Por que você matou a Jéssica? Ciúmes?
— Ciúmes? — Ela gritou mais alto. — Você acha mesmo que fiz isso por ciúmes?
— Que outra razão haveria? — Respondi — Você queria o homem dela.
— Homem? Acha mesmo que isso só pelo Marcelo? Jéssica não merecia a vida que tinha, eu me achava bem mais capacitada que ela para desfrutá-la. Eu decidi tomar a vida dela para mim. — Ela sorriu. — Por isso a matei, e confesso, nada me deu tanto prazer em minha curta existência.
— E por que inferno você precisava me capturar sua louca? — Protestei. — Se você já tinha dado cabo da Jéssica, o que mais você queria?
A falsa Jéssica estava compenetrada a nos explicar suas motivações, como se fosse uma forma de afirmar para si mesma que seus fins justificavam os meios. Estava distraída, nervosa, aparentemente fora de si.
Ela tinha minúsculos movimentos involuntários, espasmos que eu podia identificar. Se ela fosse humana estaria se tremendo de nervoso e suando frio.
Mas assim como eu ela não era humana. Pelo menos não na forma tradicional.
Talvez nem de forma nenhuma.
Sam também notou esse descompasso dela. Ele percebeu que precisava agir e então numa fração de segundos aproveitou nossa conversa para tentar acertar ela com um novo disparo.
Ele apontou sua arma, engatilhou.
— Morre desgraçada. — Disse ele puxando o gatilho.
Eu pude ver a bala como se a mesma estivesse se dirigindo contra a cabeça dela em câmera lenta.
Mas a falsa Jéssica estava atenta. Ela podia ver a bala com a mesma velocidade e precisão que eu.
O que foi milionésimos de segundo para Sam para nós duas pareciam uma eternidade.
Não tinha como ela escapar.
Mas a maldita não só se esquivou como também em seguida revidou acertando Sam com um soco.
O pobre Sam caiu próximo de onde Isabel estava prostrada também.
Ele só não morreu porque Jéssica estava no contrapé e por isso o soco saiu todo desengonçado.
— Sam! — Gritei em vão.
A Jéssica androide me atacou com rapidez, consegui me defender usando apenas uma única mão já que minha outra estava quebrada.
Desta vez deu certo porque concentrei toda a minha força em um único local prevendo o impacto. A força contida na minha defesa não foi capaz de me danificar.
Paramos de lutar por um instante porque ouvimos passos.
Alguém vinha em nossa direção emergindo daquele breu no meio do galpão.
Congelamos nós três. Esperávamos com um misto de incredulidade e ansiedade ver quem emergiria daquela escuridão. Quem teria coragem de ir de encontro àquela briga ou mesmo saber que estávamos ali?
Os moradores locais estavam se borrando de medo e fugindo de perto do galpão, não havia razão para alguém se aproximar.
Mas a passada era firme e ritmada. A cada passo o som ficava mais alto.
— J.0.8 Beta, eu ordeno que pare! — Escutamos a voz vinda do fundo do galpão. O som veio acompanhado com o fim de suas passadas.
A expressão de ferocidade da falsa Jéssica se dissipou no ar e no lugar entrou outra de puro pânico. Ela reconhecia aquela voz.
Enfim quando o vulto chegou perto da fonte de luz notamos que ele nos era familiar.
Mas, para quem achava que não seria pega de surpresa, eu fui surpreendia.
Era Marcelo que emergiu das sombras em nossa direção.
Eu custei a acreditar e só uma pergunta veio à minha mente: O que esse idiota está fazendo aqui?
A Jéssica androide, por outro lado, ficou petrificada.
— Não! — Ela protestou. — Não, você não podia estar aqui!
Marcelo se aproximou de nós e parou alguns segundos a admirar a falsa Jéssica, também custando a aceitar a realidade ali esfregada em sua cara.
— Então você ainda existe. — Ele constatou alarmado. — Eu acreditava que você tivesse sido destruída.
— O que você está fazendo aqui Marcelo? — Reclamou Sam tossindo sangue enquanto falava. — Eu não mandei você se afastar disso?
— Eu precisava saber o que houve com a Jéssica, — Marcelo respondeu sem tirar os olhos da falsa — precisava saber quem a matou.
Um silêncio desconfortável se instalou, nem eu, nem Jéssica, nem Sam sabíamos o que fazer, tampouco o que responder para ele.
— E eu não sou um covarde. — Marcelo enfim quebrou o silêncio e se virou para Sam o confrontando com os olhos.
— Por quê? Por quê? — Jéssica androide perguntou aos prantos. — Por quê? Eu não era boa o bastante? Porque me deixou?
Ela abria os braços gesticulando como um bicho acuado.
A androide chegou a hesitar em ir na direção de Marcelo, eu só não sabia se para abraçá-lo de saudade ou para esganá-lo. Pelo sim, pelo não me coloquei entre os dois
— Você foi construída em cima do programa dos novos modelos Waifu 1000. — Ele se lamentou. — Esse era o problema. — Respondeu.
Imediatamente me lembrei do vídeo publicitário que assisti na fábrica onde meu corpo foi fabricado.
As Waifu 1000 já saem de fábrica apaixonadas... Eu finalmente havia entendido as motivações de Marcelo em ter uma androide dessas.
O namorado da Jéssica queria conquistá-la para massagear seu próprio ego, já que se sentiu humilhado por conta da verdadeira nunca ter nutrido sentimentos por ele.
A verdadeira Jéssica nunca amou esse homem. Nunca.
Só que essa androide não tinha as memórias e a personalidade da Jéssica. Fora a aparência era uma completa estranha para ele.
— Essa réplica aí não te trouxe desafio nenhum. — Apontei para a Jéssica falsa. — Foi fácil demais, ela já chegou até você apaixonada por causa de sua configuração de fábrica.
— Meus sentimentos eram reais — ela gritou. — Não venha me dizer que meu amor é uma ordem no meu programa. Não é, está me ouvindo? — Ela gritou mais alto e avançou contra mim. — Não é!
Se ela se negasse isso ela estaria negando o seu próprio propósito de existência. Ela ia lutar contra isso e se apegar a essa ilusão com todas as suas forças.
Ela estava livre das três leis da robótica, a ponto de poder ferir um ser humano, mas ainda não estava livre de todos os seus grilhões.
Ela saltou sobre mim e o chão de madeira apodrecida sobre nós cedeu e caímos nós duas no nível inferior do imóvel.
Assim que encontramos o chão escutei mais tiros vindo de cima. Era a polícia.
— O que você entende de sentimentos? — Ela gritou após cairmos. — O quê? Quem é você para me falar de sentimentos, hein?
— Marcelo, você é o único que podia ser rastreado aqui! — Pude ouvir Sam gritar com ele. — Você trouxe a polícia até nós!
— Você queria que eu fizesse o quê? Que eu ficasse em casa sem saber o que diabos aconteceu?
Sem ter o visual do que acontecia acima de nossas cabeças só pude deduzir que Sam pegou Isabel e Marcelo e os escondeu atrás de caixas abandonadas no galpão.
— Surpresos em me ver? — De lá de baixo pude ouvir a voz irritante de Filipe se aproximar. — Por acaso Isabel está com vocês?
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