15
Nós dois nos embrenhamos pelas vielas do Expurgo sempre alertas caso novos caçadores surgissem em nosso encalço.
É uma experiência transformadora se aventurar por estes rincões esquecidos pela "civilização". As memórias da Jéssica não continham essa experiência, ela nunca sequer pisou no Expurgo em vida. Eu nunca soube na verdade quem ou o que era eu, mas de uma coisa eu tenho certeza: não importa o que eu era, o que me definia como eu, isso mudou no momento que pisei neste lugar.
Não vou conseguir mais pensar nas coisas apenas sob meu ponto de vista, vou precisar ver tudo sempre com o olhar daqui.
Aqui é a selva, a verdadeira selva onde prevalece não só a lei do mais forte, mas também funciona a seleção natural darwinista. Nem sempre o mais forte sobrevive neste lugar, mas sim quem melhor se adapta a essa miséria.
Caminhos estreitos, úmidos, fétidos. Muitas partes desse trajeto jamais receberam um resquício da luz do sol. Meu olfato neste corpo não é perfeito, mas dá para distinguir o cheiro de fezes misturado com bolor e madeira podre.
O limo se espalha e contamina tudo, como se fosse uma praga que envolvia tudo ao redor.
Este lugar é uma selva composta de barracos amontoados sobre outros barracos, esgoto a céu aberto e sofrimento. Muito sofrimento.
Quem são essas pessoas que aqui vivem e como elas sobrevivem na verdade? Quais as estratégias? Porque não importa para onde eu olhe, não consigo imaginar uma economia, uma forma de se garantir o sustento digno de alguém.
Dá para ver no olhar das pessoas a desesperança, a infelicidade, a morte a vagar por entre eles como um urubu ansioso pela carniça.
De onde vem os recursos que insistem em mantém a vida pulsante aqui?
Eu não faço ideia, mas com certeza Sam sabe. Ele está em casa. Ele é a fera dominante aqui, está em seu habitat. Parece conhecer o lugar com a palma da mão, não importa que estradinha de barro adentramos, ele sabe onde ela vai dar.
Cada nova passada que damos o lugar fica cada vez mais escuro e frio. E isso porque o Sol está a pino hoje, além desse emaranhado sem fim de parcas construções mal-acabadas.
Começamos a apertar o passo já que o embate entre nós e aqueles idiotas que tentaram nos atocaiar se tornou público e notório com uma brevidade de assustar, literalmente neste mundo super conectado qualquer notícia é fogo em palha.
Precisávamos nos afastar o máximo que podíamos, visto que mais de 200 caçadores começaram a se locomover para o local como abutres sobre a carniça.
— Estou te falando Sam, — Isabel falava exaltada, quase gritando, com Sam pelo comunicador. — são mais de 200 a caminho, posso monitorá-los todos daqui se você quiser.
— Negativo, você está exposta Isabel, se não está sendo monitorada em breve será, Filipe tem autonomia para revogar seu anonimato na rede. — Respondeu arfando Sam. — E convenhamos, ele vai fazer isso, afinal você pisou bem no calo dele.
— Já estou fora da delegacia, só o ameacei porque precisava de tempo para me afastar. — Ela respondeu, pelo áudio dava para saber que ela estava andando na rua. — Acho que eu estou pronta, o que eu fiz já não tem mais volta. — Ela gargalhou. — Eu ameacei um detetive, dá para acreditar?
— Você já tinha nocauteado ele antes, não tinha como voltar atrás, mas que foi uma loucura o você fez, — Sam segurou o próprio riso — ah isso foi sim.
— Mais um motivo para sumir do mapa. Ele não vai me deixar em paz se sempre souber onde estou.
— Você tem certeza? — Perguntou preocupado Sam.
— Sim, quero desaparecer, ser invisível como você. — Ela disse com um tom de confiança.
— Isabel, você não tem ideia do quanto sua vida vai mudar, será uma existência de privações. — Disse Sam como se tentasse fazê-la mudar de ideia.
— Não, você não entende, a sensação de que a qualquer momento posso perde minha privacidade, o meu privilégio como policial, é claustrofóbico. — Ela falava como se estivesse se justificando. — Me sinto como se estivesse enjaulada.
Pelo pouco que me explicou de sua vida foi para fugir dessa opressão que Sam se tornou o que é: um sem nome, sem rosto, sem forma. Um ninguém.
Ele está longe das garras do estado.
É claro que ele entendia perfeitamente o que Isabel sentia, mas dava para ver em suas expressões que ele se sentia culpado por ter tirado a segurança e a calmaria da vida dela.
— Isabel...
— Não, pare Sam — ela o interrompeu — você sabe que não tem mais volta. Não posso ficar à mercê dos desmandes e caprichos de Filipe. Preciso sumir das vistas dele.
— Isabel, eu sei, mas...
— Você sabe que é preciso fazer isso Sam. — Ela interrompeu de novo. — Se você se importa com meu bem-estar este é o momento.
Ele respirou fundo.
— A vida na clandestinidade não é fácil Isabel. — Ele falou em tom de último aviso.
— E quero ficar com você, eu abro mão da minha cidadania. — Dava para sentir a felicidade emanando da voz dela. — É muito difícil aceitar ser monitorada e controlada o tempo todo, tenho certeza que com você, seja lá qual for a situação, vai ser tudo mais fácil.
Sam respirou fundo e se recompôs.
— Certo. — Ele falou após suspirar. — Entenda que uma vez feito isso você passa a ser classificada como foragida também.
— Pode começar. — Ele disse determinada. — Como já disse antes, você acha mesmo que Filipe vai me deixar em paz?
— Não, não acho, mas de certa forma você tem provas contra ele, ele não poderá fazer nada contra você.
— Estarei segura por quanto tempo? Meu disfarce caiu, não tenho mais serventia para você dentro da polícia.
— Você não é minha ferramenta Isabel, nunca te tratei assim. — Ele meneou a cabeça para os lados como se negasse a ideia.
— Foi opção minha fazer tudo o que fiz. — Ela falou como se sorrisse, não havia arrependimento ou peso nas palavras. — Você está isento de responsabilidade comigo.
Sam deu de ombros. Ele não ia mais tentar convencê-la do contrário.
Então o detetive particular começou a mexer em seu terminal em realidade ampliada manipulando uma infinidade de janelas e códigos. Ele deixou sua visualização de interface compartilhada comigo.
— Me passe a chave de sua encriptação de perfil. — Ele pediu a Isabel.
Segundos depois Sam recebeu um arquivo enviado por ela.
— Execute o arquivo e passe a usar minha VPN. — Ele a instruiu.
— Instalei. — Ouvi a voz dela de volta.
— Ao executar será definitivo. — Sam alertou temeroso. — Tem certeza?
— Já executei. — Ela falou sem hesitação.
— Você é uma "ninguém" a partir de agora, assim como eu.
Pronto. Estava feito. O maior passo da vida dela e tudo foi resolvido com alguns comandos e apertar de botões.
Sam a fez ficar invisível aos olhos do governo, mas ela continuava online, Só que não podia mais ser rastreada. Em compensação dali para frente também teria que viver sem identidade, sem cidadania. Sem nada.
Ela era ninguém.
— Seja bem-vinda ao time. — Eu a felicitei.
— Obrigada. E você Sam, continuará com o plano? — Ela perguntou para Sam.
— Afirmativo. — Ele disse resoluto. — Me encontre no lugar combinado daqui a uma hora e meia.
— Te vejo lá. — Ela desligou.
Sam ficou em silêncio após o termino da conversa. Devia estar refletindo sobre o que tinha acabado de fazer.
Observei atentamente o rosto dele. Ele alternava entre felicidade e culpa. Estava se julgando.
— Eu entrei na vida dessa mulher e perverti seus caminhos, trouxe ela para um caminho sem volta. — Ele me falou, mas parecia que falava consigo mesmo.
— Ela te ama mesmo. — Afirmei sorrindo para ele. — Ela tomou as decisões por ela mesma. Isabel é uma adulta disposta a viver com as consequências de seus atos e isso é a verdadeira liberdade e não aquela vida numa gaiola virtual em que toda a civilização está presa.
Sam ficou me olhando, esperando que eu concordasse ou concedece minha benção às atitudes dele.
— Não se culpe. — Digo a ele ternamente.
— Eu fui egoísta, — ele se lamenta com um suspiro — eu a arrastei para este turbilhão de acontecimentos.
— O amor é a coisa mais egoísta que existe Sam. — Falo com seriedade para ele. — E não há nada de errado nisso.
Ele fez uma careta e me disse com expressões algo que entendi como: "não acredito que um software está me dando lições de moral sobre o amor".
Ou algo perto disso.
— Assim que acabarmos com isso vou cruzar a fronteira com ela. — Ele falou olhando para o horizonte. — Vamos encontrar um lugar bem afastado e mandar às favas tudo isso aqui.
Nossa passada entre as vielas já não estava acelerada. Paramos para tomar folego, quer dizer, para ele tomar folego. Eu não me cansava.
— Tenho certeza que será muito feliz Sam.
— Com certeza. — Ele sorriu de volta.
— Vamos? — O apressei, a maior interessada na brevidade da missão era eu.
— Está pronta? — Ele me intimou.
— Sim, me sinto culpada pelo que vamos fazer, me dói o coração, mas não tem outro jeito. — Falo como se estivesse murmurando.
— Fique tranquila. Ninguém vai se machucar, prometo.
Seguimos remando contra a lógica e nos dirigimos para a cidade, justamente onde ficaríamos mais expostos.
Ocultei parcialmente minha face com meu cachecol para ludibriar o sistema de reconhecimento de padrões e faces das câmeras de segurança. Por eu ter um rosto de androide genérico a chance de despertar suspeitas era menor, mas o problema era o rosto de Sam. Ele usava uma máscara cirúrgica para passar a ideia de que estava gripado.
Esta lugar é o oposto de onde saímos. Um emaranhado de arranha-céus imensos, que tocavam as nuvens. Estamos imersos no meio de tanta luz, tanta poluição visual e de tanta decadência que chegava a ser hipnótico. Uma pirotecnia de sentidos.
Realmente não há como não acabar hipnotizada com o movimento frenético de tudo que acontece à nossa volta.
Levei Sam até a porta do IML.
— Foi por aqui que eu o vi da última vez, me lembro vagamente que ele trabalha aqui nas imediações.
Ficamos observando na calçada o fluxo dos pedestres e o trânsito pesado dos veículos autônomos que levavam e traziam seus incontáveis passageiros.
— Interessante, ele não trabalha remoto de casa como a maioria das pessoas. — Constata Sam coçando o queixo.
— Não, até onde lembro ele gosta de estar de corpo presente no trabalho.
— Bom para ele. — Sam deu de ombros. — Foi mais ou menos nessa hora que você o viu?
— Foi.
Fui para o meio da calçada e fiquei observando atentamente os rostos das pessoas a transitar. A multidão que se acotovelava se misturava aos hologramas em um turbilhão de cores.
Ali parada naquele lugar numa primeira olhada não dava para saber o que era real e o que era virtual, mas ainda assim eu fiquei esperando ter a sorte de meus olhos se encontrarem com os dele.
Torcendo para ele passar por ali.
— Vamos aguardar. — Disse para Sam.
Eu tinha a necessidade simples de apenas estar a alguns metros de Marcelo. O simples contato visual me satisfaria.
Eu herdei os sentimentos de Jéssica, fico me recriminando, culpando, julgando por amar um homem que na prática nunca esteve sequer a um metro de mim.
Eu lutava contra isso a todo instante, mas ainda assim, contrariando toda a lógica eu continuava com o desejo de vê-lo.
Eu devo estar apaixonada por uma versão idealizada dele pela Jéssica, talvez por uma ideia, um conceito. Visto que ela, em vida, nunca deu a mínima para esse homem.
Esse era um dos motivos de querer vê-lo a todo custo. De repente ao me ver defrontada com a realidade, com o verdadeiro Marcelo, eu me veja livre dessa obsessão sem razão de ser.
Eu estava parada ali, como uma estátua, atrapalhando o fluxo dos pedestres. Sam me puxou para o canto da calçada.
— Tem certeza que você não sabe onde ele mora? — Sam perguntou impaciente.
— Não faço ideia, Jéssica nunca se deu ao trabalho de visitá-lo. — Dei de ombros.
— Isabel tentou levantar isso, mas seus dados estão protegidos. — Sam explicou olhando atentamente os carros que paravam no meio fio para recolher ou deixar passageiros.
— Por causa do que aconteceu com Jéssica?
— Com certeza, não queriam ninguém bisbilhotando ele atrás de pistas. Filipe praticamente virou a vida do rapaz do avesso, mas não achou nada.
— Por isso ele se viu obrigado a me "ressuscitar". Estava sem nenhuma pista.
— Exato.
Tive a sensação de uma corrente elétrica correr meu corpo dos pés à cabeça.
Eu tinha acabado de avistar Marcelo.
Pobre rapaz, teve a vida esmiuçada pela polícia, deve ter sido achocalhado pela mídia, sofrido muito com a morte de Jéssica, mas olha ele aí.
Tocando a vida, dando a volta por cima.
Caminhamos na direção dele.
— Sabe que no momento que perceberem que ele entrou em contato conosco a polícia vai vir com tudo para cima de gente, não sabe? Ele é monitorado 24 horas por dia, sete dias por semana.
— Sei, vamos seguir com o combinado. Não gostaria que fosse assim, mas é o único jeito.
Nos aproximamos com discrição, bem devagar, pelas costas dele. Ele conferia alguma coisa na sua interface em realidade ampliada e nem se deu conta de nossa aproximação. Ele estava lá compenetrado verificando suas mensagens e praticamente ignorando o mundo a sua volta.
Ficamos a poucos centímetros dele, ele ainda não nos havia notado.
Sam ficou bem junto atrás de Marcelo e encostou sua arma nas costas dele a ocultando com a camisa.
— Oi Marcelo, tudo bem? — Disse Sam ao pé do ouvido do distraído.
— Quem é você? — Disse o próprio apavorado.
— Não se mexa. — Sam falou pausadamente. — Disfarce, comporte-se como se nada estivesse acontecendo de anormal.
Marcelo disse sim ao balançar a cabeça para cima e para baixo.
— É o seu carro? — Perguntou Sam ao ver o veículo estacionar e abrir a porta.
— É sim. — Disse ele se tremendo todo.
— Entra então. — Sam ordenou. Ele falou de forma silenciosa, mas com bastante imposição.
— Não cara, por favor, não faz isso... — O pobre refém suplicava já prevendo o pior.
— Não se preocupe, — Sam disse fingindo dispor de uma calma que não tinha — vai ficar tudo bem. Entra. — Sam ordenou e o empurrou com o cano da arma.
— Cara, sou monitorado o tempo todo, em minutos vão descobrir o que você está fazendo. — Ele tentou nos alertar ainda apavorado.
— Relaxa, só preciso de alguns minutos. — Sam o apressou. — Vai!
Na verdade, tínhamos 15 minutos de lapso até os sistemas descobrirem o que estava acontecendo com Marcelo. O sistema de reconhecimento de padrões ia deduzir que algo saiu da rotina e assim que mudássemos o itinerário do carro ficaríamos sobre vigilância em tempo real.
Nós três entramos no carro. Eu sentei no banco do carona e os dois foram no banco de trás.
— Assuma o volante, coloque no manual antes que eles assumam o controle. — Sam me instruiu.
— Tudo bem. — Dizendo isso acessei o terminal do carro e coloquei os controles no manual.
Só que tinha um pequeno problema, me deparei sem reação.
Eu não sabia dirigir. E isso me tinha vindo em mente só agora.
— Jéssica não sabia dirigir. — Constatei estarrecida.
— Mas agora você sabe, você nasceu sabendo. — Ele bateu nas costas da minha poltrona. — Vai!
De fato, em segundos a informação brotou de algum lugar ermo do meu banco de dados. Eu não só aprendi a dirigir de um segundo para outro como poderia, facilmente, ser uma piloto profissional.
Aquele tipo de informação vinha original de fábrica instalada na memória de todo replicante.
— Espera, você disse Jéssica? — Perguntou Marcelo branco de espanto.
Sam viu que cometeu um erro ao dizer meu nome em alto e bom som. Entretanto isso é um pormenor, afinal quantas Jéssicas poderiam haver espalhadas pelo mundo?
— É você modelo J.0.8 Beta? — Ele insistiu. — O que você está fazendo em um corpo de uma Waifu 1000?
— Como? — Quem ficou assustada dessa vez fui eu. Fui pega de surpresa e então perguntei afoita. — O que disse?
Marcelo conhecia um androide replicante que ainda por cima tinha o mesmo nome que eu?
— Androide, você não é a J.0.8 Beta? — Ele insistiu na pergunta mais uma vez.
— Desculpe, não sei quem ou o que é essa tal J. Beta. — Respondi contrariada.
Quem diabos era J.0.8 Beta? Um sentimento inexplicável se apossou de mim, uma emoção que eu nunca senti antes.
Em milésimos de segundo identifiquei aquilo como ciúme. Eu estava tendo uma crise infundada de ciúmes.
— Quem é Beta? — Perguntei nervosa.
— Ninguém importante. — Respondeu com medo Marcelo.
— Anda, responde para ela. — Sam apontou a arma.
— Calma, eu falo, eu falo. — Ele ergueu as mãos como que para se proteger, um movimento automático de preservação.
— Fale. — Sam ordenou.
Ele hesitou, ficou estudando o que ia dizer antes de abrir a boca.
— Ela era um modelo de androide ilegal. Eu mandei fazer uma cópia da minha falecida noiva.
— Como é que é? — Gritei do banco da frente me sentindo traída.
— Silêncio. — Sam me criticou. — Continue Marcelo. O que fez com esse androide?
O que estava acontecendo? Em que momento ele chegou a comprar essa androide, o que o levou a compra-la? Porque ele resolveu me trocar?
Procuro me acalmar. Ele não me trocou, ele trocou a Jéssica. Ele não me rejeitou. Rejeitou a ela.
Não fui eu que fui passada para trás.
Mas a sensação, inexplicável, era que eu me sentia a traída.
Eu estava me precipitando, preciso ouvir a história primeiro antes de dar vazão a essas emoções.
— Ah, eu descartei. Apesar da aparência ela não me lembrava em nada a Jéssica. Era só uma carcaça. Devolvi para o Gepeto que a fez e ele a destruiu. — Ele falou respirando pesadamente. — Só isso.
— Você a viu ser destruída? — Perguntei tomada de raiva.
— Claro, eu não sou agalmatofilo, não ia ficar com ela. Eu a vi sendo incinerada, por isso estranhei quando você citou o nome da Jéssica. Achei que fosse a minha androide. — Ele ficou nervoso. — De que Jéssica você está falando?
Suspirei decepcionada. Definitivamente eu me senti traída. Apesar de que ele nunca me traiu, ele nunca teve nada comigo.
Na verdade, quem ele traiu foi a Jéssica.
Não eu.
Preciso separar as coisas.
Mas mesma assim eu me senti o golpe. Tomei as dores da minha "sócia".
— Explique, você tinha mesmo uma androide de conforto? — Perguntei irritada.
— Tinha sim, — desta vez foi Sam que respondeu — o nome dele aparece como cliente no dossiê que foi divulgado.
— Marcelo? — Eu não conseguia acreditar que a pessoa que eu praticamente colocava em um pedestal era apenas um santo do pau oco. — Seu nome estava no Dossiê?
— Bem se vê que você nunca leu o dossiê. — Sam chamou minha atenção. — Jéssica nem se deu ao trabalho de conferir o nome das pessoas de classes mais baixas quem aparecia naquela lista. Ela simplesmente postou para acertar os figurões, mas entre as muitas pessoas atingidas resvalou nesse rapaz aqui também. — Sam apontou para Marcelo que se tremia de medo.
— De que Jéssica vocês estão falando? Da minha Jéssica? Que loucura é essa? — Ele perguntou aos berros. — E por que vocês me sequestraram?
— Na verdade nós o raptamos, é diferente. — O corrigi. — E fique calado.
— Não. — Ele gritou de novo, as veias saltaram de sua testa e sua face ficou rubra, o suor escorria a ponto de encharcar a gola da camisa dele. — Quero saber o que está havendo.
— Se acalma, estamos do seu lado. — Sam falou em tom apaziguador. — Queremos descobrir o que houve com a Jéssica.
— É, mas já me interrogaram um milhão de vezes e não descobriram nada, eu não tive nada a ver com a morte dela. — Marcelo falou suando em bicas. — E por que vocês querem saber o que houve com ela? O que ganham com isso?
— Você foi tido como suspeito por um bom tempo meu caro. — Sam falou com um tom sádico, como se estivesse se divertindo.
— Eu? — Ele perguntou indignado.
— Sim, você. — Sam parou de apontar a arma para ele. — Jéssica lhe maltratava e fazia pouco caso de você. Você Marcelo se via obrigado a seguir com o casamento com ela porque foi um acordo de castas. — Sam forçou um sorriso por de trás da máscara cirúrgica. — Eu sei que você se esforçou para dar certo, havia alguma coisa nela que lhe atraia. — Sam levantou uma sobrancelha e o encarrou. — O que era bem estranho visto que ela não dava a mínima para você.
Sam fez o levantamento perfeito da questão. Havia motivos para ele ser o suspeito. Relacionamento conturbado, se sentia rejeitado, comprou uma androide ilegal para deixar no lugar da original...
Só que o casamento era vantajoso para ele também como degrau social. Matá-la antes de consumá-lo era uma tolice. Esse ponto enfraqueceu a candidatura dele como suspeito número um.
— Eu já expliquei para Filipe e vou falar para você de novo: Eu insisti no meu relacionamento com Jéssica porque tive o orgulho ferido. Eu tinha certeza que poderia conquista-la, de fazer ela se apaixonar por mim. — Marcelo tentou se justificar com a voz embargada. — Eu me sentia um derrotado com a indiferença dela, mas aí depois de dar tanto soco em ponta de faca eu entendi que o problema não era eu. Ela é que era o problema.
Mas poderia ter sido crime passional. Ele poderia dar fim na original para substitui-la com o androide de modo que ele nunca saiu da lista de possíveis responsáveis da morte dela.
— De certa forma você também sofria de superego. — Sam sentenciou.
— Como é? O que está dizendo? — Marcelo se ofendeu. — Eu tinha motivos para continuar tentando, já que na nossa rara intimidade o relacionamento valia a pena. Eu sentia que os raros momentos em que ela me dava atenção compensava o vasto tempo em que eu ficava de escanteio.
Me pergunto por quanto tempo, ou desde quando, Marcelo traiu a Jéssica com esse androide. Ele sempre foi submisso aos demandes dela.
Jéssica desconfiou de alguma coisa, posso sentir isso em suas memórias. Foi no dia em que ela se levantou e foi embora da academia por conta da discussão sobre o armário.
Diferente do que ela esperava Marcelo não se levantou e correu atrás dela para corrigir as coisas.
Ele simplesmente foi indiferente a birra dela. Ele a ignorou.
— Eu só disse que você foi suspeito por muito tempo. — Sam pareceu perder a paciência. — Talvez eu volte a achar, ainda mais agora que sei que você teve um androide réplica da Jéssica.
— Espere, não pense que eu ia substitui-la com um replicante, — Marcelo tentou se defender — nunca me passou isso pela cabeça.
— Eu não disse nada disso, essa hipótese quem disse agora foi você. — Sam suspirou. — Mas até que faz sentido, afinal de certa forma ela te prejudicou também com aquele dossiê.
— Não, não ia fazer isso! — Marcelo tentou se defender ainda mais assustado, ele ergue as mãos na altura do peito como que tentando se proteger. — Eu apenas queria ter Jéssica para mim por mais tempo, mas a experiência foi decepcionante, a inteligência artificial da minha androide se apaixonava por mim com muita facilidade, não houve desafio. Por isso a descartei. — Ele baixou as mãos. — Só isso.
Me veio na hora a lembrança daquele comercial das androides para fins sexuais que assisti. "Elas já saem de fábrica apaixonadas", a apresentado enfatizou no vídeo.
— Só "isso"? — Perguntei ainda mais irritada. Eu tinha uma imagem idealizada desse cara e ela ruiu com algumas poucas palavras.
— Igualzinho o Sr. Reed. — Sam lamentou. — Um novo mal para esses novos tempos.
— A polícia já sabe que estamos com ele. — Sam me alertou. Acelere.
Eu estava tomada de ódio por esse homem que até a poucos minutos venerava. Eu pisei no acelerador de modo que refletia o meu estado de espírito. Se é que eu tinha um.
— O que querem de mim, para onde estão me levando? — Ele perguntou olhando com medo alternadamente para mim e para Sam.
— Me responda, seja sincero. — Sam o olhou com ar intimidador. — Você sabe onde Jéssica guardou uma mídia física com arquivos importantes?
— Mídia? Que mídia? — Ele perguntou surpreso.
— Desses tipos raros de pen-drives ou Hard Disks, desses que se usava muito antes de estar tudo salvo na nuvem. — Sam tocou na testa dele com o cano da arma. — Lembra?
— Não, mas não é a primeira vez que me perguntam isso.
— Além da casa da Jéssica, onde ela tinha costume de guardar as coisas dela?
— Eu já expliquei antes. Ela tinha um armário na academia. — Marcelo encolheu os ombros. — Aliás a academia era o único lugar em que nós nos encontrávamos fora o cubículo dela. Ela raramente saia de casa, usava o mundo virtual do Metaverso para tudo.
— Revistaram o armário dela e não acharam nada. — Ele completou.
— Espere. — Interrompi. — Jéssica fez menção de usar seu armário também, não foi?
— Foi, mas não deixava, afinal eu dividia o armário com um amigo. Mas ela era teimosa, enfiava as coisas na minha mochila sem permissão.
— O nome dele era Edgar? — Perguntei.
— A polícia já verificou isso pelas memórias de Jéssica. — Sam me alertou. — Nunca houve um Edgar registrado naquela academia.
— Explique isso. — Estava com raiva dele pelo androide ilegal. Fui brusca na pergunta.
— Eu só o conhecia por seu nickname no mundo virtual, ele usava o apelido de Edgar Alan Poe. Nós nunca nos vimos pessoalmente, apenas combinamos dividir o aluguel do armário. — Ele tomou fôlego para falar. — Sempre usamos os armários em horários diferentes.
— Mas depois de um tempo você alugou um armário só para você de volta, não é? — Sam o pressionou. — Foi esse novo armário que foi revistado, não é?
— Foi, mas eu o tinha alugado para Jéssica, ela queria dois. Como não estava dando certo a minha parceria com Edgar eu devolvi meu espaço no armário e passei a usar o novo.
— Não deu certo por qual razão?
Sam entendeu que ali havia alguma coisa que não foi explicada, que passou despercebido.
— Edgar deve ter descoberto que Jéssica colocava coisas na minha mochila e queria mais dinheiro, ele não disse que era por causa disso, mas eu sei que era e então não concordei. Acho que bravo com a situação ele tomou para si uma bolsa minha a enchendo com coisas dele.
— E você não deu queixa?
Sam alternava seu olhar entre mim pelo espelho retrovisor e em Marcelo que ainda estava tenso.
— Para quê? — Marcelo deu de ombros. — Era só uma mochila velha e rasgada com roupa suja. Não ia fazer escândalo por isso, nunca fui lá buscar depois que eu peguei minhas coisas e as levei para o outro armário e também nunca toquei no assunto.
Perfeito, Sam achou um novo caminho para a investigação e eu percebi na hora o que não se sabia porque nunca foi perguntado.
— Isso explica porque passou despercebido ao analisarem as memórias da Jéssica e as suas. — Confabulei em voz alta. — A polícia achou que você tinha pegado tudo que era seu do armário velho e como não houve queixa sobre a "apreensão" da mochila outras linhas de investigação foram seguidas e essa descartada.
— O fato de não citarem o real motivo do fim da parceria do armário também ajudou a passar batido a questão da bolsa quando os programas de analise vasculharam suas memórias. — Sam falou como se vislumbrasse a resposta. — Humanos não ficam revisitando minuto a minuto as memórias de suspeitos, seria impossível, por isso automatizam tudo. Esse pequeno detalhe passou batido pela inteligência artificial fraca do programa de monitoramento.
— A polícia com certeza descobriu quem era o tal Edgar e deve ter vasculhado as memórias dele também. — Concluí. — Se deixaram ele de lado é porque ele em nenhum momento achou a mídia.
— Estranho. — Sam refletiu e depois se virou para Marcelo. — Marcelo, a polícia nunca te fez perguntas sobre Edgar?
— Não, devem ter deduzido que ele não tinha posse desses tais arquivos depois que peguei minhas coisas. Isso é, se realmente esses arquivos estiveram naquela mochila velha. Coisa que nunca me passou pela cabeça.
— Tudo ajudou para a mochila passar despercebida. Há quanto tempo você tinha a mochila?
— Tinha um tempo, meses talvez, na verdade eu a achei no armário largada, provavelmente abandonada pelo último usuário inquilino, afinal ela estava bem surrada. Durante o tempo que a usei ela nunca saiu do armário. Por isso nunca fiz questão de posse e nunca tratei ela como minha unicamente. As vezes Edgar colocava coisas dele lá também.
— Os programas não devem ter investigado suas memórias de semanas antes de Jéssica ter posse desses arquivos. — Sam falou como se tivesse certeza. — Então os monitores não tinham como saber que você achou a mochila. Como você não a reclamou deram ela como propriedade de Edgar.
— Nunca revistaram o armário de Edgar? — Perguntei.
— Acho que não, qual seria a justificativa para revista-lo já que nas memórias dele não aparecia nada? — Sam perguntou já sabendo a própria resposta. — Isso talvez causasse alarde e deixasse escapar para terceiros de que eles estavam atrás de alguma coisa.
Sam e eu percebemos juntos a mesma coisa e trocamos um rápido olhar de confirmação.
— Então vamos ver se a tal mochila ainda está lá. — Opinei.
— Toca para a academia. — Sam me ordenou. — Acelera!
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