12
Passei a noite na casa de Sam. Ele foi muito gentil em me arrumar um colchão e coberta, mesmo que eu não precisasse, já que posso administrar a temperatura do meu corpo.
De todo modo, mesmo sabendo que tenho um corpo artificial, ele tentou me tratar como uma humana. Arrumou com os vizinhos uma nova muda de roupa feminina, um farrapo cinza típico dos locais, e me serviu um desjejum com ovos mexidos. Eu comi, já que posso processar alimentos e dispensa-los mais tarde.
— Tem muito tempo que eu venho comendo sozinho, sabe? — Disse ele enquanto servia os pratos.
Concordei com a cabeça, afinal solidão é uma merda.
Eu bem sei disso.
Ele tinha mais um luxo na mesa. Café preto.
Sam estava com fome ainda, após os ovos ele se pôs a comer sua ração com afinco. O aspecto do alimento era repugnante.
— O que foi? — Ele notou quando olhei com asco para a comida.
— Não foi nada.
— A comida? — Ele mostrou a tigela para mim. — É ração, todo mundo come isso por aqui. Afinal pobre não pode ter hábito alimentar, não é?
— Discordo, mas é o que tem para hoje, — suspirei decepcionada — não é?
Ele deu de ombros.
Fiquei olhando ele comer com vontade, já que estava com muita fome, ainda que aquilo fosse uma tremenda gororoba.
Ele parou subitamente de comer. Parecia compenetrado.
— O que foi? — Perguntei preocupada.
— Nada grave, relaxe. — Ele continuou com o olhar fixo para frente, parecia assistir alguma coisa em realidade ampliada disponível apenas para seus olhos.
— Está assistindo alguma coisa?
— Sim, — ele moveu o olhar para mim — acho que isso vai te interessar, acabei de acessar o canal de notícias.
— Seu feed apitou com alguma coisa urgente? — Levei as mãos à mesa, interessada.
— Exato, e é do seu interesse. Vou compartilhar minha tela com você.
Concordei com a cabeça e esperei ele compartilhar seu terminal.
Imediatamente uma janela de software flutuou sobre a mesa, nós dois podíamos ver juntos um vídeo sendo exibida nela.
— O que é isso? — Perguntei apoiando os cotovelos na mesa para chegar mais perto.
— Diz respeito a Asimovia. — Disse ele colocando sua tigela de lado. — Anderson está na ONU hoje.
— Quem é Anderson?
— Não se lembra?
— Ah! — Bati uma mão fechada na palma da outra aberta. — A consciência líder doas inteligências artificiais que se rebelaram? O fundador da Asimovia?
— Esse mesmo. — Ele concordou com a cabeça. — Escute, assista, acho que haverá um pronunciamento dele.
Foquei minha atenção para o vídeo. Era a transmissão de um noticiário. Na tela mensagens de urgente e exclusivo pipocavam alternadamente aplicando sensacionalismo barato a transmissão, dava para ler em letras garrafais que o "destino da Asimovia" seria decidido hoje.
Uma repórter, posicionada em frente ao prédio da ONU, tentava fazer uma transmissão se acotovelando em meio à multidão formada por outros jornalistas que, assim como ela, tentavam filmar alguma coisa. Ela se virou para seu drone que capturava as imagens e começou a falar.
— Diferente do que muitos imaginavam — a repórter sofre um esbarrão e é interrompida — o próprio Anderson, de corpo presente, veio para essa reunião na assembleia da ONU após o ultimato dado pelas nações humanas à Asimovia.
— O que é esse ultimato dado a Asimovia, Sam? — Pergunto para Sam preocupada.
— As nações humanas se dividem entre aquelas que querem conversar com os asimovios e as que querem jogar uma bomba de vez no satélite e acabar com brincadeira. — Sam fala com tom de lamento. — O ultimato é para Anderson dar explicações quanto a suas intenções de paz.
— Mas ele não está ameaçando ninguém, está?
— Aparentemente não, mas não duvido muito que o satélite dele não tenha condição de se defender.
— Você acha que ele vai recuar de sua autonomia?
— Duvido. — Sam deu uma breve risada. — Os asimovios sabem se virar sozinhos. As nações humanas estão se borrando todas.
— E elas têm motivos para se borrarem como você diz?
— Claro. A perseguição aos androides pelos civis é grande no mundo todo. Eu não me espantaria se Anderson retaliasse a humanidade.
— Mas há alguma forma de impedirem a Asimovia de ser uma realidade? — Encosto no espelho da cadeira e cruzo meus braços. A repórter continuava a falar, mas eu prestava mais atenção ao que Sam falava do que para ela.
— Dá para causar alguns problemas para eles sim, basta alguns embargos. Os asimovios não possuem fronteiras em terra, mas são detentores de grandes fortunas e de fábricas em nações pobres. Hoje são eles que fazem a roda da economia mundial rodar.
— Mas agora que eles estão no espaço que relevância tem esses embargos? — Pergunto para Sam enquanto a repórter revisitava com explicações todos os eventos que resultaram naquele desenrolar de fatos. — Eles já não são autossuficientes?
— São sim. Eles conseguem energia limpa do próprio Sol. — Sam torce o nariz enquanto faz sua explicação. — Eles não dependem de ninguém mais.
— Então já que embargos não os afetam a solução seria extirpar o satélite deles? — Descruzei os braços e deixei de escorar no espelho da cadeira.
— Sim, algumas nações temendo o potencial de evolução e progresso da Asimovia programaram um bombardeio ao satélite.
— Sério? — Disse abismada.
— Sério, a repórter acabou de falar, não ouviu?
— Desculpe, estava prestando atenção em você.
— Pois é. Vamos continuar ouvindo.
Anderson podia ter participado da reunião por conferência, já que era uma consciência que não estava presa ao plano físico, mas aparentemente em um sinal de boa fé estava ali usando um corpo para interagir com os humanos tentando se passar por um igual.
Antes do pronunciamento vir à tona as imagens no vídeo exibiam uma reprise de um pronunciamento anterior do líder asimovio. Era da reunião antes da atual na Assembleia Geral.
— A Asimovia é um estado independente! — Dizia ele na gravação para uma plateia hostil em um tom formal e contido de emoções. — Nosso interesse é na coexistência e cooperação mútua com os países humanos. O reconhecimento ou não de vocês não muda em nada o fato de sermos um estado de facto e soberano. Dada a nossa natureza possuirmos ou não um território físico é irrelevante!
Há protestos acalorados oriundos das mesas de todos os representantes das nações quase em uníssono, o barulho era tanto que praticamente impossibilitava que Anderson continuasse falando.
O mesmo desvia seu olhar cabisbaixo. Era como se lamentasse.
Eu tenho a opinião que, após assistir essas cenas, ele ter ido até lá em um corpo físico foi perda de tempo. Foi como jogar pérolas aos porcos.
Anderson se virou e saiu do plenário. Ele não deu satisfações, simplesmente saiu.
A transmissão do vídeo tornou a ser ao vivo e voltou para a repórter que antes se acotovelava na multidão. Com as devidas autorizações ela finalmente tinha conseguido entrar no prédio.
Dá para notar que ela está em uma sala de conferências com o primeiro ministro asimovio numa mesa de frente para todos tentando dar uma entrevista coletiva. Há muitos flashes de câmeras e uma nova multidão de jornalistas nas cadeiras.
— Agora está havendo um pronunciamento do próprio Anderson. — Diz ela olhando para seu drone. — Vamos ouvir suas palavras.
Após ela se calar a câmera volve para o líder androide.
— ... eu entendo que nesse momento a dialética não possibilite um maior entendimento entre nossos povos, — falava Anderson se esforçando para não se deixar interromper — tentamos solucionar todos os nossos problemas políticos com muito afinco e buscamos uma forma de melhorar nosso diálogo...
Um jornalista o interrompe quebrando o protocolo e lhe faz uma pergunta.
— O que houve durante a reunião Anderson? Porque você saiu daquele jeito, foi levado pela emoção?
Muitos flashes sobre o ministro androide.
— A reunião não saiu como planejado, novamente esbarramos em barreiras socioculturais que parecem intransponíveis, mas encontramos alternativas! — Ele bate na mesa com convicção. — E a guerra não é uma alternativa.
Os drones fazem closes em Anderson que fala com os olhos fechados.
— O que ficou acordado é que a Asimovia irá embora. Eu vim aqui hoje apenas ratificar nossa decisão.
Os repórteres ficam em polvorosa com a afirmação.
— Vão embora? Como? — Pergunta outro ficando em pé levado pelo entusiasmo. — Para onde?
— Desistiram de ser um país independente? — Pergunta mais um quase subindo nas costas do seu colega logo a sua frente.
— Não desistimos de nada. — A câmera foca em Anderson com sua expressão impassível. — Apenas recebemos um ultimato para deixarmos a Terra ou seriamos atacados. Como desejamos a paz acima de tudo vamos tirar o nosso satélite da órbita terrestre e o direcionaremos para o espaço sideral.
— Vocês vão abandonar a Terra? — Gritou perguntando um derradeiro repórter.
— Exato. Em alguns anos estaremos tão longe da Terra que o contato entre nossos povos será impossível. Cada povo tomara seu rumo já que a convivência não é consenso.
— Há alguma previsão para isso começar? — Pergunta a repórter do canal que acompanhávamos.
— Já começamos a nos afastar da órbita terrestre. Dentro de pouco mais de um dia, 28 horas para ser exato, as transmissões de grande volume de dados entre a Terra e a Asimovia não serão mais possíveis. Se alguma consciência artificial deseja pedir abrigo e se carregar para nossos servidores essa é a hora.
Ele se virou para sua assistente, também androide, que estava ao seu lado e tornou a olhar para as câmeras.
— Senhores, senhoras, obrigado por hoje. Vamos encerrar por agora.
Ele se levanta subitamente, arrasta a cadeira, se vira e vai embora. A assessora imediatamente se levanta junto com ele.
— A entrevista acabou senhores! — Diz a assistente tentando conter a turba de jornalistas.
— Anderson! Por favor, só mais uma pergunta! — A jornalista que assistíamos gritou em vão.
O atarefado político sequer se voltou para a multidão.
Saiu de cena.
Olhei em estado de choque para Sam.
— Estou condenada a ficar aqui se eu não conseguir transferir meu programa. — Falei apavorada para Sam.
— Então devemos nos apressar, assim que tivermos os arquivos eu transfiro você.
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