11

Dentro da delegacia Isabel e eu andávamos a passos largos quase correndo e suando frio de tanta tensão. Me peguei pedindo aos céus para que a gente não fosse abordada por alguém no caminho.

Dizem que eu não tenho uma alma por ser um simples programa de computador... Bom, parece que ter ou não fé é uma coisa totalmente alheia a esse pormenor.

— Continue andando reto, olhe para frente e vai dar tudo certo. — Ela tentava me tranquilizar.

Mas não estava adiantando muito, eu me sentia como se fosse um elefante branco no meio da sala. Não tinha como alguém não me notar.

Contudo, muito me admira que nosso passo acelerado não tenha atraído olhares de ninguém. Também, pudera, tudo estava um caos. O que eram duas descompensadas quase correndo pelos corredores em meio aquele pandemônio? O que mais dava para ver era gente correndo para lá e para cá.

Ninguém deu a mínima para nós.

Finalmente ganhamos a rua e não pude me caber de contentamento, eu já ia pular, saltitar e dar gritinhos de "uhuuu" até tomar um tremendo balde de água fria.

Quando nós duas já estávamos nos preparando para comemorar e correr para longe dali tivemos que parar bruscamente.

— Ah, merda... — Eu falei decepcionada.

Petrificada de surpresa constatei que ainda não estávamos seguras.

Olhei para frente custando a acreditar no que via. Eu nunca tinha visto tantos robôs lixeiros concentrados em um mesmo lugar, era óbvio que alguma coisa estava muito errada.

— O que está havendo? — A policial ficou olhando tão abismada quanto eu.

— De onde vieram todos eles? — Minha surpresa só não foi maior que meu medo.

Eram tantos que pareciam brotar dos bueiros e estavam vindo de todas as direções possíveis fechando a avenida de frente ao prédio policial. A marcha deles era lenta, mas sincronizada parecendo pelotões em um desfile.

As unidades lixeiro tinham formas humanoides mais bem definidas que as unidades estivadoras que nos atacaram anteriormente. Seus braços eram muito longos e podiam se esticar e agarrar diversos objetos ao seu redor ao mesmo tempo agilizando seu trabalho de coleta de lixo.

Ser agarrada por aquilo significaria o fim, pois o poder destes membros podia exercer pressão de toneladas por cm² e esmagar qualquer coisa.

Não seria nada agradável levar um abraço de urso de um deles.

Olhei em volta com atenção tentando vislumbrar uma saída, mas minha convicção era de que seguir reto agora já não era mais possível.

— Parecem que eles foram dominados também. — Falei virando o pescoço para Isabel. — Estão rumando para a delegacia.

Virei o pescoço mais uma vez, só que para trás após falar com ela e notei um grande alvoroço. Imediatamente vários outros policiais saíram do prédio ao notarem os avanços dos robôs.

A delegacia parecia o lugar mais seguro, no entanto era justamente de lá que queríamos distância. Estávamos em um impasse.

— Acho que não podemos voltar. — Afirmei preocupada.

Ao notarem a hostilidade dos policiais os robôs exibiram seus braços esticados e prontos para distribuir poderosos abraços de urso nos mesmos.

— E tampouco avançar. — Constatou a policial ao meu lado em estado de alerta.

Um homem de meia idade que provavelmente deveria ser o delegado começou a gritar com um megafone em mãos e apontando para nós duas.

— Soldado Garcia, bom trabalho ao recuperar a androide fugitiva, — disse ele — agora traga-a de volta para dentro do prédio, imediatamente.

Isabel olhou para mim com a expressão de dúvida.

— Não me leve de volta — falei quase chorando — vão me apagar.

— Não, não vão. — Ela respirou fundo. — Rápido, me dê um soco e corra para a esquerda.

Olhei para a esquerda e havia uma viela que não tinha sido tomada pelos robôs lixeiros. Eu não notei aquela abertura na minha primeira análise da situação.

Os androides chegavam cada vez mais perto e em maior número.

— Anda, faça logo! — Gritou comigo Isabel.

— Não, eu posso acabar te machucando. — Falei quase implorando para ela mudar de ideia.

— Anda logo, — ela falou em um tom para me tranquilizar, ainda que tudo em volta fosse um pardieiro — se você me bater e fugir não posso ser acusada de ter roubado um androide.

— Não posso fazer isso! — Balancei a cabeça em negativa. — Ainda estou presa as leis da robótica.

— Rápido! — Isabel me segurou firme pelo braço. — Você vai apenas fingir, me acerte de mentira, como se fosse um teatro. — Ela me acelerou. — Anda.

Enquanto discutíamos o delegado ainda de posse do megafone falava se dirigindo aos androides que avançavam.

— Afastem-se, se vocês se aproximarem iremos inutilizar a todos. — Ele gritou. — Usaremos munição letal se necessário.

— Você pode ser presa por minha causa. — Falei aflita para Isabel enquanto os olhares dos policiais estavam voltados a turba que se aproximava.

— O máximo de encrenca que terei será apenas por ter batido em Filipe. — Ela falou relaxada. — Seja lá qual for a punição que vou ganhar eu acho que terá valido a pena pela oportunidade de poder acertar aquele filho da mãe.

Os primeiros robôs chegaram até a calçada da delegacia. Estavam a poucos metros de nós e era obvio que estavam se dirigindo em minha direção.

O primeiro robô que colocou o pé na guia da calçada foi alvejado imediatamente, a pobre máquina se diferenciava das demais por estar todo pichado e com várias partes tomadas de ferrugem.

Os policiais na delegacia improvisaram uma barricada temendo uma invasão, de suas coberturas eles disparam à vontade contra a horda genérica de robôs idênticos.

À primeira vista todos eram modelos iguaizinhos e se diferenciavam por uma ou outra intervenção de terceiros, vandalismo ou por ações do tempo. Alguns estavam pintados de azul, outros com a lataria removida e a maioria desgastada e se consumindo em ferrugem.

Os mesmos estavam caminhando cautelosamente em nossa direção, mas assim que os primeiros disparos foram dados eles resolveram vir com tudo como se fosse uma manada desgovernada.

Imediatamente entrei no jogo de Isabel e fingir pegar o braço dela e torce-lo.

— Está indo bem, continue. — Ela piscou para mim.

Fingi dar um gancho na cara dela e ela fez a sua parte na encenação caindo de costas na calçada e se contorcendo fingindo dor. Igualzinho um jogador de futebol tentando cavar um pênalti na grande área.

— Detenham aquela androide. — Escutei o delegado gritar com o megafone.

Os policiais passaram a atirar em mim também.

— Destruam-na, antes que aqueles robôs a peguem. — Gritou ele mais uma vez com o aparelho em mãos.

Corri, como nunca havia corrido antes na vida. Quero dizer, nesta vida e na da Jéssica.

Saltei como se fosse um felino ganhando a viela e pulado os muros e escalando paredes. Este corpo realmente podia fazer coisas fantásticas.

Fui alvejada duas vezes, mas não a ponto de ser imobilizada. Continuei correndo.

A manada de robôs lixeiros desviou da delegacia e juntos partiram correndo atrás de mim totalmente desesperados e desorganizados como se fossem zumbis, contrastando com a organização da formação anterior ao cercarem a delegacia.

Ao fazerem isso eles se afunilaram na viela em minha direção e se pisotearam uns aos outros.

Se havia alguma dúvida de que eu era o alvo desde o começo esta dúvida findou agora.

Conforme tentaram avançar em tão estreita passagem eles se tornaram alvos fáceis para os policiais. Algumas granadas EMP foram arremessadas inutilizando mais da metade deles.

Diferente da categoria estivador — que tinha nos perseguidos na avenida antes — robôs da classe lixeiro eram muito lentos e pesados.

Os modelos mais novos conseguiram correr por sobre os obsoletos pisoteados e continuaram a me perseguir.

Alguns em especial pintados de amarelo, provavelmente prestadores de serviço de uma mesma empresa, até que mantiveram o ritmo por algum tempo.

Um deles tinha a lataria pichada com doces mensagens pintadas em preto como "morte aos robôs", por exemplo chegou a saltar junto comigo e até rasgou um pedaço da minha camisa, mas ele não conseguiu acompanhar meu ritmo o tempo todo.

Eles pareciam trabalhar em sincronia, visto que fui cercada por outro deles. Este por sua vez foi vandalizado com uma peruca presa a cabeça, um sutiã encardido no peito metálico e muito batom esfregado na sua face, se é que podemos chamar isso de face.

O acertei na cabeça fazendo sua peruca voar longe, mas nisso acabei rasgando boa parte da minha pele orgânica da minha mão no atrito com o metal.

Mas consegui passar por ele. Isso que importa.

A medida que escalava essas montanhas de concreto e me embrenhava nessa selva de pedra eu chamava olhares curiosos para mim. Minutos depois de extensa corrida decidi parar sobre o telhado de um pequeno sobrado para ponderar minha situação.

— E agora? O que eu faço? — Ofeguei. — O que eu faço?

Meu pânico era tombar a qualquer instante, pois bastava Filipe, ou qualquer outro policial com acesso a meu código fonte, executar o comando de apagar remotamente e eu estaria morta em questão de milésimos de segundo, de tal maneira que nem me daria conta.

Cai de joelhos no chão, não havia como lutar contra este destino. Eu estava praticamente entregando os pontos.

Presa a meu dilema nem notei que estava cercada por uma infinidade de drones.

— Mas que inferno é esse? — Falei assustada.

Ao mesmo tempo todas aquelas coisas voadoras apontaram suas câmeras para mim. Se moviam como um enxame de abelhas. Eu estava cercada.

— Afastem-se de mim, todos vocês. — Tentei repeli-los com movimentos bruscos balançando meus braços para todos os lados da mesma forma que faria para espantar mosquitos chatos de perto da mim.

Foi aí que vi um vulto saltando entre os telhados, refazendo o meu caminho. Aquilo estava vindo em minha direção.

Se eu tivesse um coração pulsante ele teria saltado da minha boca. Nunca senti um medo tão avassalador durante minha existência.

Era o mesmo indivíduo que havia matado Jéssica. As mesmas roupas, a mesma máscara.

E ele saltava como um felino, o que corroborava que não era humano, ou pelo menos não totalmente. Ele avançava entre os telhados e paredes com a mesma facilidade de um praticante de Parkour.

Congelei ficando alguns segundos tentando aceitar aquilo e assim como aconteceu com Jéssica no momento de seu óbito eu também hesitei.

Quando me decidi por saltar daquele telhado aquela estranha criatura se interpôs entre mim e a fuga.

— Quem é você? — Gritei. — O que quer de mim?

Não dava para saber, não havia como vislumbrar a face do meu carrasco que se ocultava por detrás daquela máscara.

— Você já não matou Jéssica? — Gritei mais uma vez. — Porque quer a mim também?

Não houve resposta. Ele se aproximou mais.

— Afaste-se! — Falei tomada de pânico e tentando me dirigir para a beirada do telhado, mas ele se colocou na minha frente.

Não vi armas ou mesmo faca. A intenção dele não era me destruir.

Era me raptar.

Quando ele ficou prestes a me tocar ouvi um disparo.

Ele foi alvejado e com a força do disparo caiu do telhado.

Olhei para a rua e vi o corpo de meu inimigo estatelado no chão, olho mais para o lado e vejo um homem em cima de uma moto com um rifle na mão. Foi ele que me ajudou.

Ele fez sinal para que eu saltasse e fosse até ele.

Não pensei duas vezes dessa vez.

Consegui cair com segurança no chão, assim que me estabilizei corri na direção dele.

Quando estava atravessando a rua vi meu carrasco se erguendo. Ele ainda estava vivo.

— Não é possível. — Gritei.

Ele se levantou com dificuldade, mas ainda que cambaleante a medida que caminhava sua passada foi ficando mais firme e decidida. Ele já tinha deixado a calçada e atravessava rompante a rua à revelia do trânsito.

Aquela coisa começou a correr e saltar os carros e durante os seus pulos ele passou a usar os seus quatro membros como se fosse um felino pulando obstáculos.

Ele saltou de forma descomunal avançando dezenas de metros no ar em minha direção.

Antes de me agarrar, e ainda no ar durante seu derradeiro salto, ele foi alvejado mais uma vez caindo para trás com violência. O tiro foi certeiro em seu peito que o fez parar alguns milésimos de segundo no ar como se houvesse tomado uma estacada bem no meio do que seria o seu osso externo, tamanha a violência do impacto do projétil.

Ele pareceu agonizar no chão, mas era certeza que se levantaria mais uma vez. Era questão de tempo.

Como o seguro morreu de velho mesmo com ele ainda caído o rapaz na moto acertou-o mais uma vez.

— Anda, sobe. — Ele me apressou.

Ele bateu na garupa da moto numa alusão de que eu deveria me sentar ali.

Dei dois passos para frente e recuei. Balancei minha cabeça em negativa.

— Quem é você? O que quer de mim? — Eu não o conhecia, estava numa situação de que não podia confiar em ninguém a primeira vista.

O medo me tomava de assalto e minha hesitação aflorava. Eu não sabia o que fazer.

— Sobe! — Ele insistiu mais uma vez diante de minha indecisão.

Eu reconheço esse rosto de algum lugar.

Sim, eu reconheço ele. Pessoalmente eu nunca o vi, mas sabia quem ele era, quer dizer, Jéssica sabia quem ele era. Esse cara foi dado como morto.

Mas não poderia estar mais vivo.

— Marlowe? Sam Marlowe? — Constatei deslumbrada. — Você está vivo?

Obvio que estava, ele é o detetive que descobriu a traição do Senador Reed. A pessoa que deu o relatório dos casos de agalmatofilia a senhora Reed e que, involuntariamente, começou isso tudo.

— Sobe! — Insistiu.

— Sim. — Concordei acenando com a cabeça.

Sentei na garupa de sua moto, ele empinou a mesma e disparou.

— Segura! — Gritou o piloto para mim, abracei a cintura dele.

Aquele desgraçado estirado no chão mesmo após levar três tiros — sendo um a queima roupa — ainda estava vivo, ele se pôs de pé e tentou nos seguir correndo atrás da gente. A perseguição se estendeu por diversas ruas até que ele finalmente desistiu.

Quando finalmente achei que poderia sentir algum alivio ouvi as sirenes da polícia.

Meu salvador se enfiou entre o engarrafamento do transito e depois seguimos por vielas e becos no Expurgo.

Conseguimos despistá-los.

— Porque está me ajudando? — Gritei para ele com minha voz abafada pelo vento no meu rosto.

— Eles arruinaram minha vida. Quero fazer o mesmo com a deles. — Ele respondeu sem tirar os olhos da rua.

Um beco. Paramos.

— Eles estão te rastreando, continuar fugindo é tolice. — Ele saltou da moto e pegou um console, daqueles modelos antiquados antes da popularização da realidade ampliada, e estendeu a mão para mim.

— Rápido, rasgue sua pele aqui. — Ele apontou com o dedo para um determinado ponto em meu braço. — Faça rápido.

Foi o que fiz com minhas unhas, sangue verteu da parte orgânica da minha epiderme seguido que uma gosma esverdeada que saiu das entranhas das minhas partes artificiais.

Ele agarrou violentamente com os dedos uma espécie de fio de dentro do corte, ele esticou o fio puxando-o de dentro do meu antebraço.

Com os dentes ele cortou o fio e fez uma grande gambiarra ao uni-lo com os fios de seu console.

Sentamos no chão e então após ele trabalhar intensamente em diversos softwares finalmente ouvi um estalo em meus ouvidos.

— O que é isso?

— Você está off-line. — Ele suspirou aliviado. — Sua consciência está são e salva guardada em sua cabeça. — Ele tocou na minha testa. — A cópia do seu código fonte no servidor deles para nós é insignificante agora.

— Perdão, como é?

— Sua consciência não está mais na nuvem, mas sim localmente neste corpo. — Ele apontou para mim, mas se referindo ao meu corpo. — Mesmo que eles façam alguma coisa contra o seu código original, que continua armazenado nos servidores da polícia, nada irá refletir na instancia que compõem você bem aqui.

Eu demorei alguns segundos para aceitar isso.

— Você está desconectada da rede deles. — Ele completou a explicação achando que eu não o havia entendido.

— Quer dizer que mesmo que me apaguem no servidor deles eu estou a salvo?

— Sim, — Sam franziu o cenho como um protesto involuntário por eu ter demorado a compreender — agora se destruírem este corpo em que você está a partir deste momento você infelizmente não vai ter como fazer upload de sua consciência para outro lugar.

— Será uma morte em definitivo?

— Isso mesmo.

— Isso me deixa em pé de igualdade com vocês humanos. — Sorri.

— Isso é verdade, se nossos corpos morrem nós morremos com eles. — Ele sorriu também.

— Nunca me senti tão humana quanto agora. — Sorri mais alto.

Ele se levantou e me ajudou a me erguer me puxando pela mão.

— Anda, temos um longo caminho para percorrer pelo Expurgo adentro. Vamos para meu esconderijo.

Que outra opção eu tinha?

— Está ok, vamos.

Olhei bem para ele a medida que andávamos e fiquei estudando suas feições e expressões.

Tentando descobrir se podia confiar, ou não, nele.

Tecnicamente o corpo fala e eu, com estes olhos, posso analisar cada musculo facial dele. No começo não sabia usar este recurso tão bem, mas agora posso fazer bom uso dele.

Após refletir um tempo eu percebi que num primeiro momento podia confiar nesse cara, da mesma forma que com Filipe no nosso segundo encontro eu já tinha certeza que não podia confiar nele.

— Tenho muitas perguntas para fazer a você. — Digo para Sam.

— Tudo a seu tempo. Precisamos chegar em segurança. — Ele me cortou. Tínhamos que nos manter em silêncio porque a região era hostil. Quanto menos atenção despertássemos melhor seria nossa jornada.

Caminhamos em silêncio por vários minutos e avançamos tanto para o interior do Expurgo que o sol quase não era mais passível de ser visto entre tantas construções irregulares.

Meu leque de definições para miséria foi vastamente ampliado com tudo que eu via.

Jéssica nunca teve que vir a esses rincões, ela tinha um misto de repulsa com uma boa pitada de preconceito.

Ela durante toda a vida dela não viu o que eu já vi em tão poucos dias de vida.

Sam e eu tivemos que pular córregos e esgotos a céu aberto diversas vezes para continuar.

— Tudo bem? — Ele me perguntou preocupado.

— Tudo, eu consigo acompanhar. — Para quem fugiu de robôs saltando paredes aquilo era fichinha.

Chegamos a um velho prédio que dava toda pinta que ia tombar para o lado. Diversos moradores daquele cortiço estavam a porta do edifício jogando conversa fora.

Sam pediu licença para eles e os mesmos abriram passagem para a gente, mas não sem antes me olharem de cima a baixo.

Sam não estava se esforçando para se esconder, como aquela região era anárquica desprovida de estado ele parecia se sentir seguro.

Como se estivesse longe do alcance da polícia.

E na verdade estava.

— Ei rapaz, que boneca legal essa aí, hein? — Disse um rapaz mal encarado e sem camisa para Sam. — Será que você pode me emprestar ela um pouco?

Falando isso o infeliz levou a própria mão as suas partes e ficou fazendo gestos obscenos para mim.

Nunca vi nada mais repugnante.

— Desculpe, mas é falta de higiene emprestar essas "coisas".

"Coisas"? — Pensei indignada, como ele podia me tratar como uma "coisa"?

O rapaz chegou mais perto de mim.

— Rapaz, esse não é aquele último modelo que acabou de sair? — Ele praticamente me cheirou de tão perto que ficou de mim. — Sabe? Aquela tal de Waifu 1000, não é isso?

— É sim, — Sam me puxou pelo braço para junto dele — foi um dinheiro muito bem gasto.

— Agalmatofilos de merda, — disse uma velha senhora sentada na escadaria.

— Como é? — Sam respondeu como um reflexo.

Agalmatofilo hoje em dia é uma palavra proibida, deriva de agalmatos que em grego significa estátua, já Agalmatofilia é o desejo que alguém nutre por estatuas, ou neste contexto especificamente por algo que remete ou lembra a forma humana, mas desprovido de vida.

Como um androide igual a mim.

Na falta de uma expressão própria para taras com robôs optaram por aplicar esta terminologia a todos que preferem máquinas a companheiros de carne e osso. Chamar alguém disso é atribuí-lhe o pior palavrão possível.

— Ô dona Iara, vê se fecha a matraca, está ouvindo? — Reclamou o rapaz.

Engraçado que a maioria desses desocupados a nossa volta gostaria de ter um modelo com um corpo igual ao meu para si para se divertirem a valer no privado, mas na realidade ninguém quer ser taxada de Agalmatofilo, ficam revoltados quando são apontados como tal.

Aliás, esta confusão toda começou porque alguns políticos hipócritas ficaram com bastante medo de serem desmascarados como Agalmatofilos e terem suas imagens, e carreiras políticas, ameaçadas por uma sociedade também formada de hipócritas.

— É isso mesmo seus merdinhas. — Disse a idosa apontando o seu dedo para nós. — Não tem capacidade de arrumar uma mulher de verdade não, é? Incompetentes!

— Ter eu tenho, mas essa não reclama da tampa do vaso levantada e nem me pede dinheiro — Sam sorriu se dirigindo para a mulher de idade — e nem fica velha como a senhora dona Iara.

A velha mostrou o dedo do meio para ele.

— Pois faça bom proveito da sua boneca seu merdinha. — Ela se ergueu e bateu a mão na bunda para tirar o pó que se prendeu enquanto esteve sentada — Olha só, já que você tem dinheiro para essas imundices não faça a besteira de "esquecer" de pagar o aluguel, hein?

— Fica tranquila dona Iara. Terá seu dinheiro. — Dizendo isso Sam me puxou pelo braço e entramos portão adentro.

Dentro do prédio descemos uma escadaria tomada de mofo e em alguns degraus também pelo limo. Nos dirigindo para o nível do subsolo.

O quartinho de Sam ficava abaixo do nível da rua. Da pequenina e estreita janela em forma de retângulo localizada quase junto a quina da parede o parco feixe de luz que entrava refletia na parede do outro lado as sombras dos pés das pessoas que caminhavam pela rua.

O lugar era muito úmido, a pintura estava descascando exibindo a parede nua de tijolos, se não estivesse presa nesse corpo artificial estaria espirrando feito uma louca. A rinite de Jéssica estaria me atacando agora.

O pé direito era baixo, poucos palmos acima da cabeça de Sam. Dou algumas passadas no pequeno quarto. Não deve ter mais que 20 m².

— Sente-se. — Ele ordenou.

— O que vai fazer? — Pergunto ao mesmo tempo que faço uma varredura do lugar com os olhos. Só vejo mobília velha e aparentemente de segunda mão. Tudo parecia surrado e quebrado precisando de manutenção.

Era nítido que aquele lugar era de passagem, um abrigo temporário. As coisas de uso pessoal de primeira necessidade dele estavam amontoadas e juntas ou devidamente alocadas em uma mochila pronta para uma saída de emergência.

— Você está ferida, vou te fazer alguns reparos. — Ele falou sem olhar para mim enquanto mexia em sua caixa de ferramentas.

— Por que me ajudou? — Começo a falar enquanto ele faz um curativo no meu braço rasgado. — Era você a me mandar aquelas mensagens anônimas?

— Sim, era eu. — Ele "consertava" a ferida no meu braço por conta do tiro que tomei sem olhar muito para minha cara.

— Como conseguiu aqueles arquivos?

— Eu sou um bom hacker, mas só tive mérito em conseguir aquela gravação de áudio.

— Porque aquela memória em que a senhora Reed lhe pede os arquivos da traição do marido dela na verdade eram suas. Não é?

— Exato, aquela memória era minha. — Dizendo isso ele pegou outra ferramenta e começou a cutucar um dos locais onde fui alvejada. — Você viu tudo que aconteceu pelos meus olhos.

Comecei a ajuda-lo sem que o mesmo me pedisse esticando meu braço bom para pegar as outras ferramentas na caixa sobre a mesa para ele.

— E como conseguiu essa gravação do áudio da conversa da Jéssica com a senhora Reed?

Já estávamos nos entrosando, eu já pegava a ferramenta que ele precisava sem que ele precisasse dizer, bastando apenas olhar para ela.

— Eu consegui aquilo com um pouco de sorte, foi como se me tivesse sido dado de bandeja. — Ele deu de ombros. — Quanto a quem gravou aquela conversa eu não faço ideia de quem seja. Acho que deve ter sido gravada por um terceiro por meio de um drone na janela ou alguém se escorando atrás de uma porta, visto a qualidade precária do áudio. — Ele terminou de extrair uma das balas alojadas no meu corpo.

Sam apontou para um pano velho sobre a mesa e eu o peguei para que ele depositasse o artefato nele.

— Ainda não entendi o que você ganha em me ajudar. — Olhei para ele com um pouco de desconfiança, um fluido viscoso e verde fluía do meu ferimento. Ele parecia bem concentrado em fazer aquilo parar de verter.

— Filipe Casamata te ressuscitou unicamente para que você se lembrasse, ou desse alguma pista de onde Jéssica teria escondido os arquivos do resto do dossiê que incriminava o senhor Reed. — Ele conseguiu fazer alguns pontos no meu "machucado". Ia colocar uma bandagem por cima daquilo.

— Os arquivos que desmascaravam toda a classe politica local como contraventores e imorais usuários de androides de conforto? — Falei quase rindo da hipocrisia envolta de vossas excelências que continuam sendo tratados com toda reverência a que tem direito simplesmente por não haver "provas".

— Esses mesmos. Eu quero estes arquivos, antes que eles possam destruí-los. — Ele tirou os olhos do curativo e olhou para mim ao dizer a última sentença.

— Então Filipe nunca esteve interessado em resolver o caso do assassinato da Jéssica?

Sam começou a trabalhar na minha outra ferida a bala perto da minha barriga. Não sentir dor talvez fosse a única vantagem de ter um corpo desse.

— Exato, ele só queria os arquivos. — O olhar de Sam era fixo em suas ferramentas. — Provavelmente alguém acima dele lhe atribuiu essa tarefa: Salvaguardar seus patrões de algum escândalo.

— E você quer justamente esses arquivos para se vingar, é isso? — Ergui uma sobrancelha ao falar. — Vingança, simples assim?

Ele fez sinal apontando para um treco parecido com um alicate. Eu me estiquei o pegando e passando para ele.

— Não se mexa. — Ele me alertou.

Sam removeu o segundo projétil do meu corpo com aquela ferramenta extravagante.

— Exato novamente. — Ele costurou minha pele e puxou um fio com a boca para fazer um nó. — Eles destruíram minha vida por causa desses arquivos, quero espalha-los em todo lugar e acabar com a carreira deles.

— Você é praticamente um fantasma, — abro os braços querendo uma explicação — defina exatamente o que você quer dizer com "destruíram a minha vida".

— Eu já tive um cubículo na cidade e muito dinheiro em forma de créditos. — Ele completou. — Me tomaram tudo.

Ah sim, essa doeu no bolso dele.

— Então desde o momento em que fui "ressuscitada" você está em meu encalço?

— Tenho um amigo dentro da polícia, assim consegui alguns acessos clandestinos para me comunicar contigo sem deixar rastros para Filipe.

— Essa pessoa de dentro da polícia por acaso se chama Isabel? — Falei com um sorriso saliente.

Desta vez ele que arqueou a sobrancelha.

— Sim, exato. — Ele tentou disfarçar um sorriso. — Eu tinha pedido a ela para te tirar de dentro da delegacia sem levantar suspeitas, de uma forma bem discreta, sabe? Já que eu não poderia te arrancar de lá de dentro a força.

Sam repetiu o processo dando outros nós no buraco da bala fechando-o.

— O que Isabel é para você? — Eu peguei a expressão dele ao se referir a tal "amiga" na polícia. Eu sabia que tinha alguma coisa a mais ali, tanto é que desta vez não disfarcei o sorriso.

— Minha namorada, eu acho... — ele suspirou parecendo decepcionado — mas isso não vem ao caso.

— Por quê? — Mesmo sentada levei as mãos a cintura o questionando.

Ele começou a colocar as gazes na ferida e as prender com fita.

— Porque nossa relação é uma ilusão, — ele terminou de fazer a atadura — somos de castas diferentes, jamais poderíamos nos unir. Ainda mais agora que estou foragido.

— Mas ela se arriscou mesmo assim, não é?

— É uma boa moça, desejo tudo de melhor para ela. — Ele terminou de prender a última fita e esfregou suas mãos sujas de fluídos que saíram das feridas em outro pano sujo.

A ideia de que não sai sangue de um ferimento de seu corpo, mas sim uma gosma pegajosa é perturbadora.

— Sei... — Fiquei refletindo nisso enquanto ele guardava o segundo projétil removido do meu corpo.

Ele deu uma última conferida nas ataduras.

Ele terminou os curativos.

— Prontinho. — Disse triunfante.

— Obrigada. — Ele fez um ótimo trabalho com o que tinha a disposição.

— Seu corpo não se regenera, então você vai ter que ficar com esses curativos. Está ok?

— Sem problemas, eu não vejo a hora de sair deste corpo. — Dei de ombros. Não tinha ficado tão feio assim, não que eu me importasse com a estética da minha concha.

— Assim que você me ajudar a pegar esses arquivos eu te ajudo a imigrar para os servidores da Asimovia. — Ele falou recolocando as ferramentas organizadamente na sua maleta.

— Filipe me prometeu a mesma coisa. — Falei decepcionada.

— Pois é, — ele desviou o olhar para mim sério — a diferença entre ele e eu é que eu não quero te matar, não é mesmo?

— Espero que não.

Ele sorriu olhando para o outro lado, não sei dizer do que ele estaria rindo.— Uma coisa nessa história toda não faz sentido. — Refleti em voz alta.

— Desculpe, mas nada faz sentido agora para mim. — Ele disse irônico.

— Veja só, eu sempre pensei que a morte de Jéssica fosse uma queima de arquivo orquestrada pelos políticos que ela afetou publicando os dossiês. — Me levanto da cadeira e procuro mexer o braço e a perna machucada.

— Também pensei isso. — Disse Sam reflexivo.

— Depois que você me disse que Filipe queria os arquivos de volta antes que caísse nas mãos de terceiros e por isso me ressuscitou até que tudo fazia um pouco de sentido, quero dizer, — fiz uma careta — nem tanto.

— Eu sei o que está pensando, — ele se ergueu após guardar sua caixa de ferramentas — qual a razão de te matar e depois ter todo esse trabalho para ressuscitar você para, só então, tentar recuperar os arquivos?

— Exato! — Afirmei batendo uma mão na outra. — Bastava da primeira vez raptar Jéssica, tortura-la um pouco e fazê-la falar onde estavam os arquivos.

— Isso mesmo, mas não. — Ele abriu os braços em protesto. — Alguém foi lá e matou Jéssica sem titubear e nem se deu ao trabalho de revistar o corpo atrás dos arquivos.

— O que nos leva a crer que quem matou Jéssica não faz parte do grupo de políticos que foram prejudicados por ela. — Confabulei com a mão no queixo. — E talvez suas motivações fossem outras.

— Seja lá quem for que a matou originalmente não queria os arquivos, mas agora também está atrás dos mesmos, porque não antes e com qual finalidade os quer agora eu não sei, mas estavam desesperados para capturar você. — Sam falou apontando para mim.

— Alguém me explica porque fazer um atentado daquele tamanho praticamente parando a cidade inteira para me capturar? — Fiquei espiando a vasta coleção de badulaques que Sam tinha espalhado pelo seu cômodo entre as estantes, meu falar demonstrava indignação.

— Como eu disse antes eu sou um bom hacker, — Sam deu uma breve tossida — mas confesso que nunca testemunhei tamanho poder. Essa pessoa pode não apenas dominar e mudar as rotinas de diversos robôs como conseguiu que eles burlassem as leis da robótica e atacassem humanos. — Ele falou andando em círculos pelo quarto.

— Mas precisava desse poderio todo? — Levei uma das mãos à testa.

— A esperança dessa pessoa, ou grupo de pessoas, era conseguir te raptar durante o seu translado do IML até a delegacia. — Sam se virou novamente na minha direção ao falar, assim como eu ele falava em tom de confabulação. — Esse alguém, assim como eu, tinha informações privilegiadas de sua rotina para saber que Filipe estava andando sem escolta justamente naquele momento.

— E como fracassaram da primeira vez foram para o tudo ou nada invadindo a delegacia, o que me leva a crer que eles sabiam que os policiais iriam me apagar em breve. — Eu, desastradamente, deixo cair uma caixinha de Sam da estante. Torço para que não fosse nada importante, já que acabou de quebrar.

— Isso mesmo. — Ele bateu uma mão na outra ignorando o objeto caído. — Só dava para te tirar de lá de dentro com uso da força. Só que não contavam que você fosse ajudada por Isabel.

— Ela arriscou a carreira dela para me tirar de lá. Ela bateu em Filipe, só para você ter uma ideia. — Simulei que dava um soco no ar para Sam pegar a ideia.

Sam gargalhou de satisfação.

— Ela fez isso mesmo? – Ele riu mais um pouco. — Ela é uma grande garota.

— Você pediu um sacrifício grande demais para ela, não acha?

— Ela já queria se vingar do departamento de polícia por conta do que aconteceu comigo, fique tranquila, ela se voluntariou, ela sabia dos riscos. — Sam tentou disfarçar sua preocupação com uma expressão de falsa tranquilidade.

Está mais do que na cara que quando ele quer dizer que ela se voluntariou na verdade está me dizendo que ela, provavelmente, em um rompante de teimosia deve ter ido lá e feito o que fez. O olhar de preocupação de Sam deixa claro que ele não tinha como opção expô-la ao perigo desse jeito.

— Não está preocupado com ela?

— Ela sabe se virar muito bem, melhor que eu. — Sam gargalhou para disfarçar a mentira. — Ela socou o Filipe mesmo? Essa foi ótima!

— Foi sim, ele caiu desacordado no chão. — Respondi sorrindo.

Sam sentou em sua cama, que era apenas um colchão velho e manchado, e riu mais.

— Como nunca desconfiaram dela na delegacia? — Me escoro na estante e o encaro. — Afinal deve ter sido por meio dela que você conseguia entrar em contato comigo, não é?

— Por ser uma policial nenhuma memória dela é salva, tampouco a rotina dela pode ser monitorada. Se policiais tivessem a vida esquadrinhada como os cidadãos comuns a segurança pública estaria a mercê de bandidos ou hackers como eu.

Além de policiais a classe política e as pessoas de Classe A+ para cima ficavam livres de "policiamento". O Big Brother valia para todo o resto da massa, mas como não dava para bisbilhotar a vida de todo mundo o tempo todo ainda se fazia necessário ter os serviços da polícia. Existiam muitos outros, que como Sam, viviam a margem do monitoramento.

— E como você a conheceu?

— Na época eu morava na cidade, vi ela patrulhando as ruas e me admirei com sua beleza. — Ele deixou escapar um sorrisinho de satisfação.

— Sim, e aí? — O apressei curiosa.

— Bom, cheguei perto dela e perguntei: "Olá, poderia me responder uma pergunta"?

— E ela? — É claro que ele ia me contar, mas o acelerei assim mesmo.

— Ela disse: "Claro meu caro cidadão", — ele não se segurou e soltou uma risadinha breve e gostosa — e eu falei: "Como posso elogiar a beleza de uma policial sem ser preso por desacato à autoridade"?

— E ela? — Perguntei de novo entre sorrisos.

— "Tenha coragem e arrisque, apenas diga que ela é bonita, se ela gostar do elogio vai te agradecer, se não gostar pode ser que ela te algeme".

— E você? — Gargalhei.

— "Pode ser que eu acabe gostando das duas opções". — Sam riu demoradamente — E disse que ela era linda.

— Ela sorriu ou te algemou?

Ele apenas gargalhou e não me respondeu.

Depois que ele se recompôs se pôs a falar.

— Bom, precisamos agir e agir rápido. Seja lá quem for que tentou te raptar hoje vai tentar de novo. E a polícia vai te caçar em todo canto para te destruir afim de impedir que quaisquer pistas sobre os arquivos caiam em mãos erradas.

— E como vamos fazer isso?

— Vamos visitar um a um todos os lugares que Jéssica frequentava em vida.

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