10

Entrei numa apertada sala dentro da delegacia com uma pequena janela a minha direita, havia apenas uma escrivaninha e uma cadeira reclinável ocupada por Filipe.

— Sua sala? — Perguntei após correr os olhos no lugar.

— Sim — ele olhou em volta também e torceu o nariz para o que viu. — Bom, eu gostaria que fosse maior, mas dá para o gasto.

— Me chamou?

— Sente-se.

— Onde? — Olhei em volta — Não vejo outra cadeira.

Ele apontou para a escrivaninha.

— Você não está achando que vou sentar aí, não é? — Hesitei.

Ele insistiu apontando o móvel com o queixo.

Fiz o que ele mandou e imediatamente o mesmo moveu a cadeira pelas rodinhas dela em minha direção ficando com a cabeça bem próxima da minha cintura. Me senti constrangida com aquilo.

Achei que ele ia colocar as mãos nas minhas coxas, mas ele na verdade estava puxando alguns cabos que estavam do meu lado.

— Espere! — Perguntei assustada. — O que você vai fazer?

— Vou adiantar algumas coisas para Abigail. — Ele respondeu sem olhar para mim concentrado em desatar o emaranhado dos cabos.

— Ela vem para cá?

— Já está no prédio. — Ele falou enquanto conectava um cabo em uma extensão. — A qualquer momento ela entra por essa porta.

— O que você pretende com estes cabos? — Aquilo definitivamente estava me deixando nervosa.

— Sua conexão neural, por favor? — Ele apontou para minha nuca, ele queria espertar aquilo na minha entrada neural.

— O que você pretende com essa gambiarra? — Tirei a mão dele do meu cabelo, ele estava o colocando de lado para revelar minha nunca e minha conexão.

Ele se irritou e ficou mais próximo de mim. Se a situação fosse outra imaginaria que ele estava me assediando explicitamente.

— Me solte! — Tentei tirar as mãos dele de mim, ele puxou meu cabelo com mais força. — O que você pretende?

— Não se faça de sonsa. — Ele riu. — O que você acha? Eu quase morri por você hoje, quase perdi meu emprego. — Ele riu mais alto. — Mereço ser compensando.

Eu consegui ver o pequeno dispositivo sobre a mesa ligado ao cabo. Era rudimentar e antiquado. Coisa das antigas.

E por isso mesmo não deixaria rastro.

— Não, você não ousaria. — Disse sem conseguir acreditar no que via.

Seguro a mão dele tentando afastar aquele plugue de mim.

— Pare já. — Ordenei.

— Não adianta resistir, isso é inevitável, não postergue. — Ele me falou como se estivesse me dando um conselho. — Vai ser pior.

Abigail entrou na sala sem ser anunciada. Ela bateu a porta atrás dela fechando-a.

— Filipe, ela ainda está funcionando? — Abigail repreendeu Filipe.

— Não, não vou deixar vocês me desativarem. — Gritei com ela. — O que pretendem comigo?

— Vai estender sua existência de outras formas. — Ela suspirou enquanto jogava sua pesada mala no chão. — Definitivamente você é especial, ainda não consigo entender o que deu naqueles velhos senis em ordenar Filipe de te destruir.

— O que ela disse é verdade? — Olhei em pânico para Filipe.

— Cada palavra. — Ele falou em um tom irritadiço.

— Pare com isso... — Fiquei em pânico. — Porque vai fazer isso comigo?

— Por que não fazer? — Ele estava com raiva. — Depois de tudo que você me faz passar hoje?

— Eu vou te matar se continuar com isso. — Falei quase cuspindo.

— Impossível, — Ele suspirou triunfante — há uma trava em seu programa que não permite que você levante a mão para mim, aliás você não pode sequer tocar um dedo em mim se eu não permitir.

— Eu não ou sua escrava. — Tentei gritar, mas minha voz saiu abafada.

— É sim, — ele ergueu as sobrancelhas, puxou meus cabelos para trás e me olhou nos olhos com sua face justíssima a minha — você é igual a aqueles brinquedos vendidos naquela fábrica de onde saiu.

Consegui me soltar sem machuca-lo.

— O que quer dizer com isso? — Falei arfando e me apoiando na escrivaninha após contorna-la. — O que eu te fiz?

Ele contornou a escrivaninha pelo outro lado, abriu uma gaveta e pegou uma garrafa de bebida escondida lá dentro.

Ele a abriu e bebeu direto no gargalo 4 goles seguidos. Parecia vodca.

— Seu, digo, meu projeto foi cancelado. — Ele limpou a boca com a manga da camisa.

— Como é? — Falei espantada.

— Sua existência é um perigo para a sociedade. — Ele falou como se lamentasse. — Alguém tentou te capturar, provavelmente querendo o mesmo que nós, saber onde Jéssica escondeu as provas que incriminam uma boa parte da elite política local.

Fiquei sem palavras.

— Seja lá quem for é poderoso e está além das nossas forças. — Ele olhou pela janela por um instante. — Virão atrás de você novamente e se, desta vez, te capturarem vão ter posse de informações muito perigosas.

— Acho que foi um erro te ressuscitar. — Ele se virou de volta para mim. Sua expressão era de desgosto.

— Espere, e aquele papo de prender o meu assassino — gaguejo — digo, assassino da Jéssica?

— Desculpe, mas sua existência é um risco que não precisamos correr. — Ele jogou a garrafa longe. — Achei que conseguiria encontrar facilmente esses arquivos, vendi a ideia de te ressuscitar para o próprio secretário de polícia colocando minha carreira em jogo. — Ele afrouxou a gravata com raiva. — Agora há quem diga que todos os prejuízos e mortes que foram causadas hoje são uma falha minha.

— Você não tinha como prever isso. — Tentei acalma-lo. — Não é sua culpa.

— Será mesmo? — Ele sorriu falsamente. — Eu estava enfrentando alguém que pode simplesmente sumir das câmeras de segurança, criar uma identidade sem categorias e ser irrastreável. — Ele arfou decepcionado. — Deveria ter previsto que alguém assim poderia ir até as últimas consequências para pegar você. Eu devia ter a colocado sobre mais vigilância, te cercado de mais seguranças.

Ele contornou a escrivaninha em minha direção.

— Mas não, — ele lamentou — eu me achei inteligente demais. Fui prepotente.

— Afaste-se. — Ordenei recuando meus passos para trás.

— Recebi ordens de te apagar e abortar o processo até determos esse maldito hacker talentoso. — Ele levou a mão a testa se lamentando ainda mais. — Merda, justo agora que eu ia ganhar um bom dinheiro te emprestando por um tempo para Abigail. Ainda bem que podemos minimizar as perdas, não é mesmo Abigail?

— O que você vai fazer comigo? — Disse com a voz embargada me voltando para ela.

— Se copiarmos você usando as vias tradicionais deixaremos rastros, toda a polícia vai saber. Daqui não posso transferir sua consciência para lugar nenhum, então vamos desativar seu corpo com esse dispositivo arcaico que você vê aí na escrivaninha e depois vou extrair seu cérebro inteiro e te levar para meu laboratório. Lá vou fazer uma cópia de você no meu servidor e só aí permito que Filipe cumpra a ordem de te apagar em definitivo.

— Com que propósito? — Se eu fosse orgânica estaria me tremendo de pânico. — Vai me ressuscitar mais uma vez?

— Ressuscitar não é o termo certo, — ela falou como se desse uma palestra — na verdade vamos dar vida a uma outra cópia sua. Uma nova consciência que vai continuar de onde a sua parou.

— Eu vou morrer?

— Tecnicamente? — Ela refletiu alguns segundos pensando na resposta. — Vai sim. Sinto muito.

— Vocês vão arriscar suas vidas para conseguir uma cópia ilegal de minha consciência? — Falei gritando. — Isso vale mesmo a pena?

— Você é diferente, — o olhar de Filipe estava com um misto de ódio e satisfação — eu estava em dúvida se você era apenas um robô idiota que faz as coisas sem pensar e que só sabe executar ordens, mas vejo que me enganei. Existe alguma coisa viva em você aí dentro, há um fantasma mesmo dentro da concha.

— O que quer dizer com isso? — Tentei me desvencilhar dele.

— Que você deve mesmo estar viva, e eu sou responsável por você, tecnicamente sou seu mestre. — Ele riu mais uma vez. — Eu mando, você me obedece.

— Sádico, você é doido? — Rosnei para ele. — No que isso é útil?

— Doido? — Ele deixou seu rosto reste ao meu. — Eu estou falando com uma máquina que acha que está viva, como posso ser são? Agora fique quietinha e me obedeça, isso vai acabar em segundos.

— Tire as mãos de mim. — Ordenei. Falei como se fosse uma presa acuada, estava encurralada, mas ia tentar me defender.

— E vai fazer o quê? — Ele zombou. — Me bater?

Tentei fazer isso, mas minha mão se deteve alguns centímetros do rosto dele.

— Mas o quê? — Exclamei surpresa. — Como?

— Qual a parte do "você não pode me tocar" que você não entendeu? Este corpo não é seu, não te pertence, pertence a mim. Eu sou seu dono.

Olhei para ele com repreensão. Quando ele puxou de novo meu cabelo para o lado.

— Coloco a mão onde bem entendo. Não cabe a você se negar ou não. — Ele seguiu puxando meu cabelo e foi levando o plugue a minha nuca. Eu não podia impedi-lo.

— Então é isso? — Ironizei. — As coisas vão terminar assim?

— Para você vai, para nossos planos não.

— Abigail? — Chamei por ela como se clamasse por misericórdia.

— Desculpe, mas a ideia foi minha, sabe? — Ela deu de ombros. — Eu sinto muito, mas seria um desperdício te destruir assim. Com base na sua consciência eu poderei construir corpos androides que vão emular perfeitamente os cinco sentidos humanos, mas para chegar nesse resultado eu preciso de uma cobaia que tenha vivido em um corpo de carne e osso real, ou pelo menos tenha boas lembranças de como é isso. — Ela apontou para mim com o indicador. — Como é o seu caso.— Você não pode fazer isso Filipe. — Gritei desesperada. — Detenha-se!

— Pare! — Enquanto Filipe terminava de ligar os cabos e iniciava os procedimentos Abigail abria sua maleta e de lá retirava instrumentos que pareciam bisturis. — Quer fazer o favor de parar com o escândalo? Tenha um final digno pelo menos!

— Você vai remover meu cérebro com isso? — Falei apavorada ao ver o instrumento na mão dela.

— Eu? — Ela riu, mas foi uma risada diferente, uma risada para disfarçar sua ansiedade. — Eu vou fazer um bom uso deste seu cérebro antes de destruí-lo. Não se preocupe, seu corpo vai estar desativado, não vai doer.

— Você não ousaria. — Falei movendo a cabeça de um lado para o outro em negativa. — Isso é um crime.

— Filipe, — Abigail ralou com ele — quanto tempo mais para desligar o corpo dela? Ela não para de implorar e de dizer bobagens. Acabe logo com isso. — Ela protestou e em seguida respirou fundo para controlar a própria raiva.

— Isso não é certo, não é ético. — Insisti.

— Porque não, — Filipe abriu os braços — quem me recriminaria? Que crime eu cometerei? — Ele vocifera para mim. — Você não é reconhecida como forma de vida, logo é um objeto, uma propriedade que eu posso fazer uso como bem entender enquanto ainda estiver sob minha jurisdição. Eu tenho até o fim do dia para te apagar, — Ele riu dessa vez com satisfação — acho que ainda dá tempo de ganhar alguma coisa.

O pequeno dispositivo na mesa começou a exibir uma barra de carregamento que ia de zero a cem. Já estava em 15%.

— Pronto, agora é só relaxar. — Ela satirizou a situação. — Tudo bem?

Abigail terminou de colocar suas luvas cirúrgicas e máscara após lavar suas mãos no pequeno lavabo do escritório.

— Sério que sua pia é tão apertada assim Filipe?

— Dependendo do sucesso de hoje talvez eu não precise mais trabalhar aqui. — Ele me deitou por sobre a pequena mesa. — Quem sabe?

Barulho na porta. Alguém parecia esmurrar a mesma.

— Mas o que é isso agora? — Filipe protestou!

A policial feminina que tinha me levado antes ao banheiro adentrou a sala quase derrubando a porta.

— Afaste-se dela, ou... — Ela gritou com Filipe.

Filipe se virou para trás, como se não acreditasse na ousadia da moça.

— Ou o quê? — Ele a desafiou. — Vai atirar em mim? Quem você acha que eu sou? — Ele levou a mão ao peito como forma de afirmação. — Aliás, quem você pensa que é, hein?

— Eu sou uma policial, e você tem que se afastar dela agora. — A mulher ordenou.

— Dela quem? — Ele olhou para os lados. — Só há nós três aqui. Sua idiota, — ele apontou para mim — ela é uma máquina e tem um dono. Essa aí não é diferente de um cão. Eu faço o que eu quiser com ela e isso não é da sua conta.

— Ela é um ser consciente. — A mulher falou determinada.

— Prove para mim. — Filipe bateu as mãos. — Prove!

— Peço que se afaste, isso não precisa terminar assim. — Ela faz um gesto com a mão pedindo para ele sair de perto de mim.

— Sua idiota, — ele respirou fundo — você só é uma policial por conta das cotas de vagas reservadas para humanos. Fora isso não é ninguém, está ouvindo? — Ele gritou com ela. — Ninguém!

— Eu sou alguém sim, e ela também é. — A mulher apontou para mim.

— Tola, sua carreira acabou. — Ele olhou para o distintivo dela. — Anda, sua inútil, sai da minha sala agora. — Ordenou entre gritos.

— Não. — A policial falou decidida.

Abigail tentou atacar a policial de surpresa, mas com um único soco certeiro a cientista foi a lona.

— Abigail? — Filipe gritou espantado.

Ele olhou de Abigail caída para a policial com uma expressão no olhar que eu nunca tinha visto antes nele. Aquilo era ódio puro.

— É uma idiota mesmo. — Dizendo isso ele sacou sua arma e apontou para ela. — Ele iria até as últimas consequências.

56% de carregamento.

Ela fez o mesmo. Ficaram os dois um de frente para o outro apontando suas armas.

72% na barra de carregamento.

Me veio as leis da robótica imediatamente em mente. Eu estava diante de um impasse, mas precisava obedecer aos protocolos.

A primeira lei: um robô não pode ferir um humano ou permitir que um humano sofra algum mal; eu era obrigada a impedir que qualquer um dos dois puxasse o gatilho.

A segunda lei: os robôs devem obedecer às ordens dos humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a primeira lei; eu não podia tocar em Casamata sem sua autorização, mas em um caso desses, desde que ele saísse ileso, eu podia impedi-lo se fosse necessário.

A terceira lei: um robô deve proteger sua própria existência, desde que não entre em conflito com as leis anteriores. Filipe disse que me apagaria até o final do dia, mas ele não me ordenou que eu me apagasse, por isso preciso lutar pela minha sobrevivência, mas sem causar dano a ninguém.

Havia um jeito de impedir que eles se machucassem sem ferir nenhum dos dois e ainda por cima salvaguardando minha existência.

Olhei para a policial, como se dissesse com os olhos para ela confiar em mim.

Chutei a arma da mão de Filipe sem encostar nele, eu não podia nem o machucar, essa era a regra. A arma bateu no teto e lá se fincou.

A policial não disparou.

— Ora, sua vadia... Filipe veio em minha direção para me agredir.

A policial interveio e o empurrou para o fundo da sala fazendo-o cair de costa. Ele tentou se reerguer se apoiando na cadeira, mas as rodinhas da mesma deslizaram e ele caiu com a nuca na escrivaninha.

Filipe desmaiou.

Falhei no que tange a cumprir a primeira lei, mas não fiquei constrangida com isso.

— Vamos, antes que percebam. — A policial puxou os cabos da minha nunca interrompendo o processo que estava em 91%.

Ela me puxou da mesa pelo braço.

— Vamos para onde? — Me soltei dela. — Ainda que eu consiga fugir de que me adianta? Ele pode me apagar a qualquer momento remotamente.

— Confie em mim, vai dar tempo. — Ela tornou a me puxar. — Vamos, tem alguém que quer muito conhecer você.

— E quanto a você? — A encarrei e me demorei estudando seu semblante. — E quanto ao seu emprego?

— Essa merda aqui? — Ela apontou para tudo ao nosso redor e sorriu. — Já estou de saco cheio disso, mais hora, menos hora eu ia acabar pedindo as contas.

Não falei mais nada, ela estava decidida.

— Não se preocupe comigo, eu tenho um plano. Nós temos um plano.

Quem era "nós"? Não parecia uma boa hora para perguntar.

Saímos da sala e nos embrenhamos pelos corredores da delegacia em direção a porta. Tentamos andar sem apertar o passo fingindo tranquilidade a fim de sair de lá sem levantar suspeitas.

O lugar estava em polvorosa por conta do atentado, passar despercebidas pela porta foi fácil.

— Conseguimos. — Vibrei de felicidade quando deixamos o prédio.

Mas assim que foquei meus olhos para rua e olhei para a boa samaritana que estava me ajudando notei que eu ainda teria muitos problemas pela frente.

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