04
Minha casa. Do jeitinho que a deixei.
Que Jéssica deixou.
Me pego morrendo de saudades de pessoas e de lugares que eu nunca vi. Me sinto uma idiota.
Aquelas lembranças eram minhas.
E ao mesmo tempo não eram.
Depois que entrei pela porta tirei os sapatos e caminhei descalça pela sala. Fiquei alguns segundos admirando todos os detalhes da casa, cada milímetro daquele lugar tinha uma história para contar e eu tentei buscar na memória tantas quanto pudesse recordar.
Filipe não entrou, ficou ali parado no batente da porta escorando de braços cruzados. Ele permaneceu me olhando pacientemente por alguns segundos.
Por um minuto, dois.
Até que vencido pelo tédio falou comigo da porta me tirando de meu transe.
— Hoje você fica aqui. — Ele colocou a mão na maçaneta para puxá-la. — Eu já vou.
— Vai embora? — Me virei admirada para ele imaginei que ele fosse entrar e se deter por algum tempo.
Mas ele aparentava bastante pressa.
— Deixarei uns arquivos referentes ao seu pedido de asilo e cidadania da Asimovia, a nação dos androides. — Ele fez um sinal com os dedos da mão como se arremessasse alguma coisa em minha direção.
Recebi uma série de arquivos cujo ícones projetados em RA vieram flutuando da mão dele em minha direção.
— Assim que se alojar na casa dê uma lida. — Ele completou.
— Você já vai dar entrada na minha documentação?
— Não, só quando terminarmos as investigações, por enquanto você terá um perfil provisório.
— Sei... — Falei desanimada.
— Você vai precisar fazer alguns testes para poder pedir o asilo. — Ele disse já começando a fechar a porta. — Regras da própria Asimovia.
— Que tipos de testes?
— Não se preocupe, não são nada demais. Tem um teste de Turing também, apenas para provar que você é uma inteligência artificial consciente.
— Se eu provar que sou uma inteligência artificial senciente eles irão me aprovar?
— Com toda certeza, mas não se preocupe, você vai se sair bem. — Ele fez um movimento de abanar com a mão a fim de me tranquilizar.
— Tudo bem, responderei amanhã.
— Isso, foque no seu trabalho, afinal seu asilo se concretizará somente após o seu sucesso.
— Vou me esforçar. Tenha uma boa noite. — Disse em um tom quase mandando ele embora. — Durma bem. — Filipe saiu e fechou a porta me deixando sozinha na casa.
— Parece que estou de "folga" até minhas memórias se ajustarem. — Murmurei.
Foi neste instante que me dei conta que estava sozinha. Todos os dias Jéssica tinha uma rotina naquele cubículo, automaticamente eu já o estava executando, como se fosse a minha rotina.
Para mim foi tão natural como seu eu tivesse feito aquilo milhares de vezes.
Só que o estranho, na verdade, é que aquela era a primeira vez que eu fazia esse "ritual".
Fui no banheiro e com naturalidade manuseie tudo. Eu já sabia onde cada coisa estava, bem exatamente onde haviam sido deixadas da última vez.
Sabão, escova, pasta, cremes.
Tudinho.
Abri meu vestido e o deixei cair escorrendo pelo meu corpo em direção ao chão frio do piso do banheiro e jogando-o para longe com meu pé. Entrei naquele box e liguei o modelo manual de chuveiro que eu tinha. Existe um macete para girar a manivela e assim aumentar a pressão d'água.
Até esse detalhe tão peculiar eu sabia de antemão.
Tomei um banho demorado apenas por tomar, já que as sensações de tato não eram perfeitas e o prazer da ducha quente nem de longe lembrava as sensações que eu esperava ter, mas foi bom para matar o tempo e tentar colocar algumas ideias no lugar. Ainda não havia me acostumado a este corpo e suas proporções, o que quebrou em alguns momentos minha rotina diária.
Mesmo sem nunca ter colocado os pés naquele lugar cada detalhe, cada pequeno defeito tinha um significado. Até as rachaduras da parede eu reconhecia.
Eu sabia onde estavam cada uma das peças de roupa e quais combinações Jéssica comumente fazia com elas. Fui diretamente nas confortáveis que Jéssica sempre usava em casa.
A maioria não ia caber neste novo corpo tão peculiar. Por sorte algumas peças couberam.
Eu ia repetir aquele ritual como se ele nunca houvesse sido interrompido. Como de costume ficar na internet estirada no sofá só com roupa de baixo era parte fundamental do fim do dia. Da mesma forma que eu sempre fazia... quer dizer, a Jéssica fazia.
Só fui verdadeiramente me dar conta que estava no inconscientemente revivendo as rotinas da Jéssica quando comecei a preparar minha comida.
Este corpo não precisa comer. Nem sequer sofre de fome, na verdade preciso apenas consumir uma meleca gordurosa de aparência repugnante uma vez por semana para nutrir a parte orgânica da minha pele, de resto tenho uma bateria que pode durar mais de uma semana tranquilamente.
Eu estava me comportando como se não estivesse acontecendo nada de diferente. Ia seguir esse meu script diário e me deitaria para descansar do fatigante dia para renovar minhas forças para o novo dia que ia surgir.
Não. Não estava tudo normal. Não fazia sentido a expressão como "era antes" pois nunca houve um antes.
Minha cabeça estava em parafuso já que gostos e opiniões, sabores e dissabores estão pré-concebidos e enraizados em mim. Eu me comportava como Jéssica a ponto de esquecer que eu de verdade não era ela, mas a maldita cópia dela.
Se Filipe não tivesse me dito que eu era apenas uma sombra da Jéssica eu ia acreditar piamente ser a original e tocaria minha vida normalmente.
Preciso de um outro nome para me diferenciar do outro "eu". Me desvencilhar da Jéssica original.
Jéssica está morta. Eu estou viva.
Viva? Será mesmo que estou viva? Há quem acredite que uma máquina não pode estar viva.
Há instantes em que eu também acredito nisso.
Eu sou o maldito fantasma dela.
No fim também não tinha tanta certeza disso.
É isso, meu nome será Fantasma. Vou me chamar assim.
Era hora de dormir. Eu queria encostar a cabeça no travesseiro e dormir pesadamente para acordar e então ver que aquilo tudo não havia passado de um simples pesadelo. Um pesadelo idiota e minha vida estaria lá de volta do jeito que eu lembro que era. E eu voltaria a ser eu mesma e não mais o fantasma de mim mesma.
Fui para o leito com essa esperança de que se eu dormisse e acordasse amanhã iria descobrir que tudo não tinha passado de um simples e bobo sonho ruim.
Deitei. Meus olhos não fechavam, eu ficava com eles arregalados olhando para o teto.
Merda, androides não tem sono e tão pouco sonham com ovelhas elétricas. Estou estirada na cama tem uma hora e nada.
Eu não estava conseguindo digerir tudo que me aconteceu hoje. Eu acordo em uma maca pela manhã e não sou mais eu. Vou me deitar e sou outra pessoa. É um absurdo acreditar que hoje tenha sido meu primeiro dia de vida.
Não consigo aceitar, só podia ser um truque, um embuste. Não é possível que essas memórias tão vividas em minha mente não sejam mesmo minhas. Eu devia estar sendo enganada, não havia outra explicação. Alguém estava pregando uma peça em mim.
Mas aí eu me levantei e constatei que eu não era eu me olhando no espelho.
Eu via uma estranha.
Eu não era eu, nunca fui eu. Nunca fui nada.
Liguei minha interface para administrar meu arquivos e softwares. Acessei as memórias da Jéssica e as abri diante de mim. As distribui na parede escolhendo um bom leque delas as deixando dependuradas como quadros de família.
Expandi o máximo de memórias que eu pude e as enfileirei de forma cronológica. Assisti várias delas. Não queria, não podia aceitar que não havia sido eu a viver tudo aquilo.
Tinha que ser eu, não podia não ser eu. Eu lembro, sinto como se estivesse lá. Posso falar até mesmo qual era a temperatura que estava, força do vento, sabor de cada coisa. A cada momento, de todo instante.
Tudo está vivido.
O dia que conheci Marcelo. Ele ria engraçado, parecia um bobo envergonhado. Típico de nossa geração com quase nenhum tato para vida social.
O dia que sai de casa e comprei meu próprio cubículo.
O dia que debutei saindo do Metaverso pela primeira vez, deixando minha infância segura entre quatro paredes e tendo contato com outras pessoas além da minha própria família.
Evoco a memória do meu primeiro beijo. Lembro-me de que foi bem constrangedor e que eu hesitei alguns segundos porque achei que fazer aquilo fisicamente era nojento. Fazer aquilo virtualmente me parecia bem melhor e mais higiênico.
Mas nos fins das contas acabei gostado. Mais do que na segurança do virtual.
Me recordo das coisas que chorei.
E das tantas outras que me alegrei.
Olha aqui esta memória, a minha primeira vez na praia. Contratamos uma escolta armada para nos levar para o litoral já que o próprio fica além do Expurgo. Foi lindo, apesar de não conseguimos nos banhar por conta da poluição, mas só de poder ver aquilo pessoalmente foi uma experiência incrível.
Lembro de ter tocado a areia, vi o Sol se pôr no horizonte.
Senti o vento frio do cair da noite.
Segurei a mão de Marcelo pela primeira vez, mas não dei a devida importância àquilo na ocasião já que ainda estava extasiada por ver o mundo fora dos meus parcos limites.
Aquilo tudo era meu, meu, meu. Meus tesouros.
Eu quebro o espelho com um forte soco e caio de joelhos no chão. Berro, grito, faço um escândalo.
Choro compulsivamente. Por vários minutos.
O vizinho de baixo do meu cubículo começou a bater no teto dele com uma vassoura pedindo silêncio de forma desesperadora para mim.
— Cala a boca sua maluca. — Dava para ouvir ele berrando do andar de baixo.
Ele não estava nem aí para meus problemas, ele já tinha os dele e com certeza o mais imediato era conseguir dormir.
Por ele eu que fosse a merda.
Não me importei com aquilo.
Continuei chorando.
Chorei muito.
Assim que me acalmei decidi voltar para o sofá.
A casa — fora este sofá em que me estiro, meu guarda-roupa e os utensílios de cozinha — não possui móvel nenhum. Tudo é branco. Chão, teto, paredes e até o maldito sofá é alvo.
Um branco entediante.
Tudo era então preenchido e decorando com objetos e efeitos virtuais colocados em meu campo de visão pela realidade ampliada. Nada do que eu via era real. Cores, texturas, estampas...
Tudo falso.
E ainda assim meu faz-de-conta está do jeitinho que eu... ela... deixou.
Eu tenho um gato virtual, uma companhia de mentira em uma vida cheia de falsidades. Esse meu gato virtual ronronou para mim fingindo se importar comigo.
Fez o que sua programação mandou ele fazer, que era se aninhar em mim para me confortar. Ele não o fazia porque queria já que não tinha vontade. Fazia o que lhe era ordenado para fazer.
Esse tipo de "favor" eu dispenso.
Coisa mais idiota, como eu podia me iludir com isso antes? O gato não existe, o carinho não existe, a companhia não existe.
Apaguei esse inútil. Penso que Filipe viria a fazer o mesmo comigo caso eu não tivesse topado essa tolice de investigar minha própria morte.
Se eu não tenho um propósito não tenho porque existir. E esse gato não tem mais propósito.
Nunca teve.
Tudo mentira, tudo fantasia.
Igual a mim. Preciso de uma motivação maior que meu senso de sobrevivência. Vai chegar um momento que vou pirar com essa crise de identidade.
Por um lado, não estou com ódio do meu assassino, mas que droga, do assassino da Jéssica.
Se não fosse por esse desgraçado eu não existiria.
Acho que vou falar obrigado para ele antes de matá-lo.
E após pegarmos ele, o que vai ser depois?
Me levanto do sofá e fico caminhando pela sala, as memórias emolduradas em quadros ficam dançando e flutuando a minha volta.
Como se cada uma delas me gritasse: "Me assiste, me assiste".
Me escorro e em pé repouso a testa sob o balcão da minha espremida cozinha americana.
Eis que quando olho para o lado surge algo sobre minha escrivaninha virtual que antes não estava ali.
Me aproximo e constato que há um pedaço de papel escrito a mão.
Um bilhete. Um recado virtual. De quem, se tecnicamente eu não conheço ninguém?
"Nada é o que aparenta ser. Cuidado".
Era só o que me faltava, o que é isso?
Eu deveria informar Filipe imediatamente sobre o fato de alguém tentar falar comigo.
Fiquei receosa, afinal eu estou sendo vigiada em tempo real e tudo que vejo ou falo torna-se uma memória armazenada que poderá ser fiscalizada mais tarde.
Aparentemente, mesmo com o surgimento desse bilhete, ninguém tomou nenhuma atitude quanto a isso, aliás, o simples fato de alguém conseguir se comunicar comigo indica que houve uma falha na vigilância.
E com certeza esse alguém não ia se prestar a isso e deixar rastros, seja lá quem for tomou as providências para que este nosso "contato" não fosse desmascarado.
Mesmo assim eu devia informar Filipe, mas ignorei. Não falei nada porque talvez isso possa me ser útil no futuro e eu preciso de alternativas, já que não confio em Casamata.
Não depois dele praticamente me vender para a doutora Abigail.
Saber que tem gente que consegue burlar o sistema me empolgou. Desta forma, já que não posso dormir, decidi trabalhar. Enfileirei na parede os quadros de memória da Jéssica correspondentes aos minutos antes dela morrer. Noto nesses registros que houve um trabalho de sabotagem muito rudimentar, alguém deliberadamente apagou alguns trechos da memória e não fez nem questão de consertar os "buracos" que ficaram na linha do tempo.
Quem fez isso? Somente alguém com um perfil classe "S" ou superior poderia fazer tamanho violação da memória alheia.
A não ser que seja alguém muito talentoso, como esse indivíduo que me deixou esse bilhete.
Outra dúvida que paira é: Posso arriscar em confiar nessa pessoa, mesmo sem fazer ideia de quem seja?
Teria sido este mesmo individuo o responsável por apagar esses trechos de memória? O que ele ganha me ajudando? Por qual razão estaria me ajudando?
Essa perda de memória é definitiva? Talvez, mas se eu me concentrar e estender o processamento até as informações de um dia antes disso, meses atrás, talvez anos?
Com meu poder de processamento com certeza eu conseguia identificar algo.
Sento novamente no sofá. Distribui-o as memórias e então as aciono em listas. Logo eu estou as assistindo não como um filme, mas como seu eu estive lá pessoalmente vendo tudo a partir dos olhos da própria Jéssica.
Depois de alguns segundos torna-se uma imersão total, inclusive com todas as sensações captadas pelos cinco sentidos dela naqueles instantes.
Era como estar lá de corpo presente.
Chega um ponto que até o estado de espírito e emoções que ela teve são passiveis de serem sentidos.
Revisito as memórias na ordem que estabeleci uma a uma. A ideia de tempo é completamente relativa para um poder de processamento como o meu já que consigo vivenciar horas, dias, meses de uma vida inteira em alguns segundos.
Dentro do virtual era como se eu estivesse lá e vivenciasse tudo como se o tempo transcorresse tranquilamente no seu ritmo e sem pressa, porém no mundo real me foram tomados apenas meros minutos.
Identifico que algumas conversas foram apagadas. Não são aleatórias e nem vandalismo. Devem ser justamente essas as chaves para desvendar o mistério.
É intrigante, quem se deu a esse trabalho se preocupou em apenas apagar o que lhe convinha e deixar intacto o resto. Penso que quem fez isso teve tempo para tal e sabia exatamente o que apagar naquele oceano de informações.
Nessa miríade de memórias não saber exatamente o que se quer e onde encontrar seria como caçar uma agulha no palheiro.
O que obviamente não foi o caso dessa pessoa.
Preciso de uma pista...
Não tenho um norte. E hesito por um segundo em buscar um.
Me dou conta de que sofro de uma angustia que tenta me impedir de seguir nessa busca. Temo que ao revisitar essas lembranças eu seja acometida por uma saudade ainda maior por uma vida que nunca foi minha. Há essa dubiedade de pensamento, uma coisa de querer ser quem não sou e a de querer lutar contra essa vontade.
É deprimente, sufocante. Sinto-me como se me afogasse em meus dilemas existências. É uma sensação incapacitante, uma coisa que me impele a buscar uma zona de conforto e desistir.
Desejo do fundo do meu coração me assumir como Jéssica e mandar as favas o fato de eu não a ser.
Mas não, bato o pé e me mantenho firme na convicção de continuar, afinal eu não poderia ficar fugindo dos meus problemas para sempre.
Preciso enfrentar esse passado, preciso enfrentar a Jéssica.
Não, o fantasma não sou mais eu. A própria Jéssica é um fantasma a me assombrar.
E eu preciso me entender de uma vez com ela.
Vou tentar deixar bem claro para a mesma onde eu começo e onde ela termina.
Determinada volto a busca. Busco trechos em especifico.
Vejamos...
Quem era a minha melhor amiga? Digo, a melhor amiga da Jessica, com quem ela mais trocou mensagens no último ano?
Foco nisso e sou soterrada de memórias, como se pudesse nadar nelas. Com meu processamento coloco ordem no caos e busco trechos que remetam a conversas com pessoas a quem Jéssica era bem próxima.
Depois de vasculhar quase 500 mil mensagens e conversas tive uma triste constatação:
Aquela tola era uma fútil.
Era um absurdo, pois ela só tinha amizades de aparência e gastava todo o tempo dela tentando impressionar os outros.
Ela se esforçava tentando ser quem ela não era, torrando o dinheiro que não tinha para agradar quem não gostava dela.
Que maldita ironia, igual a mim. Estou sendo outra pessoa para agradar um policial idiota convencido.
A sensação de vivenciar tudo isso é uma confusão de remorso com um dissabor por ver tamanho desperdício.
Tenho a amargura do remorso porque vejo essas cenas e penso que eu deveria ter feito tudo diferente. Como se fosse um arrependimento.
Mas aí me dou conta de que não sou a responsável por aquelas decisões ruins.
Não tive culpa.
Não fui eu que cometi aqueles pecados, logo não posso me arrepender dessas coisas.
E junto da vergonha alheia vem essa emoção estranha, da qual não consigo descrever, e então passo a culpar a Jéssica por ter estragado nossa vida.
Nossa vida não, dela. A intrusa sou eu.
São as falhas de caráter que pertenciam a ela que de certa forma a moldavam, era algo indivisível pertinente a sua personalidade e eram justamente essas coisas que a faziam tão humana. Eu não tenho que me meter porque em essência não posso julgá-la, já que me tornei igual a ela. Herdei tudo dela e provavelmente neste pacote todos os seus defeitos devem ter vindo inclusos.Ainda que Jéssica tivesse desperdiçado a vida dela com tolices ela ainda assim era alguém.
Mas quem sou eu afinal de contas?
Por enquanto apenas um fantasma de um outro fantasma.
Descobri uma definição para nada: Eu.
Até que eu me liberte da assombração da Jéssica é isso que serei.
Contudo decidi que não serei uma sombra para sempre, se ao ver essas cenas eu afirmava para mim mesmo que faria tudo diferente e pedia para alguma divindade a chance de fazê-lo agora posso ver que meu desejo foi atendido.
Eu tenho, a partir de agora, a chance de fazer tudo diferente.
Precisava mudar o meu foco de investigação, como modo de sair daquele turbilhão de emoções e focar no que realmente importava.
Vejamos, e contatos de trabalho? Eu tinha... ela tinha?
Muitos... espere, o que eu, digo, ela fazia mesmo da vida?
Ah, isso explica toda essa futilidade.
Ela era apenas uma maldita fofoqueira.
Tinha um canal de streaming de grande audiência, ganhava uma boa grana com os anúncios e assinaturas de usuários e por isso gastava tanto dinheiro e tempo com aparências, ela precisava sempre estar no meio dos círculos sociais.
A especialidade dela era destrinchar roupa suja alheia e gostava de toda e qualquer porcaria, amava baixarias da pior espécie.
É repugnante, escatológico até. É nadar na imundice que jorra do ser humano.
E eu me detive assistindo aquilo tudo com um mórbido interesse. Isso é intrínseco ao ser humano? Se divertir com o infortúnio alheio?
Eu teria herdado isso também?
Seria minha especialidade? Longe de mim... posso ter as memórias dela, mas acredito que isso não ia me agradar.
Fui tomada por uma curiosidade, nada além disso. Eu não ia padecer dos mesmos vícios que minha "sócia".
As memórias estão se ajustando. Talvez eu não seja uma cópia tão fidedigna assim.
Melhor para mim. É justamente isso que quero.
Bem como eu temia acabei sofrendo de saudade de coisas que nunca fiz, nunca vi ao rever essas memórias.
Como eu queria estar com o Marcelo, meu noivo, aqui, agora.
Meu não, meu não, da Jéssica. Estou apaixonada por uma pessoa que nunca vi e sequer conversei na vida.
Quero revisitar a última conversa que Jéssica teve com ele. Ou eu mato a saudade ou a alimento mais.
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