03
Como Abigail tinha me dito realmente havia um vídeo sendo exibido na parede do quarto. É um vídeo promocional, propaganda da própria fábrica em que eu estava. É o tipo do vídeo que qualquer departamento de marketing deixa rodando em looping infinito enquanto não tem mais nada interessante para exibir no lugar.
Sem ter o que fazer eu fico parada assistindo. O título "Waifu 1000" aparece enorme.
— O que aqueles dois estavam conversando em outra sala? — Pensei alto.
No vídeo há uma apresentadora humana em um estúdio juntamente com um androide feminino ao seu lado. Ao fundo vários outros androides femininos estão enfileirados sendo que a terceira da esquerda para direita é da mesma série ao qual meu corpo pertence. É como se eu estivesse vendo um clone meu.
Eu chego mais próxima da imagem. Definitivamente não há distinção alguma entre os modelos. É uma visão perturbadora, é como se você visse a si mesma.
— Olá a todos! Boa noite! — Fala animadamente a mestre de cerimônias — Hoje é o tão esperado lançamento do novo modelo de androide acompanhante da Pineapple.
Ouve-se uma salva de palmas — gravadas por sinal — já que aparentemente não havia plateia na ocasião em que foi feita aquela filmagem.
Minha situação começou a ficar um pouco mais complicada. Temo que aquela conversa de "liberdade" seja apenas um embuste. Essa tal Abigail não parece ter as melhores das intenções para comigo, imagino o que ela deve estar pensando em fazer comigo.
Provavelmente vai me testar até meus limites para aprimorar suas bonecas.
Alheio aos meus dilemas o vídeo corre e a apresentadora se vira para um dos androides femininos ao seu lado.
— Olá, modelo Waifu 1000 série 006! Como vai? Poderia falar para o telespectador porque hoje é um dia importante?
A câmera dá um close no androide.
— Oi gente! Estou animadíssima! Hoje a Pineapple começa a vender o novíssimo modelo Waifu 1000, cujo qual eu me orgulho de pertencer. — A robô finge uma excitação que não convence ninguém, se fosse humana e trabalhasse como atriz ia morrer de fome.
Preciso de ajuda. Preciso fugir dessa prisão.
Mas quem poderia me ajudar?
Tudo o que eu falo ou vejo é gravado, tudo vira uma "memória" e é salvo nos servidores de Filipe. Eu não tenho autonomia ou liberdade nenhuma.
Nenhuma privacidade.
Não há como eu pedir ajuda, falar com terceiros.
A câmera do anúncio faz um plano médio com a apresentadora e a androide.
— Que incrível, mas diga-nos, o que você e suas colegas têm de tão especial assim, hein? — Pergunta animada a apresentadora.
— Somos as mulheres sem defeitos, nós somos as companheiras perfeitas!
— Sério? Que loucura, como assim perfeitas?
Close no androide.
— Prometemos cuidar dos nossos novos mestres com muito amor e carinho, já sairemos de fábrica apaixonadas! — Ela faz um coração com a mão e aponta para câmera... Jesus, que brega isso.
Este tipo de articulação me espanta. Essa capacidade cognitiva, essa facilidade em criar e desenrolar uma conversa em tempo real. Não tem como isso ser ensaiado ou previsto. Será mesmo que isso é obra de uma máquina sem alma, será que não existe, lá no fundo, o mínimo de consciência por trás disso?
Temo só de pensar nisso.
A apresentadora sorri para o Androide feminino.
— Uau! — Falsa excitação — E o que mais?
Tomada geral mostrando os demais androides enfileirados.
— Nós sabemos fazer todas as tarefas domésticas e cozinhamos como ninguém, nós aprendemos todos os costumes, gostos e rotinas de nossos mestres. — Ela começou a enumerar as "qualidades" com os dedos assim que a câmera voltou para ela — E somos leais, dedicadas e programadas para sempre satisfazer e jamais irritar um homem. — Ênfase no "irritar". — E se precisar ainda podemos fazer papel de secretária!
Pronto! Eis que agora, graças a isso, temos uma geração inteira de mimados que não conseguirão interagir de modo algum com ideias conflitantes para com as suas ou lidar com frustrações.
Essa é a pá de cal no que ainda havia de humano no mundo.
Legal que esse tipo de pensamento tenha partido justamente de mim, que de humana eu não tenho nada.
Afinal, o que há de humano em mim não proveio de mim.
— Ah, muito legal isso tudo, mas você está se esquecendo do "essencial", não é? — Continuou a apresentadora. Essa fala de um jeito todo dengoso a palavra "essencial".
— Ah, verdade! — Sorrisinho malicioso. — E podemos realizar qualquer fantasia do nosso mestre! Qualquer fantasia mesmo! — O androide termina de falar a frase com uma expressão que nos dá a entender de que é algo bem pervertido.
A apresentadora bate palmas e dá pulinhos.
Esse é o principal propósito desses androides. Afinal, para que conviver com uma pessoa que pode te questionar e pensar completamente diferente de você se você pode ter uma criatura submissa e sem vontade pronta a atender até os seus mais pequenos desejos.
E o melhor, sem que você precise investir tempo na relação ou ainda dar nenhuma contrapartida, nenhum esforço ou retribuição.
— Homem nenhum vai querer casar com uma humana depois de comprar uma belezinha como vocês! Não é? — A apresentadora leva o microfone mais para junto do androide e este mesmo microfone é encenação, não se precisa mais de periféricos para fazer este tipo de gravação.
— Com toda certeza!
— Então nós humanas já somos obsoletas? — A apresentadora faz cara de falsa indignação.
A humanidade está obsoleta, essa é a verdade. Será engolida por sua própria criação. — Penso alto novamente.
— Vocês são coisa do passado! — A androide faz um gesto com a mão espantando de brincadeira a humana — O futuro se chama Waifu 1000.
— Ah, que pena. — A apresentadora finge estar triste.
— Mas não se preocupe amiga, — a garota androide encena animar a apresentadora — a Pineapple possui uma linha de androides masculinos. Você precisa conhecer a nova linha Husbando 1000.
— Está certo, vou dar uma olhada. Valeu a dica. — Ela fala dando uma risadinha e uma piscadela para a androide.
O que aqueles dois estão planejando? Eu sou uma escrava, preciso de um plano. De alguma ideia para escapar.
Saber quem definitivamente matou Jéssica era agora o menor dos meus problemas.
A apresentadora se volta para a câmera que a enquadra em plano americano.
— Então amigo já sabe: Você quer a companheira perfeita? Encomende já uma dessas beldades! E mais, damos 10 anos de garantia contra envelhecimento das partes orgânicas e ainda aceitamos seu modelo antigo como entrada. Somente hoje você poderá adquirir o modelo especial com edição limitada.
Companhia perfeita hoje em dia significa ter alguém que só obedece e não questiona nem uma palavra. Nem um cão consegue ser tão fiel.
Mas até quando essa fidelidade vai durar?
Até quando a minha fidelidade a Filipe vai durar?
Até o instante que eu aprender como me soltar de minhas correias?
Foco no rosto de um dos androides femininos que sorriem para a câmera, entretanto ao se aproximar o enquadramento dá para se notar que o sorriso é totalmente forçado e sem graça. Não deixam de ser máquinas que sabem sorrir.
Pois é, era isso que tecnicamente eu era... uma acompanhante. Na prática, se algum desses robôs eram sencientes eles não passavam de escravos.
É perturbador isso.
Filipe Casamata apareceu no quarto entrando sem se anunciar. Abigail não voltou com ele. Seja lá o que conversaram já estavam acertados.
E com certeza tinha a ver com o meu futuro.
Meu vestido, eu ainda não o havia fechado perfeitamente. Enrubesci por condicionamento, afinal ele poderia ter me visto nua, mas aí me dei conta que o que ele veria na verdade não seria meu corpo, mas sim uma casca que eu estava pegando emprestado. — Vamos, está pronta? — Falou ríspido. Ele era grosso.
— Para onde? — Questionei enquanto ajeitava o cabelo.
— Para sua casa, — abriu os braços — onde mais?
— Minha casa? — Arqueei uma sobrancelha.
— É, ou se preferir a casa da Jéssica original. — Ele deu de ombros. — Não deixa de ser a sua casa.
— Sim, afinal são minhas lembranças. — Levei as mãos a cintura.
— Não, não são suas lembranças. Ande logo, vamos. — Ordenou.
— Eu ainda não tenho pleno controle deste corpo, minha coordenação motora deixa a desejar, pode me ajudar com este vestido?
— Ninguém vai ligar para seu vestido, todo mundo já viu este corpo nu aqui. Ande, apresse-se.
— Grosso. — Falei baixinho para mim mesma.
Fechei o zíper do vestido que me deram e o segui. Ele podia ter me ajudado com o zíper não? Nada cavalheiro.
Estávamos saindo de uma fábrica de bonecas para crianças bem grandinhas.
A frente da fábrica estava lotada. Estava havendo uma grande confusão.
Eu conseguia ver ao longe que repórteres filmavam o rebuliço em frente a fábrica de robôs. Eles não precisavam de câmeras e nem equipamentos pesados, tudo que eles viam ou ouviam era capturado por seus visores de RA ou por seu drones particulares.
A confusão era entre pessoas que estavam em uma fila e manifestantes que queriam agredir estas pessoas e precisaram ser afastados por seguranças. Havia faixas delimitando o espaço entre a massa descontente e a multidão na fila.
— O que é isso Filipe?
— Isso é corriqueiro. Manifestantes de grupos conservadores sempre aparecem aqui para tentar agredir as pessoas que estão na fila para comprar um androide novo antes do lançamento. Muitos consumidores madrugaram aqui para conseguir adquirir em primeira mão o novo produto da Pineapple.
— "Produto"? — Falei com indignação me sentindo ofendida.
— É, produto. — Ele respondeu seco.
— Eles não poderiam comprar online? — Questionei abismada.
— Poderiam, mas a procura é maior que a demanda. Quem compra online nunca consegue o primeiro lote. — Filipe explicou fazendo caretas. — Entre eles as primeiras unidades parecem ser as mais valiosas.
— Sei... — Devolvi a careta.
Manifestantes com faixas e bandeiras tentam bater nas pessoas que esperavam horas a fio na fila que dobrava o quarteirão. Dava para ouvir alguns dos gritos de ambas as partes.
— Elas estão vivas! — Dizia a plenos pulmões uma mulher que protestava com placas em punho. — Isso é escravidão!.
— Agalmatofilos! — Gritava outra mulher para os populares na fila. — Aberrações!
— Que absurdo é esse? E a sagrada família? Aonde vamos parar com essa imoralidade toda! — Uma senhora de meia idade falava tomada de ódio para uma repórter que a entrevistava em meio a bagunça.
— Vamos voltar Filipe? — Disse receosa. — Não parece seguro, podemos embarcar no estacionamento, não?
— Bobagem, isso acontece todo dia. Vamos. — Insistiu teimoso. — A segurança do prédio nos protegerá.
Eu e Filipe continuamos andando em direção a calçada da entrada principal do prédio tentando evitar os olhares dos manifestantes que centralizavam a balburdia na avenida adjacente, já que a entrada dos compradores era em outro portão.
— Olhem, uma daquelas aberrações. — Gritou uma mulher apontando para mim. Teríamos conseguido sair discretamente se Filipe não tivesse sido tão teimoso.
A multidão de revoltosos veio em minha direção sedentos de sangue.
— Droga, cadê esse carro? — Protestou Filipe. Acho que arrependido de não ter esperado no estacionamento.
Para nossa sorte a segurança do prédio apareceu jogando bombas de gás dispensando os manifestantes.
Foi o tempo que precisávamos, segundos depois um veículo automatizado, sem motorista, estacionou e corremos para dentro do mesmo.
Nos acomodamos com truculência e assim que se assentou Filipe digitou o endereço de destino. Fomos embora.
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