V I N T E E T R Ê S

     Quando Natallie abriu a porta da frente de casa, estranhou o fato de ela estar destrancada. A mulher deixou o casaco no cabide, sentindo os saltos minúsculos de seu sapato baterem contra o chão de madeira polida, e entrou na sala de estar.

     Seus olhos inspecionaram cada centímetro iluminado pela luz que escapava da rua para o interior da casa, mas ela não viu sinais de Harry. Sobre a mesa, havia uma lata de refrigerante aberta e uma cerveja inacabada.

     — Harry? — chamou, mas não houve resposta.

     Natallie começou, então, a procurar pelos cômodos da casa. Entrou em cada sala, quarto e cada banheiro do andar de baixo, mas tudo estava vazio. Então, subiu as escadas, mas Harry não estava no quarto, dormindo — assim como não estava em nenhum outro cômodo que revistara.

     Foi só então que ela viu, no fim do corredor, um ponto de luz amarela vazando do último cômodo. Natallie andou até ele cautelosamente e se surpreendeu, pois aquele era o escritório de Harry. Uma sala que ele não usava há muito tempo, desde a morte de Ryan. Um lugar que ela nunca quis entrar, pois sabia o que encontraria nos murais espalhados pelas paredes.

     Se Harry estava ali, naquele momento, era porque algo realmente sério havia acontecido.

     Natallie entrou no quarto, e sentado à mesa, caído sobre papéis, seu marido dormia, visivelmente exausto. Havia um mapa embaixo de si, marcado em vários pontos coloridos. As fitas adesivas usadas para o trabalho ainda jaziam coladas nas mãos dele. O relógio marcava três e quarenta e cinco da madrugada. Ela se inclinou para acordá-lo. Quando o fez, a tela do computador chamou a sua atenção. Nela, um arquivo digitado tinha o nome de uma garota. Natallie o leu em voz baixa:

"Sofia Spilman, dezoito anos, cursava direito na SLE. Foi encontrada morta na calçada do prédio em que morava. Uma testemunha a viu na sacada segundos antes da queda. Faltavam roupas no armário e pertences pessoais. Nenhuma mala foi encontrada. Havia um bilhete em seu bolso, com uma frase inacabada. Sinais de luta pelo apartamento.

     A família esvaziou o quarto da vítima dias depois de sua morte. A psicóloga, Louise Campbell, se recusou a cooperar com as investigações.

Principais suspeitos: Constance Spilman e Louise Campbell.

Provas: Nenhuma.

Álibis: Ambas as suspeitas o têm.

Motivos: Nenhum até o momento.

Conclusão: O caso está longe de acabar."

     Natallie piscou, vendo que havia mais três páginas daquilo. Balançou a cabeça e se afastou. Por algum motivo, não gostava daquela sala.

      Quando se mudaram para aquela casa, dez anos antes, Harry passava todas as horas livres de seu dia trancado ali. Os murais eram cheios de fotos, todas do Caso Melanie. Dúzias de pastas amarelas relatavam o desaparecimento das crianças ao redor da cidade. Pistas e mais pistas de para onde elas poderiam ter ido; provas de que elas estavam com alguém, o Caso Ryan e, depois... O completo vazio. Não havia nada que o levasse além daquela ultima pista, e, mesmo assim, Harry continuou naquele caso pelos próximos anos de sua vida.

     Agora, ali estava o Caso Spilman, lotando o mural de fotos e a mesa de pastas amarelas. Natallie já tinha visto aquilo acontecer. O procedimento seria o mesmo: Harry ficaria obcecado com o mistério. Só sairia daquela sala para voltar à Scotland Yard. Não dormiria e começaria a beber mais e comer menos.

     — Natallie? O que está fazendo aqui?

     A mulher ainda estava parada em frente ao mural, observando as fotos. A voz sonolenta do marido a assustou, fazendo-a se virar com as mãos sobre o peito, controlando a respiração.

     — Você precisa dormir — disse, aproximando-se dele. — Sair um pouco. Passou o dia todo aqui?

     Harry ainda lutava para manter os olhos abertos. Checou o relógio de pulso e suspirou com a constatação das horas.

     — Eu acho que sim. Tive que limpar tudo antes de usar... Nem vi a hora passar.

     — Você pelo menos comeu alguma coisa?

     — Sim, não se preocupe — mentiu, e então notou o quanto a esposa parecia cansada. — Pode ir na frente, eu já vou para a cama.

     Natallie sabia que não havia o que fazer. Harry ficaria ali a noite toda, como acontecia sempre que um caso o incomodava tanto que ele recorria ao seu escritório. Ela não podia fazer nada além de tentar mantê-lo alimentado e sano.

     A mulher saiu da sala depois de alguns segundos. Estava exausta, desgastada. Precisava dormir. Falaria com Harry no dia seguinte.

     Quando ela acordou pela manhã, porém, ele não estava mais lá.

...

27 Horas antes:

     Harry White e David Smith estavam vasculhando o apartamento de Louise Campbell quando as luzes começaram a piscar. Vermelho e azul passaram pelas cortinas e invadiram a sala principal, fazendo Harry se afastar das janelas e alertar David de que o plano inicial — que era procurar evidências e sair dali de fininho — teria de ser abortado. Agora que tinham sido pegos, discrição não era mais uma opção.

     Os dois correram, mas tiveram que parar assim que passaram pela porta. O corredor do prédio estava vazio, assim como todo o lugar. As portas de todos os apartamentos estavam fechadas, as luzes apagadas. O silêncio era tão promissor que White pôde ouvir os passos dos policiais que já subiam as escadas e apareciam no fim do extenso corredor.

     Voltaram ambos para dentro do apartamento, sempre com Harry puxando David para que o homem acordasse e o acompanhasse. Começaram a procurar por outras saídas, mas não havia muitas opções no local. O quarto de Louise — até onde Harry pôde deduzir ser o dela — tinha grades em todas as janelas. A saída da escada de incêndio estava trancada com cadeado. As janelas sem proteção davam para o completo vazio saudado pelos doze andares de altura até o chão. Harry se viu completamente sem saída.

     Do outro lado do apartamento, David também não encontrou nada, e foi então que White se lembrou da pequena janela do banheiro, que dava de cara com um beco vazio.

     O detetive correu até o cômodo, checando se era fisicamente possível passar pelo espaço ocupado pelo vitral. Estava prestes a quebrar o vidro e escapar quando a porta do banheiro se abriu. Uma luz branca bateu contra os olhos de Harry, cegando-o por um momento. O detetive levou a mão aos olhos, engolindo em seco quando reconheceu a figura policial vestida de amarelo à sua frente. Quando o outro abaixou a lanterna, White levantou ambas as mãos para mostrar que não pretendia resistir, brigar ou escapar, e disse:

     — O banheiro está ocupado.

     Assim, Harry White levou o primeiro soco da noite. O segundo veio mais tarde, quando tentou se livrar da prisão dizendo ser primo da rainha. O guarda que o prendera — e que já estava farto de suas gracinhas — parou a viatura e arrastou White para fora do carro. Estava frio, mas o detetive não se incomodou por muito tempo: o segundo soco da noite fizera seu rosto esquentar. O sangue em suas veias correu mais rápido por todo o corpo, e ele se sentiu quente, apesar das outras dores.

     Dali, Harry foi levado para a delegacia, onde ele sabia que o terceiro soco o aguardava.

...

     A bolsa de gelo pousou sobre o olho direito de Harry, proporcionando uma breve sensação de alívio ao policial. White estava trancado naquela delegacia há horas. Passara metade da madrugada em uma cela, sem nada para se distrair, apenas tentando provocar o guarda sentado na mesa do outro lado. 

     Dera seu único telefonema às duas horas, e Enzo chegou com Angelina em seu encalço às duas e quinze. Harry encarou o chefe por trás das barras e o viu libertar David. Angelina falou com um dos policiais e ele abriu a porta da cela de Harry, deixando a mulher entrar. A primeira coisa que a parceira fez ao se aproximar foi dar-lhe um tapa no ombro; depois, pediu ao guarda outra bolsa de gelo.

     — Você deve gostar mesmo de se olhar no espelho todas as manhãs e ver um machucado — Angelina comentou. — Os hematomas deixados por Bernardo Spilman nem sumiram e você já arrumou outros.

     Devens não era nada delicada com as mãos, e em menos de cinco minutos Harry desejou ter ficado ali a noite inteira ao invés de receber a ajuda dela.

     — As mulheres gostam das cicatrizes; acho que me fazem parecer rebelde — disse, evitando um gemido de dor.

     — Isso não é rebeldia, Harry, é burrice — a parceira colocou a mão dele sobre a bolsa de gelo, para que o homem a segurasse. Harry agradeceu mentalmente. — Cada vez mais eu entendo o porquê de sua esposa ser enfermeira.

     — Ah, isso é só uma feliz coincidência.

     Angelina riu, levantando o olhos para a entrada da cela, que se abrira de repente. Enzo entrou e olhou para Harry, contraindo a mandíbula, e disse:

     — Tudo certo. Podemos ir embora.

     White se levantou, olhando-o com curiosidade.

     — O que disse a eles?

     — Que você tem problemas mentais.

     Harry deu risada, mas Enzo permaneceu sério, fazendo-o parar.

     — Isso é sério?

     — É, sim. Agora vamos embora.

     White deixou a bolsa de gelo sobre o banco e seguiu o chefe até o lado de fora do prédio. No exterior, às três da manhã daquela quarta-feira, o ar estava seco e frio, fazendo os pelos da nuca de Harry se arrepiar. Enzo tinha os ombros tensos, e apesar de não ter gritado até aquele momento, trincava os dentes como se estivesse prestes a estrangulá-lo.

     — Enzo, hum... obrigado. — Harry agradeceu, tentando soar sincero.

     Ele, o chefe e Angelina não tinham andado muito e estavam parados na frente da delegacia. West olhou para o céu durante dois segundos antes de virar para Harry e assentir. Logo em seguida, antes mesmo que White pudesse digerir a informação, o chefe lhe deu um soco.

     Angelina pulou com o susto, alarmada diante da aparência calma de Enzo. O chefe tinha a mesma expressão surpreeendentemente neutra de quando ele e a mulher se encontraram ali, algumas horas atrás, com a notícia de que Harry tinha invadido o apartamento de Louise Campbell.

     — O seu carro está no pátio; você poderá buscá-lo pela manhã — Enzo falou. — Angelina vai te dar uma carona para casa.

     Então ele saiu, arrumando o sobretudo marrom e levantando a gola para proteger o pescoço do frio. Angelina esperou para se mover, dando o tempo necessário para que White absorvesse a dor em seu nariz, e quando o detetive se recuperou do choque, endireitou-se, vendo que a parceira o encarava.

     — Vai me bater também? — perguntou. — Se quiser, hoje é o dia.

     Angelina não riu de suas gracinhas. Ao contrário disso, continuou ali, com os braços cruzados, olhando-o mexer no nariz para verificar se estava quebrado.

     — Vou guardar o meu soco para se você sujar o meu carro de sangue.

     Harry olhou-a em dúvida, mas não tentou entender se era uma piada e concordou com a cabeça.

     Quando chegou em casa, passara o resto da madrugada sob os cuidados médicos de sua esposa, e, depois, enquanto tentava dormir sem sentir dor ao encostar no travesseiro, Harry finalmente tomou os remédios que recebera no dia da explosão.

...

     Não muito longe dali, Enzo chegava em casa para responder às perguntas de sua esposa e filhos. Com a profissão que tinha, aquilo não deveria ser surpresa. Enzo costumava sair de casa no meio da madrugada para atender surtos criativos de dedução de Harry White. O detetive havia de ter ideias sempre tarde da noite, já que raramente dormia quando possuía um bom mistério nas mãos.

     Mas daquela vez foi diferente. Angelina havia batido na sua porta pessoalmente, pedindo a sua ajuda. Dizia que daquela vez White havia passado mesmo dos limites. Enzo levantou, escutou as explicações sobre o ocorrido e saiu junto à detetive, querendo resolver a situação o mais rápido possível.

     Depois de tudo, quando voltou para casa, encontrou Elisie, sua esposa, aflita. Ela também tinha vários daqueles momentos em sua carreira de advogada, mas ainda se preocupava com o marido. Principalmente depois do que acontecera no Caso Ryan. Os dois constantemente pensavam em como algo do tipo poderia se repetir, levanto não só White, mas todos os outros à loucura. 

     — Você acha que é uma boa ideia deixá-lo no caso? — perguntou Elisie. Conhecia Harry e até simpatizava com o policial, mas tinha as suas dúvidas a respeito da sanidade do homem.

      Enzo suspirou.

      — Não sei, sinceramente. Ele é um dos nossos melhores detetives. Precisamos de toda a força que pudermos juntar nesse caso, porque os Spilman não são alguém que queremos decepcionar.

     Enzo tinha uma xícara de chá nas mãos. A noite era tão fria que ele precisou daquilo para ajudá-lo a se aquecer por inteiro, pois só o casacos e o aquecedor da casa não estavam dando conta.

     — Mas ainda está muito recente — argumentou Elisie. — White deveria se recuperar do Caso Ryan antes de se envolver com outro mistério. Foram dezesseis anos disso.

     — Ninguém se recupera de uma coisa dessas — foi o que Enzo disse. Parecia verdade. — Harry White é uma eterna ferida aberta, mas precisa tentar superar. Sabemos que apenas outro mistério fará isso a ele.

     Elisie pensou sobre o assunto. Tinha os olhos cansados e a garganta seca, os pés descalços gelados pelo frio. Lembrando do que tinha acontecido, o marido parecia cheio de razão. Não imaginava Enzo ou a si mesma tendo qualquer tipo de recuperação em uma situação semelhante a que Harry passou no Caso Ryan. Sentiu muito por White ao perceber aquilo.

     — Venha, vamos deitar — disse, puxando-o pelo braço.

     Ao se levantar, percebeu os dois pares de olhos espreitando atrás da coluna da cozinha. Estavam as suas duas filhas amontoadas uma sobre a outra, querendo saber o que tinha feito a mãe de sono pesado e o pai sempre cansado acordar.

     Elisie suspirou e pegou uma delas no colo; Enzo cuidou da outra. Levaram-as para as suas camas, colocaram-as para dormir, e depois seguiram para o quarto no fim do corredor, onde descansaram até o despertador tocar, pela manhã.

...


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