V I N T E E S E T E

     Harry estava parado no centro de toda a confusão.

     No joelho esquerdo, a marca quente do sangue de Robert Olsen manchava a sua calça jeans. Embaixo de suas unhas havia pequenas partículas escuras, cada uma funcionando como um flashback macabro dos momentos que o detetive vivenciara nos últimos quarenta e cinco minutos. Em seus olhos castanhos e levemente perdidos, o reflexo das sirenes e das luzes borbulhava dramaticamente. E acima de tudo isso, havia o completo silêncio.

     Ele não escutava nada. Não prestava atenção em nada.

     Todos os corpos tinham sido removidos. Digitais eram procuradas com a mesma precisão que números de sapatos eram retirados de pegadas sangrentas; analistas faziam uma avaliação de altura e peso baseando-se na silhueta vista na câmera de segurança — evidência que havia deixado todos com a expectativa de que seria possível elaborar um perfil para o assassino —, mas Harry sabia que eles não achariam nada. De algum modo, tinha certeza de que o assassino era muito mais inteligente que aquilo e que nada seria encontrado no local.

     Harry andou até a saída do prédio onde tudo aconteceu. Até aquele momento, não havia se movido muito, encontrando-se ainda em um estado quase anestésico de negação, e por isso seu corpo o traía, pesado como se ele não dormisse há dias.

     Enquanto caminhava para o lado de fora, todos os outros policiais o olhavam em uma cena que pareceu se desenvolver em câmera lenta, imitando a ficção Hollywoodiana de alguém preso no julgamento alheio, como se White já não se sentisse extremamente culpado pela última tragédia derramada sobre Londres. Apesar disso, ele estava acostumado com as pessoas o julgando, criticando seus métodos e suas táticas; achando-o arrogante e prepotente e mais uma dúzia de coisas que, no fundo, ele realmente era. 

      Nenhum deles entendia que criminosos não mereciam, necessariamente, um tratamento justo. Se eles podiam trapacear, Harry também tinha essa direito.

     Do lado de fora, a rua tinha sido evacuada e isolada, e carros amarelos, pratas e negros tomavam conta das calçadas. Pessoas em uniformes policiais e capas azuladas corriam com pressa. Fotógrafos subiam andares de prédios vizinhos para conseguir algo para suas manchetes. Harry sentiu o estômago revirar quando a primeira nuvem cinza cobriu o céu de Londres.

     — Você está bem?

     Virou-se para encontrar Angelina, que havia acabado de parar ao seu lado. Ela o olhava preocupada.

     — Ótimo — respondeu.

    — Enzo quer falar com você.

     Harry olhou para trás, vendo através do vidro da porta de entrada da clínica todo o sangue que manchava o chão branco. Em meio aos ladrilhos, pegadas vermelhas sumiam gradativamente até a calçada do lado de fora. Um garoto da perícia tirava fotos das marcas e media o seu tamanho. Harry suspirou, olhando o próprio sapato manchado de sangue.

     — É claro que ele quer.

....

     Enzo ainda não tinha feito nenhuma conexão concreta. Até aquele momento, não havia nada que ligasse Robert Olsen ou a própria clínica à Sofia Spilman e Harry White. Os arquivos dos computadores e as anotações nas agendas das secretárias tinham sido apagadas juntamente com todo e qualquer registro de clientes que o local pudesse ter. Não havia como Enzo saber que Harry estivera ali sob uma identidade falsa, nem que Sofia fora uma cliente do local. O nome Olsen, porém, era um grande chamariz de dúvidas.

     O mais irônico de tudo, talvez, fosse o fato de Harry ter sido salvo pelo Homem Mascarado, que enchera o sistema da clínica de vírus e arrancara páginas e páginas de relatórios e anotações — tudo silenciosamente e antes de invadir o consultório para matar Olsen.

      — O que fazia aqui? — Enzo perguntou.

      Com a chuva repentina, uma barraca havia sido montada do lado de fora do prédio. Ali, pessoas entravam e saíam a todo momento. Havia bolsas pelo chão, todas com logotipos e dizeres como: "Perícia", "Balística", "Coleta" e uma diversidade de outros rótulos. Enzo estava parado bem no meio, com seu chapéu marrom e o sobretudo combinando. Olhava Harry em busca de respostas.

     — É uma clínica — respondeu White. — O que acha que eu estava fazendo?

     — Eu nunca sei o que você pode estar fazendo, Harry. E apesar de eu não poder confiar em você, continuo te perguntando. Apenas responda. E me explique por qual motivo escolheu uma clínica Olsen.

     Harry respirou fundo. Cruzou os braços como se estivesse realmente incomodado com o rumo daquela conversa. Sua voz saiu baixa ao dizer:

     — Você disse que eu precisava disso para voltar ao trabalho.

     — E eu te recomendei alguém, certo? O que estava fazendo aqui? Sabe como isso é suspeito?

    Harry não podia contar a ele sobre Joseph, seu amigo adolescente e hacker. Ele não podia contar que tinha desobedecido ordens diretas e ido investigar o caso de Sofia Spilman por conta própria, e muito menos podia contar sobre as últimas palavras de Olsen. Ele ainda não sabia o que aquilo significava, e tinha medo do que poderia ser.

     — Olsen me foi indicado por um... colega. Eu confiava nele, então decidi vir aqui.

     Enzo concordou com a cabeça, visivelmente desconfiado.

     — Você pode me contar tudo o que aconteceu?

     — Eu já contei a mesma história pelo menos três vezes! Você sabe como isso é cansativo? — perguntou, impaciente. — Nós temos gravadores e câmeras para arquivar essas coisas.

     — Conte de novo, Harry. Eu quero ouvir.

     Harry suspirou, cansado. Detalhar tudo, tantas vezes e ocultando tantas coisas era realmente difícil. Mesmo Harry, que praticamente mentia para viver, estava começando a se perder.

     Mas ele conseguiu, e, ao terminar, Enzo parecia satisfeito.

     — Você se lembra bem da voz dele? — perguntou o chefe. — Acha que se escutá-la, consegue reconhecer?

     — É claro que sim!

     — E a cor dos olhos, lembra?

     — Eu estava um pouco longe. Três metros, no mínimo. Não consegui enxergar bem a cor, mas suponho que eram verdes.

     — E a arma?

     — A balística vai te dar essa resposta.

     O chefe balançou a cabeça.

     — Eu quis dizer... Por que não reagiu? Não tentou pegá-la?

     Harry ficou em silêncio por um segundo.

     — Estava longe. Três metros. Eu nunca conseguiria sem levar um tiro antes.

     Enzo concordou com a cabeça, mas assim como Harry, não acreditava em uma palavra do que o homem dissera.

     Desde o caso Ryan, um ano antes, Harry tinha dificuldades para lidar com armas. Não gostava do formato delas em sua mão, muito menos da textura e do peso. Não encostava em nenhuma se estivesse carregada. Harry nunca mais arriscaria a vida de alguém. Não depois do que acontecera no Caso Ryan. Não depois da morte de seu melhor amigo.

     Por isso, ele não tentou lutar contra o Homem Mascarado. Sabia que as coisas dariam errado, que seria muito pior do que de fato foi. Aprendera da pior forma possível que, por mais que tentasse se convencer do contrário, a humanidade nunca teria o total controle sobra as armas que criava. 

     — Eu acho melhor você ficar longe por um tempo — disse Enzo. 

     Harry levantou os olhos para o chefe. O olhar complacente que recebeu fora como um choque de realidade. Harry sabia o que estava por vir antes mesmo do chefe continuar:

     — Não só do Caso de Sofia Spilman, mas de todo o resto. Será bom para você tirar um tempo de folga, ficar longe de toda essa confusão. Só por alguns meses.

     Harry concordou com a cabeça. Não havia nada para se fazer a respeito daquilo. White até mesmo concordou, internamente, que precisava de um tempo. Que depois daquele incidente as coisas poderiam ficar confusas em sua cabeça.

cccccEle tinha acabado de perceber que, quanto mais fundo ele ia na investigação sobre Sofia Spilman, mais as coisas ficavam fora de controle. Já havia cinco corpos; cinco vidas tiradas por conta daquele mistério. Jared, Sofia, Olsen e as duas funcionárias da clínica tinham morrido por causa daquele mistério, e daquilo ele tinha certeza. Era como se alguém estivesse vigiando o progresso das investigações, como se soubessem tudo o que o homem iria fazer nos próximos passos.

     Primeiro, o porta-malas. Agora, a impressão que Harry tinha era a de que haviam deixado o corpo de Jared ali de propósito, sabendo que o detetive iria procurar. As duas funcionárias da clínica foram um infeliz efeito colateral, mas, Olsen... Este fora morto diante de seus olhos; deixado para sofrer em suas mãos.

     Se alguém quisesse o psiquiatra morto, poderia tê-lo matado antes, mas esperaram que Harry chegasse até ele para assim fazê-lo.

     Dava-lhe calafrios pensar daquele modo, mas fazia sentido. Principalmente depois do que Olsen dissera.

     Sofia sabia algo sobre Harry — talvez investigasse algum caso antigo do policial, ou obtivesse provas para um novo, ou quisesse denunciar alguém —, e a intuição dizia ao detetive que aquele fato fora um grande motivo para a sua morte.

Ele só precisava descobrir no que ela tinha se envolvido.

...

CONTINUA

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