V I N T E E Q U A T R O
Harry White estava no banheiro da Scotland Yard, encarando no espelho os hematomas espalhados pelo seu rosto. Pressionou o roxo em seus olhos com os dedos para testar se ainda doía e acabou com a dolorosa constatação de que sim. Apesar daquilo, seu nariz já não estava mais inchado, e os cortes em seus lábios quase não eram perceptíveis.
— Ah, Deus, que susto! — Alguém exclamou atrás de si. — Harry, o que você está fazendo aqui?
White viu Angelina pelo reflexo do espelho. Ela ainda estava parada perto da porta fechada do banheiro, olhando o parceiro em dúvida.
— É o banheiro.
— Sim, é. O banheiro feminino!
— O masculino não tem espelhos — deu de ombros. — E também não é tão limpo.
Angelina suspirou, vendo que a conversa não levaria a nenhum ponto relevante.
— Enzo está esperando você. E está uma fera. Por que se atrasou?
Harry pensou nos vinte e cinco minutos que levara para conseguir estacionar o carro. Era tão mais fácil quando Angelina fazia que o homem quase suspirou alto.
— Tive que resolver um problema.
A outra olhou-o, em dúvida.
— Acho melhor você se apressar.
Angelina saiu do banheiro, deixando-o sozinho. O homem voltou a encarar seu rosto no espelho, imaginando o que o esperava junto com a gritaria de Enzo: Uma punição? Suspensão? Dias trabalhando no escritório, sem poder ir a campo?
A única maneira de saber seria acabando logo com aquilo.
Saiu do banheiro e encarou a porta de Enzo, do outro lado do salão. Pessoas de terno passavam às pressas pelo seu campo de visão. Algumas carregavam pastas, outras falavam ao telefone. Um garoto empurrava um carrinho cheio de cartas. Harry deu o primeiro passo, e logo em seguida o próximo, e então estabelecera uma caminhada lenta.
Se ao menos tivesse valido a pena, ele pensou, não ligaria de sofrer as consequências. Mas o problema era justamente aquele: não tinha valido a pena. Harry não encontrara nada, a não ser um motivo para a própria suspensão e alguns hematomas no rosto.
Chegou à sala de Enzo, batendo antes de entrar. O chefe estava sentado em sua mesa, encarando a porta com certo ressentimento. Usava a sua gravata amarela, o que indicava que ele não estava de bom humor. Seu pescoço possuía as marcas de um homem que não sabia se barbear direito, cheio de pequenos cortes e pelos encravados.
Angelina também estava presente. A mulher não se sentara na cadeira de visitas da mesa do chefe: permanecera parada do lado oposto da sala, escorada contra uma estante de livros de Ciência Forense. A parceira o olhou com solidariedade quando Harry entrou.
Enquanto se sentava, White só conseguia pensar em como tudo aquilo era injusto. Ainda não entendia como tinha acontecido. Era para ele ter provas contra Louise Campbell naquele momento; era para ter todas as respostas que procurava. Mas ao invés disso, ali estava ele: Sentado do outro lado da mesa do chefe, sentindo seus ouvidos cansarem da voz de Enzo.
Já havia se passado vinte minutos de sermão, e apesar de Harry permanecer quieto, balançando a cabeça, nada que West estava dizendo parecia-lhe importante. Ele não prestou atenção em nenhuma das palavras do chefe, até que uma em especial surgiu:
— Suspenso!
A palavra pairou no ar junto à poeira da mesa de Enzo, que se levantou quando o homem bateu as mãos sobre a madeira. Elas caíram nos ombros de Harry White com o peso exato das sílabas e consoantes entre as oito letras, todas extremamente irritadas com a entonação calejada da voz do chefe.
Em seguida, a tensão que tomou conta da sala foi suficiente para Harry perceber a seriedade da situação, porém não o bastante para fazê-lo se importar tanto quanto Angelina, que soltou um suspiro contido.
Do seu lado da mesa, Enzo olhava para Harry como se esperasse uma resposta, exibindo uma expressão que muitos julgariam decepcionada, mas que para White era a definição de raiva. O chefe batia com a ponta do dedo indicador sobre os papéis largados em sua mesa, esperando a reação do detetive mais novo. Quando o tempo passou e nada veio, acabou por desistir e falar:
— Por que fez aquilo?
Harry abriu a boca, mas voltou a fechá-la quando a falsa confusão venceu a ideia de uma resposta honesta.
— Pensei que estivesse explícito: eu queria provas contra Louise Campbell, então fui procurar.
— Por que não pediu um mandado? Você nem mesmo me consultou!
— Seria muita burocracia.
— Era só me telefonar!
— Pouca burocracia, então.
Os músculos da face de Enzo se contraíram, e quando o homem respirou fundo por mais de três segundos, Harry notou que estava a poucos passos de ser demitido. Preparou-se para a gritaria do chefe, o sermão e as punições, mas só o que veio foram as seguintes palavras:
— Você está fora do Caso Spilman por tempo indeterminado.
— O quê?! — tanto Harry quanto Angelina se assustaram.
— Você está diferente, Harry, desde Ryan. Os dois últimos casos em que trabalhou viraram uma bagunça, uma completa falta de respeito com todos os seus colegas e com a própria Scotland Yard. Há meses você vem agindo por impulso, sem pensar em consequências, como se não houvesse nenhum tipo de punição.
— É o meu jeito de trabalhar!
— Não, não é! Você trabalha de maneira meticulosa e até mesmo insana, mas não imprudente. É um bom detetive, Harry, e tem métodos que funcionam, mas não pode continuar assim. Levar uma mulher para a sala de interrogatório sem me consultar? Invadir um lugar para procurar provas sem um mandado? Onde estava com a cabeça?!
— Ela sabia quem eu era! Já nos conhecíamos...
— Negou um advogado quando a Srta. Campbell solicitou um — cortou-o. — Levou dois colegas a cometer inflações...
— Tecnicamente, eles foram por vontade própria, e, tecnicamente, ambos não fizeram nada. Apenas acompanharam.
— E a arma?
Harry fechou a boca, recostando-se na cadeira.
— Que arma?
— A arma que encontraram com você quando foi preso. Onde a conseguiu?
Harry fez bico, pensando se deveria ou não contar a verdade. Sabia que não tinha como escapar. A prova estava lá, física e acusadora. A única questão era a de se ele poderia se divertir com aquilo.
— Ah, você sabe...
Enzo estreitou os olhos.
— Não, eu não sei. O quê?
Harry deu de ombros.
— Era a sua arma. A que guarda na sua mesa.
Enzo arregalou os olhos por um momento. Em seguida, abriu a terceira gaveta de sua escrivaninha e vasculhou freneticamente por entre os papéis. Em um segundo ele parou e suspirou aliviado, logo depois se voltando para Harry com explícita irritação. A arma estava na gaveta, onde sempre estivera. White mentira mais uma vez.
— Eu sabia que você tinha uma arma em algum lugar da mesa... — confessou o mais novo, correndo os olhos pela gaveta ainda aberta. — Mas não fazia ideia de onde, exatamente. Agora já sei onde devo procurar em caso de necessidade — sorriu. — E Angelina, você me deve vinte libras!
Enzo olhou de Harry para a mulher, que deu de ombros, apesar de estar visivelmente envergonhada.
— Ela achou que você guardava na estante, dentro de um livro falso — explicou White. — Eu disse que era muito clichê e que você a guardava na mesa. Acabamos por apostar.
— Como conseguiu? — perguntou o chefe, impaciente.
— Ah, sempre que você se sente ameaçado de alguma forma, olha para a parte de baixo de sua escrivaninha. Com o tempo, percebi que alguma coisa ali te proporcionava segurança; alguma coisa que você poderia usar para se defender. E eu estava certo.
Enzo respirou fundo.
— Eu estava falando da arma. Como a conseguiu? — repetiu.
Harry pareceu decepcionado com a mudança de assunto. Adorava falar de suas teorias, principalmente quando aquilo o afastava de alguma confusão.
— Eu sou policial, não sou? Faz parte da profissão.
— Você não tem permissão para portar uma arma. Onde a conseguiu?
White se acomodou na cadeira, cansado.
— Na sala de evidências. Peguei de uma das caixas.
Enzo olhou o outro por alguns segundos, e pareceu lamentar.
— Se você parasse para escutar o que acabou de dizer, Harry, entenderia a decisão que estou prestes a tomar.
E com isso Enzo abriu uma das gavetas de sua mesa, puxou um cartão e um pedaço de papel e começou a anotar coisas. Harry observou e, mesmo de ponta cabeça, pôde ler um número de telefone, um nome e um título.
— Que decisão? — decidiu perguntar, querendo estar errado.
Infelizmente, ele nunca estava.
— Psicólogo. Você vai se consultar três vezes por semana, durante três meses, pelo menos. Vou conversar com o seu médico e acompanhar o tratamento; quando estiver pronto, poderá voltar ao trabalho.
— Mas eu já tenho um psicólogo! Todos aqui têm um, são as regras.
— Você nunca compareceu a uma consulta, Harry. Mas agora vai! Caso contrário, será suspenso para sempre!
Por um minuto, Harry esperou uma risada. Esperou até mesmo câmeras, mas nada aconteceu. Apenas o desconfortável vazio, de todos os lados e modos, confirmando que o seu pior pesadelo tinha chegado.
— Isso é brincadeira? — perguntou.
— Estou rindo?
— Poderia estar.
— Não estou, porque não é brincadeira. Se quiser, aceite, consulte-se, esforce-se; se não quiser, está suspenso por instabilidade psicológica e emocional.
— Não pode me acusar de instabilidade emocional! Eu estou bem, você pode ver. Isso requer muito mais do que um pequeno erro de conduta.
— Harry, você e eu sabemos que o Caso Ryan te afetou de alguma forma. Nunca fiz perguntas porque não é da minha conta, mas não me faça investigar a sua vida para descobrir. Aceite a oportunidade de salvar o seu emprego e a si mesmo.
Harry olhou para o cartão que Enzo estendeu. O homem já não parecia mais bravo, o que deixou White desconfortável, pois ele preferia quando o chefe gritava do que quando tentava ser algum tipo de amigo. Suspirou e puxou o cartão da mão de West, levantando-se da cadeira e saindo da sala com certa brutalidade, como uma criança mimada.
Angelina também foi e o seguiu durante todo o percurso dentro daquele andar. Quando estavam dentro do elevador, sozinhos, ela finalmente perguntou:
— O que eu não sei sobre Ryan?
Harry engoliu a seco, incapaz de olhá-la. Sentia-se esgotado e injustiçado de tal forma que quase cogitou desistir de Scotland Yard. Sabia, porém, que não podia fugir de Angelina para sempre.
— Não é importante — respondeu.
— Parece importante.
— E eu estou dizendo que não é!
O grito veio de forma inesperada, ecoando pelo espaço minúsculo e vazio do elevador. As paredes metálicas zumbiam em seu ouvido, e Angelina percebeu que Harry estava em seu limite.
— Sabe que posso descobrir por conta própria, se eu quiser — disse ela.
O elevador parou naquele momento. Mais duas pessoas entraram e o ambiente pareceu pequeno demais, mesmo que não estivesse lotado. Harry começou a se sentir mal, um tanto zonzo, olhando para o cartão que Enzo lhe entregara. Sentia-se humilhado ao cogitar a possibilidade de ter algo errado com o seu cérebro: ele era o seu bem mais precioso.
Um andar depois, quando todos saíram, faltava apenas duas elevações para o térreo e para Harry sair daquele prédio de vez. Angelina permanecia calada, ao seu lado, e a última frase dita pela mulher continuava a rondar a cabeça do detetive.
— Não há nada para se saber, Angelina. Eu matei um homem, e isso não é algo fácil de se lidar, mesmo com a "ajuda" oferecida pela Scotland Yard. Não há nenhum segredo aqui.
Angelina passou a lingua pelos lábios. De alguma forma, sabia que Harry não estava dizendo toda a verdade.
— Você vai ver esse psicólogo? — perguntou, e parecia um acordo.
Harry pensou sobre o assunto, voltando a olhar o cartão em sua mão. O endereço era de um lugar no centro de Londres; um prédio que ele passava na frente de vez em quando. Percebeu que não era nenhum psicólogo da Scotland Yard, mas sim um médico particular. Talvez Enzo não quisesse que aquela história viesse à público, ou que ganhasse repercussão dentro do prédio em que trabalhavam.
Harry sabia que não cumpriria com o acordo, mas respondeu:
— Vou.
Angelina assentiu, e, naquele momento, Harry soube que enquanto a parceira acreditasse naquela mentira, não ultrapassaria nenhum limite. Ela confiava em White, e apesar de ser uma pessoa curiosa, ficaria longe de qualquer coisa que ele dissesse ser inalcançável, mesmo que permanentemente.
A porta do elevador se abriu, libertando os dois do confinamento. Ambos andaram cada um para uma direção, seguindo seus caminhos como se nada tivesse acontecido.
Parecia um tanto injusto, sim, para Harry, olhar Angelina seguir com as investigações sozinha. Não havia nada que o homem pudesse fazer enquanto estivesse preso ao seu suposto problema psicológico. Mesmo assim, esperar três meses para talvez voltar era quase uma tortura. Poderia acontecer muita coisa naquele tempo; seus colegas perderiam detalhes que Harry nem podia imaginar.
Seria um desperdício de tempo e recursos, que nunca os levariam a nada, pois não saberiam onde procurar. Precisavam de Harry, e agora ele estava fora do caso.
Mas, bem, o detetive sempre poderia recorrer aos seus próprios métodos de investigação
...
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