U M

     Em Londres, muitas vezes as coisas pareciam piores do que realmente eram. A teoria que Harry White tinha sobre aquele fenômeno consistia na ideia de que a cidade tinha uma ligação direta com as pessoas que passavam por ela. Se algo ruim acontecia, Londres sentia do mesmo jeito que uma mãe quando o filho estava em apuros.

     Desse modo, Londres sentiu a morte de Sofia Spilman. Profundamente. E a noite de investigação que os detetives tiveram naquelas primeiras horas de caso foram as piores de suas carreiras. O frio era insuportável, o céu não continha estrelas e, a chuva, que caía em grandes quantidades, acabou levando a maior parte das evidências antes mesmo que a polícia conseguisse montar a tenda de proteção sobre o corpo de Sofia Spilman.

     Foi um caos iminente, desde os pequenos detalhes.

     Enzo parecia preocupado com aquele caos quando Harry se aproximou dele, poucas horas depois do começo das investigações. A perícia tinha o apartamento de Sofia em mãos para separar evidências e coletar resíduos, mas apesar de aquele ser o procedimento padrão, West falava o tempo todo que as coisas andavam lentas demais. Ele só ficou tranquilo depois que a maior parte das provas terminaram de ser catalogadas e, mais precisamente, quando o corpo da vítima foi enviado ao necrotério. Com essas duas coisas resolvidas, a equipe começou a trabalhar na junção de fatos e no interrogatório dos vizinhos.

     Pela manhã, com a maior parte das tarefas concluídas, as coisas continuavam caóticas, mas Harry White evitava pensar sobre aquilo. Era o tipo de desastre iminente que ele ignoraria até onde fosse possível, deixando que Londres sentisse o seu luto sem a ajuda daquele detetive bêbado, cansado e estressado — e ela o fazia muito bem, por sinal.

     Toda a cidade, as pessoas e as construções pareciam mais cinzas naquela manhã. O café da rua Chiltern não mudava seu cronograma desde 1972, quando foi inaugurado, mas as portas estavam fechadas quando Harry saiu do prédio de Sofia e acendeu o último cigarro do seu último maço. Havia repórteres sentados embaixo do toldo verde musgo do estabelecimento fechado, cansados, provavelmente sedentos por notícias que não eram dadas há muitas horas.

     — Detetive White, tem alguma novidade sobre o caso?

     Demorou, mas o primeiro repórter notou a presença de Harry. Ele chegou ao lado do policial sem grandes afobações, mas usando um tom de voz alto que não parecia combinar com aquela manhã fúnebre. White, que estava cansado, sem dormir há mais de vinte horas, tinha o humor ácido característico seu no ápice do alcance. Por isso sorriu, virou para o repórter e disse:

     — Trazer novidades não é o seu trabalho?

     Os repórteres sentados embaixo do toldo riram. Já conheciam Harry White e esperavam por aquilo. Não eram como aquele pobre novato confuso parado ao lado do detetive, com sua câmera e bloco de papel em mãos, esperando por alguma resposta útil.

     — Sobre Sofia, ela se suicidou ou...

     — São cinco horas da manhã de um sábado — o detetive cortou — poupe energias, garoto. Você vai precisar para mais tarde.

     Harry o deixou para trás, desceu a rua Baker e procurou o carro que dirigia desde que tinha vinte anos de idade — presente do seu pai por ter entrado na polícia com sucesso e louvor. O Dodge Charger 1979 na cor preta quase cinza pela poeira acumulada estava exatamente onde ele deveria estar: perto do museu Sherlock Holmes, com uma multa presa sobre o para-brisa, apenas esperando que seu dono chegasse e percebesse que além de ter parado em local proibido, havia esquecido de pagar a taxa de congestionamento com antecedência.

     Agora Harry tinha mais dois problemas para lidar.

     — Mas que merda — xingou, jogando a multa fora. Então olhou o guarda que sempre ficava na frente da porta 221B e perguntou: — Você vê muitas multas por aqui?

     Ele negou com a cabeça.

     — Todo mundo sabe que é proibido estacionar aqui.

     White riu. Nunca soube se foi mesmo uma piada, mas achou graça. Então entrou no carro e, com a cabeça latejando, dirigiu até a sua residência em Brixton, menos de dez minutos de distância dali, torcendo para não dormir no volante enquanto pensava sobre o Caso Spilman a suas peculiaridades catastróficas.

...

     A residência dos White era a única da rua Jelf que tinha uma porção de rosas plantadas no pequeno jardim de entrada. Logo atrás delas, colado na janela de vidro da sala, estava um adesivo Labour (do partido trabalhista do Reino Unido) que Harry havia deixado um jovem entusiasta colar por £5 a semana e que Natallie, sua esposa, prometera arrancar na primeira oportunidade que aparecesse.

     Era uma residência normal, como todas as outras da região, no mesmo padrão dois andares de pintura branca e portãozinho de ferro na frente, e mesmo assim se destacava do restante das outras casas. Tudo porque, de um jeito ou de outro, assim como Londres sentia quando uma alma se perdia como um filho no mercado, ela também sentia quando esse filho criava raízes inseparáveis.

     Era como se Harry White nunca fosse sair dali.

     E sua esposa também. Por mais que tivesse nascido na Irlanda, numa pequena vila cheia de outras pessoas como ela, Londres sempre se mostrou o único lar possível para Natallie White. A cidade foi como uma revelação cheia de boas surpresas quando a mulher saiu de casa para ir morar com a tia em Brixton, aos dez anos de idade, após descobrir que não poderia ser a enfermeira que sonhava se continuasse morando tão longe de tudo o que amava.

     Harry White costumava pensar naquela Natallie de dez anos quando via a esposa dentro do seu uniforme de enfermeira. Ela sempre parecia tão cansada, e, ao mesmo tempo... Feliz. Muito parecida com ele na polícia, ou com ele depois de quatro dias sem dormir para resolver um caso. A diferença era que, de um modo ou de outro, os motivos do detetive soavam egoístas quando comparados aos dela. Natallie queria ajudar pessoas; Harry gostava de se divertir. Talvez os White, algum dia, chegassem a fazer um pouco dos dois.

     Harry deixou o sobretudo negro sobre o cabide na entrada da casa, vendo Natallie sentada na mesa da pequena cozinha dos White com uma xícara de chá na mão. Ele a beijou na testa, foi até o buli sobre o fogão e misturou um pouco do chá remanescente com o pior uísque da Inglaterra. Então se sentou ao lado da esposa e bebeu goles demorados, esperando que aquilo o fizesse acordar. A intenção do gosto horrível era exatamente aquela.

     — Harry?

     — Oi?

     Não havia percebido que a esposa falava com ele.

     — Você está bem?

     — Estou, sim. Só... Um pouco cansado.

    Natallie passou os dedos pelo lado direito do rosto do marido. Só então ele levantou os olhos para ela.

     — Sofia Spilman era muito jovem. É nisso que está pensando?

     Ele riu. Sempre se sentia um monstro perto dela. Harry White vinha tendo pensamentos egoístas desde que encontraram o corpo de Sofia, sem nunca pensar, de fato, sobre a vítima. Era um costume, na verdade, algo que se adquiria com tempo dentro da profissão. Mas não deixava de se culpar.

     Ainda bem que tinha Natallie para lembrá-lo daqueles sentimentos humanos e não policiais de vez em quando.

     — Não. Na verdade, eu estava pensando em como tudo vai virar um inferno.

     Natallie suspirou, se afastando.

     — Recebemos o corpo dela e, em apenas vinte minutos após isso, já tínhamos uma dúzia de repórteres perguntando sobre a autópsia para todos os médicos que saíam do hospital. Realmente, querido, vai ser complicado. Mas você vai lidar com isso.

     Harry sorriu. Então Natallie retirou a xícara com o drinque anti-sono de suas mãos e jogou na pia. Disse que ele precisava — e merecia — dormir, o puxou para o andar de cima da casa e deitou alguns minutos com o marido ao seu lado até que o despertador a mandasse levantar para ir ao trabalho.

     Harry acordou horas depois, sozinho, completamente descansado, e pela luz do sol batendo fraca contra a cortina do quarto já devia ser fim de tarde. Ele sentou na cama, olhou o celular e mensagens começaram a brotar, todas de Enzo West.

     O chefe tinha novidades sobre o Caso Spilman.

...

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top