T R E Z E
O característico cheiro de Formol impregnava cada parte do necrotério. Steven e Harry sentiam os narizes coçar enquanto estavam parados cada um de um lado de Angelina, ambos tentando não comentar sobre o fato de ela ter cedido à chantagem emocional de David e permitido que o homem ficasse no carro. Como sempre.
Quando cansou de fazê-los esperar mais alguns cansáveis minutos, o legista responsável por atendê-los saiu de trás de uma cortina branca e puxou o material que cobria o corpo de Sofia Spilman. O pálido e nu exposto deixou Steven incomodado, e ele recuou alguns centímetros quando a visão do ferimento na cabeça da garota entrou em seu campo de visão.
Harry e Angelina permaneceram imóveis.
— A parte de trás da cabeça dela foi completamente danificada pelo impacto — o legista colocava as luvas enquanto falava, o barulho do látex batendo contra a pele machucando os ouvidos de Harry. — Se não fosse pelo segundo ferimento, que na verdade é o primeiro, eu diria que ela se suicidou.
O homem ergueu a cabeça de Sofia, deixando que os policiais vissem do que ele falava. Harry já tinha percebido aquele fato na noite em que acharam o corpo, mas por algum motivo inclinou-se junto de Angelina e Steven para enxergar melhor. Queria entender enquanto ele falava sob a perspectiva médica.
Não havia mais sangue, apenas os ossos de seu crânio amassados, os cabelos inconfundivelmente ruivos e o cheiro cada vez mais forte do corpo em decomposição. O segundo ferimento agora era mais visível e Harry teve vontade de vomitar com a pele vermelha sobressaindo do couro cabeludo de Sofia.
As luvas ao redor das mãos de Harry White faziam-nas parecer mais quentes do que realmente estavam. O pó de amido que tiveram de passar para que elas entrassem com facilidade também caíra sobre seus sapatos, e o detetive se distraiu com aquilo, sempre pensando em como era difícil não deixar vestígios aonde quer que passasse. Era uma maldição do ser humano, e ele contava com aquilo para resolver o caso.
— Alguém bateu na cabeça dela — o médico disse. — Algo pequeno, eu acho. Não posso dizer muito, pois o impacto dos andares afetou a conclusão, mas eu diria que usaram o cano de uma arma, um taco de golfe... Alguma coisa do gênero.
— Um taco de Golfe e uma arma são duas coisas bem diferentes — Harry argumentou. — Não pode ser mais exato? Ajudaria muito.
O tom rude que o homem usou fez o médico levantar os olhos, encarando-o com certa impaciência. Harry cruzou os braços e manteve a postura, esperando uma resposta. Mas a verdade, ele sabia, era que não haveria uma muito agradável.
Harry, pra variar, não simpatizara com o médico e queria George, o legista chefe que sempre fora extremamente competente, de volta. Uma pena, no entanto, que no momento o seu preferido estivesse de férias.
— Como eu disse antes — o legista recomeçou. — O impacto quase destruiu o crânio dela. É muita sorte, aliás, que tenhamos algo pra estudar. Vai ter que se contentar com o que temos.
Harry bufou, nem um pouco contente com a incompetência do outro homem. Por algum motivo, ele achava que tudo não passava de má vontade; que se o médico quisesse ele poderia dar mais informações. Harry sempre pensava o pior das pessoas.
— E o garoto? — Angelina perguntou.
O legista andou até a maca ao lado, sendo acompanhado pelos três policiais. Descobriu o corpo de Jared, e esse tinha uma linha cortando toda a extensão de seu tronco.
— Tiro à queima roupa no peito, direto no coração. Nada muito enigmático. A bala já foi mandada para a balística e a arma usada será reconhecida. Dependendo de qual for, podemos comparar com os ferimentos de Sofia e ver se ela realmente foi a responsável pelo primeiro ferimento em sua cabeça.
Um momento de silêncio tomou conta do lugar. Angelina, Harry e Steven pensando no que poderia levar alguém a atirar em uma pessoa e, ainda com a arma, jogar outra de cima de um prédio. Eram muitas teorias, claro, uma mais óbvia que a outra, mas no fim a pergunta que mais atormentava era: qual a relação de Jared com Sofia Spilman? Teria ele morrido por efeito colateral ou também estava planejado?
— É tudo o que tem? — Angelina perguntou, por fim.
O médico fez que sim com a cabeça. Harry olhou uma última vez para o corpo de Sofia. Os cabelos ruivos dela espalhavam-se pela maca, seu tom vermelho chegando perto do macabro quando contrastado com a pele azulada e sem vida. Ela tinha hematomas roxos pelo corpo, o que fez Harry se lembrar de uma coisa:
— E as marcas? — apontou para Sofia. — São de luta?
— Acredito que seja do impacto com o chão, mas é possível que ela tenha lutado com alguém antes de morrer.
— Você percebeu que, de todas as perguntas que fizemos, você só soube responder uma? — Harry estreitou os olhos. — Você ao menos tem um diploma?
— Harry! — Angelina chamou a atenção dele, o tom de voz mais baixo do que o merecido. — Desculpe o meu parceiro — ela se virou para o médico. — Ele está tendo um dia ruim.
O homem olhou de Angelina para Harry, em dúvida sobre o que realmente acontecia ali. Já ouvira falar de Harry White diversas vezes, mas nunca tivera o desprazer de conhecê-lo. Felizmente, estava ali apenas para cobrir as férias de George, o legista chefe, e se tudo corresse bem, nunca mais iria precisar olhar para a cara do homem, então decidiu que era melhor ignorar e aceitar as desculpas da bela mulher.
Os policiais saíram do necrotério após mais algumas perguntas irrelevantes. Harry mantinha o rosto sério, em seu habitual péssimo humor, enquanto Angelina e Steven caminhavam à sua frente, conversando sobre os fatos. As marcas no corpo de Sofia pareciam ser aceitáveis para eles na condição da queda, mas Harry discordava daquilo.
Até onde pudera ver, os joelhos da menina tinham sido quebrados em pedacinhos com o impacto; sua cabeça fora quase completamente amassada, os cotovelos contorcidos. O que meras marcas roxas estariam fazendo ali, no meio de tanto caos? Para ele, só podiam ser resultados de algo menor; algo que aconteceu antes da queda. Uma briga.
Andaram para fora do hospital, encontrando David no estacionamento, mexendo no celular. Harry sentou no banco do passageiro do segundo carro enquanto Steven se juntava a David no primeiro. Resolveram ligar para Enzo, informando que a visita ao necrotério não fora, de todo, uma grande ajuda, e ele disse para prosseguirem com as investigações. O problema, claro, era que a linha tênue em que andavam acabava exatamente ali. Eles não tinham mais nada.
— Podemos ir até a faculdade dela — Harry optou. — Falar com os amigos de Sofia.
— Enzo mandou esperar as gravações da psicóloga — Angelina suspirou. — Assim, se ela tivesse algum inimigo no meio do grupo de colegas, nós saberíamos pelas confissões e já poderíamos ficar de olho.
Harry suspirou. Fazia sentido, de certo modo. Eles tinham uma vantagem que nunca tiveram em nenhum outro caso: possuíam a própria vítima. Tinham todos os pensamentos de Sofia arquivados em gravadores no fundo de uma gaveta. Poderiam estudá-las e saber quais eram as pessoas que a garota não gostava; os lugares que frequentava e todos os seus medos e inseguranças.
Vendo por esse lado — o lado de que seria muito mais fácil investigar com as gravações em mãos — Harry concordou. Angelina ligou o carro e saiu pelo estacionamento, indo para o escritório. O trabalho, acima de tudo, não tinha acabado.
...
O velório de Sofia Spilman foi um caos. Harry, como sempre, não comparecera. Ele tinha o costume de não se envolver naquele tipo de cerimônia. Mesmo sabendo que era importante e que o assassino provavelmente estaria lá, o homem não foi, deixando Angelina, Steven e David fazerem isso enquanto ele ficava no escritório escrevendo mais relatórios, dessa vez sobre a visita ao legista.
A tarde passou enquanto ele estava lá. Em algum momento chamou Anderson e fez o menino começar a escrever o que ele ditava, completamente cansado pelos exatos sete minutos em que ficara elaborando a primeira parte dos documentos. Harry sentou no chão do escritório, embaixo da janela, onde um filete de sol nascia, e repassou os dados enquanto o menino escrevia, dedicado.
Mesmo depois de dois dias Harry ainda se lembrava de todos os detalhes. Dos ferimentos de Sofia ao corte em Y no corpo de Jared. Mas aquilo ele não precisaria especificar, porque havia os documentos do legista para colocar no arquivo. O que ele tinha que especificar, na verdade, eram respostas incertas para perguntas desesperadas. Não sabia como colocaria que as marcas roxas eram da queda, porque não concordava com aquilo, então mandou que o menino abrisse dois parágrafos com as duas opções.
Estavam quase no fim quando Angelina, Steven e David chegaram. Pareciam cansados dentro de seus ternos negros e sapatos polidos. Os três entraram no escritório e sentaram em suas mesas, ficando em silêncio, olhando para o nada por pelo menos sete minutos.
— Não me digam que mais alguém morreu... — comentou Harry, brincando, mas no fundo com medo de estar certo.
— Não — respondeu Angelina. — Por pouco.
— Os repórteres estavam malucos — disse David, finalmente parecendo acordar. Seu tom de voz baixo e quase desesperado chegaria a ser cômico se não fosse tão sincero. — Quase invadiram o cemitério. Teve muita confusão.
— Não conseguimos conversar com muita gente — lamentou Steven, o único realmente calmo. — Pareciam todos inalcançáveis. Se o assassino estava lá, provavelmente riu muito da nossa cara.
— Provavelmente está rindo até agora — corrigiu Harry, levantando-se do chão. — Precisamos daquelas fitas logo. Sem elas ainda seremos motivo para muita risada.
— Amanhã — Angelina o tranquilizou. — Já está tudo combinado! Louise Campbell, psicóloga da famílai, nos dará as fitas e então poderemos prosseguir. Até lá teremos que continuar procurando esse garoto, Charlie, e tentando conectar os elementos da cena do crime com tudo o que o legista nos disse.
— Ou seja: não faremos nada — Harry bufou, ainda inconformado. — Continuamos parados.
— Vamos para casa — Steven disse, visivelmente cansado. — Foi um longo dia, cheio de decepções. Tenho certeza de que amanhã será melhor.
David concordou, mas tanto Angelina quanto Harry estavam céticos. Alguma coisa dizia a eles que, no Caso Spilman, nada nunca ficaria melhor. Coisa que os lembrava, a todo momento, que o Caso Ryan fora exatamente daquele jeito.
O modo como as coisa terminaram um ano antes, contudo, não os animava; não os deixava esperançosos e, com certeza, não os fazia acreditar que o amanhã seria um dia melhor.
...
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top