O N Z E

     O trabalho que os funcionários dos Spilman tiveram para conseguir puxar Bernardo para longe de Harry White foi o suficiente para convencer qualquer um de que o homem era inocente. Angelina nunca havia presenciado reação tão extrema a um comentário do parceiro, e olha que ele tinha um longo histórico de frases inconvenientes ditas em momentos mais inconvenientes ainda.  

     Por isso, quando finalmente separados, Angelina pediu para que Harry e Bernardo seguissem para cômodos diferentes. Só assim ela teria a paz necessária para continuar conversando com pelo menos uma parte da família Spilman sem interrupções, aborrecimentos ou mais socos. Era um momento delicado que exigia o afastamento do detetive que a acompanhava como parceiro há anos e sempre, sem exceções, acabava dizendo algo inconveniente em momentos frágeis. 

     Harry não ligou de ser dispensado. Odiava aquela parte chata do procedimento tanto quanto odiava a dramatização por trás das tentativas de colocar um pouco de emoção e verdade em interrogatórios rotineiros. Ninguém entendia que usar a tensão e o limite do luto e da perda era uma ótima ferramento para se arrancar verdades, por mais cruel que aquele procedimento parecesse, e a fraqueza diante das prioridades emocionais o irritava. 

     Seria muito mais lucrativo que Angelina conduzisse a conversa com os Spilman sem a presença do sempre odiado companheiro de investigação. Desse jeito Harry poderia, numa excursão privilegiada e não supervisionada, observar com calma todos os pequenos detalhes que transformava a mansão dos Spilman em algo tão naturalmente dramático. 

     A voz de Angelina ainda pedindo desculpas pelo parceiro ecoava do andar debaixo, passando pelos dutos do aquecedor e subindo todos os andares da mansão. De maneira clara, ela se esforçava para reconquistar a confiança de Constance, contando como White havia recebido um treinamento diferente por ter se formado nos Estados Unidos e usando da velha rivalidade entre os ingleses e os americanos para ganhar a empatia da mulher.

     Harry deixou as desculpas de Angelina para focar na missão de coletar informações importantes pela casa dos Spilman. Ele sabia que sempre que encontrava dificuldades e escândalos automaticamente encontrava respostas. Era como um círculo vicioso. O único e real impedimento para os seus planos era o fato de que Angelina o havia mandado esperar no carro e, se ela descobrisse que fora desobedecida, provavelmente terminaria de quebrar o nariz do detetive por conta própria. Ele até mesmo se arrependeu de ter rasgado um pedaço de uma cortina dos Spilman para usar na tarefa de estancar o sangue do nariz machucado. Aquilo provavelmente o colocaria em apuros caso alguém percebesse a sua travessura. 

     Mas os Spilman certamente não sentiriam falta de um pedaço de cortina, não é?

     De repente, uma porta entreaberta chamou a sua atenção, atrapalhando os pensamentos sempre rápidos do detetive. Harry viu um rastro de luz esbranquiçada desenhando o corredor e andou até a porta que permitiu aquela passagem, parando à sua frente antes de encostar as pontas dos dedos contra a madeira e empurrá-la com cuidado. Ele não escutou nenhum rangido daqueles rangidos característicos das casas mais antigas de Londres, mas não era preciso muita movimentação para ser notado em um lugar como aquele.

    Assim que a porta se moveu e ele pôde ver o interior do cômodo, Marie Spilman levantou o rosto bruscamente, como quem leva um susto, e olhou na direção de Harry. O homem permaneceu parado, confirmando o delicado palpite de que tinha chegado ao quarto da mais jovem dos Spilman.

     A garota estava sentada em uma cama de casal extremamente grande, tão alta que seus pés não tocavam o chão e suas sapatilhas pendiam nas pontas de seus dedos. Harry esperou que ela gritasse; que ela saísse correndo ou que o empurrasse e então batesse a porta em sua cara, mas a única coisa que aconteceu foi o som baixo, porém firme, de sua voz tomando o ambiente:

     — Você está sangrando.

     Harry olhou para o pano ensanguentado em suas mãos, depois para ela, e então deu de ombros.

     — Seu pai — foi o que ele disse, esperando que não tivesse de explicar.

     Uma ruga se formou entre as sobrancelhas de Marie enquanto ela deixava a cabeça pender levemente para o lado, observando-o.

     — Você deve ter merecido. Meu pai não costuma perder o controle.

     Harry adentrou o quarto. Um ou dois passos que achou ser o suficiente para demonstrar que não pretendia sair dali agora que tinham iniciado uma conversa. Marie não pareceu se incomodar e continuou sentada, com as mãos sobre o colo, brincando com os próprios dedos.

     — Ele é um bom homem. — Harry disse.

     Ela pareceu intrigada.

     — Você não ficou com raiva? — perguntou. — Digo, por... — e apontou para o próprio nariz.

     Harry riu.

     — Se eu fosse ficar com raiva de todo mundo que já me deu um soco, querida, não sobraria uma única pessoa para gostar.

     Marie sorriu fraco, curiosa com o homem. Harry se aproximou mais, sentando-se no chão, sobre o tapete felpudo rosa que a menina tinha na frente da cama. Cruzou as pernas e a olhou, estabelecendo aquele contato visual que muitos julgariam perigoso se o que ele quisesse, na verdade, não fosse simplesmente fazer uma pergunta:

     — Vocês eram próximas?

     Marie desviou o olhar, voltando a encarar as próprias mãos. Parecia tão pequena e tão frágil no meio daquele quarto enorme que Harry cogitou, por um momento, simplesmente deixá-la em paz. Mas ele sabia que não podia fazer aquilo. Ignorar Marie como Angelina ignorara era um erro. A menina obviamente seria uma das chaves para achar o assassino de Sofia, caso ele não fosse um sádico maluco e sim alguém conhecido. Ela era exatamente a pessoa que eles procuravam: quem conhecia Sofia melhor do que ninguém. 

     A menina fez que sim com a cabeça.

      — Marie, eu vou ser sincero com você — o homem mudou o tom de voz, antes perto do delicado. Agora havia seriedade e tensão, uma tentativa de transparecer o que acontecia. — Nós não temos muita coisa sobre o assassino da sua irmã — então observou enquanto ela levantava os olhos, motivada pelo desespero e pelo sentimento de injustiça.

     Ele a entendia, afinal. Ter o que muitos diziam ser o melhor detetive de Londres sentado à sua frente, praticamente dizendo que seria difícil achar quem matou a sua irmã mais velha, podia, sim, ser revoltante. Muitas pessoas gritariam com ele; exigiriam justiça e esforço. Marie apenas apurou os ouvidos.

     — Vou precisar da sua ajuda. — Harry confessou. — Você entende?

     — Eu não sou burra — ela não usou um tom de voz malcriado, mas pareceu irritada diante da postura do homem. — E não me trate como uma criança, policial. Não haja como se eu não entendesse tudo o que está acontecendo.

     Harry sorriu. Estava começando a realmente gostar dela. Podia ver um brilho diferente em seu olhar; uma espécie de chama movida por ódio e mágoa. Marie não gostava dele, mas ignorava aquilo pela esperança em seu trabalho.

     — Se é assim, posso fazer uma pergunta? — ele levantou uma sobrancelha.

     Marie deu de ombros, indicando indiferença. Harry apurou os lábios em um sorriso quase inexistente, perto de conspiratório.

     — Você matou a sua irmã?

     Marie suspirou, e apesar do brilho magoado no olhar cheio de luto,  não vacilou nem por um segundo ao responder:

     — Eu a amava.

     Aquilo foi o suficiente. Harry se levantou, animado com a resposta de Marie. Limpou as calças, mesmo sabendo que aquele tapete deveria ser mais limpo que suas próprias mãos, e olhou o quarto em que estava. As fotos dela com Sofia dominavam todos os quadros; havia posteres, ursos de pelúcia e CDs de astros teens, nada muito diferente do que ele esperava encontrar no quarto de uma garota de 16 anos —não ser, é claro, a própria garota. Ela, sim, passou longe de todas as suas expectativas. Principalmente quando ele perguntou:

     — Se eu te pedisse ajuda para encontrar o assassino de Sofia, você se disponibilizaria? Mesmo que tivesse que mentir para os seus pais?

     Marie pareceu levar algum tipo de choque. Ela ficou paralisada por alguns segundos, visivelmente em guerra consigo mesma. Deveria ela confiar no policial estranho? O que ele queria dizer com ter de mentir para os seus pais?

     Ela pensou em sua irmã; no quanto a amava. Pensou na curiosidade que começava a corroer seus ossos, querendo saber o que a aguardava caso aceitasse a proposta. Tentou imaginar quais seriam as consequências de seus atos, mesmo que ela nem ao menos soubesse o que teria de fazer.

     No final, chegou à conclusão de que já não tinha mais nada a perder.

     — Sim.

... 

CONTINUA

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top