D O Z E
— Onde você estava?
Harry parou assim que ouviu a voz desconfiada de Angelina. Por sorte ele já estava no jardim da casa, observando o céu e a grama, quando o interrogatório com os Spilma acabou e a parceira deixou a residência ainda tenso com os recentes acontecimentos.
— Fumando — e não era mentira.
Angelina semicerrou os olhos, desconfiada, mas não insistiu em querer saber a verdade. Se nenhuma bomba tinha estourado até ali, provavelmente não havia perigo. Harry parecia calmo e controlado, os Spilman não guardaram rancor e responderam as perguntas normalmente; estava tudo bem.
Ou talvez não.
— Você é um idiota, sabia? — ela lhe deu um tapa — Por que fez aquilo? Eles perderam uma filha!
Harry cambaleou, mas conseguiu manter o equilíbrio. Angelina parecia realmente furiosa, uma veia de seu pescoço saltava junto com os seus olhos arregalados. White pensou em tentar explicar tudo a ela, mas o modo como a mulher cerrava os punhos dizia que o máximo que ele conseguiria com a tentativa seria levar o segundo soco do dia.
— Você deveria confiar mais em mim, Angelina — o homem alertou, fazendo-a balançar a cabeça.
Devens era uma mulher alta e esguia que tinha o pavio curto e pouquíssima paciência para Harry White. E ninguém a culpava. Ser parceira de um homem como ele era como passar por testes psicológicos diariamente. Ninguém sabia como ela não havia enlouquecido ainda.
— Confio em você há quase quinze anos — rosnou Angelina, tentando manter a calma. — Já estou cansada dessas surpresas
Harry a encarou de lado enquanto voltavam a andar. Ele não pôde deixar de sorrir com o jeito desajeitadamente bravo dela, andando pelo caminho de pedras dos Spilman com cuidado para não pisar na grama. A fonte produzia um chiado quase confortável, e o sol — turista em Londres — queimava enquanto Harry fugia dos raios que o deixariam vermelho mais tarde.
Alcançaram o carro, e Angelina tomou a direção enquanto Harry colocou os óculos escuros. Seu estômago roncou, lembrando-o mais uma vez da falta que um bom café da manhã fazia, e ele pediu para que a mulher parasse em algum lugar para que comprassem comida.
— Eu devia deixar você morrer de fome — ela pestanejou, ligando o carro.
Harry riu, nem um pouco afetado pela provocação da mulher. Uma hora ela entenderia que, como em todas as outras ocasiões, Harry tinha um motivo para ter feito o que fez.
...
No escritório da Scotland Yard Steven e David não obtinham sucesso em encontrar o amigo de Jared e Sofia, Charlie, mencionado pelo pai de Norton. Haviam procurado por todos os arquivos da polícia e até mesmo em redes sociais, mas ninguém se encaixava no perfil coletado por eles no restante da conversa com Aidan.
Havia muitos Charlies em Londres. Todos com a mesma cor de cabelo, mesmo tom de pele, mesma altura. E ainda assim, David e Steven separaram alguns — os mais pertinentes — para visitar e fazer perguntas. Talvez a sorte estivesse a favor deles e os dois conseguissem encontrá-lo mais cedo do que previram. Mas era bem difícil.
Sendo assim, deixaram para ir ao encontro daqueles possíveis Charlies depois. Naquele momento, transcreveram a conversa com Aidan Norton e juntaram a informação com o resto dos arquivos do Caso Spilma. Depois, sentaram e esperaram até que Angelina e Harry chegassem, a mulher de mau humor com alguma coisa que White havia aprontado quando finalmente passou pela porta do escritório.
Demorou um pouco para que Steven e David notassem o filete de sangue na camisa de White, mas foi o suficiente para que imaginassem o que tinha acontecido na casa dos Spilman. Eles chegaram a rir, afinal já fazia um tempo que Harry não levava um soco, mas o mau humor do parceiro fez com que parassem.
White ainda pensava em Marie, na verdade. A ajuda dela seria de suma importância. Muitas informações viriam de Marie; coisas que Constance e Bernardo não contariam nunca.
Amigos, segredos, medos, costumes... Só Marie poderia saber tudo aquilo sobre Sofia Spilman. A irmã mais nova, a confidente. A única que a conhecia tão bem quanto ela mesma, afinal irmãos não eram sempre assim?
Harry não sabia, mas torceu para que fosse.
...
— Aqui. — Angelina jogou meia dúzia de papéis sobre a mesa de Harry.
O policial observou a pilha branca e organizada à sua frente e encarou Angelina, buscando uma explicação. Não estava muito disposto a gastar energia com enigmas desnecessários. Havia se passado três longos e chatos dias desde o incidente com os Spilman, e sua mente entrara em estado de torpor com o tédio de então. Ele estava enferrujado.
— A relação climática de todos os lugares dentro e ao redor de Londres — explicou ela. — Com base nas gotas de chuva no para-brisa, pode-se dizer que o carro esteve em algum lugar com tempo ruim. Choveu em Londres, sim, mas o que estava no para-brisa não era terra, e sim areia. Estamos procurando um lugar perto da Costa.
Angelina tinha uma gargantilha com o pingente de uma coruja que usava desde que o homem a conhecia. Quando ela falava, o colar delicado se movimentava junto com a sua garganta, chegando a mudar de lugar quando ela ria. Naquele momento a coruja estava imóvel.
— E você buscou todos os lugares da costa em que choveram? — ele perguntou impressionado.
— Eu, não. Um aplicativo. Mas já pedi pra alguém dar uma conferida, caso esteja errado.
— E temos muitas opções? — finalmente puxou os papéis.
A gargantilha se movimentou quando Angelina suspirou.
— Combinei os números de quilômetros rodados do carro com a distância de todas as cidades — ela parecia cansada só de lembrar. — Temos duas que batem.
Harry estava prestes a fazer outra pergunta quando foi interrompido.
— Não entendi — Dave apareceu com uma xícara na mão.
Angelina olhou-o pacientemente.
— O carro marcava 56 km rodados, então procurei cidades que ficam em um raio de 28 km de distância, já que a ida e a volta dela resultariam em 56 km, entendeu?
— Não.
— Ela combinou os números rodados com os números de distância, Dave. Volte para a escola! — Harry se irritou.
— Angelina pegou o número total de quilômetros e dividiu por dois, assim ela teria o número exato da ida e da volta de uma cidade, caso Jared ou Sofia tenham saído de Londres. Mas isso não dará certo se eles tiverem rodado muito dentro dos bairros. — Steven apareceu, interrompendo-os. — Ou se não tivessem resetado o contador naquele dia.
— Eu sei, mas é tudo o que temos. — Angelina deu de ombros. — Vamos tentar ir a alguma dessas cidade. Levar algumas fotos, ou sei lá. É um começo.
— Hoje? — Harry parecia cansado.
— Claro que hoje! Ainda são onze da manhã — deu um tapa em seu ombro, instigando-o a começar a se preparar para a partida. — Vamos assim que Enzo autorizar. Vou ligar para ele agora.
Angelina tirou o telefone do bolso da calça e virou de costas, discando os números enquanto se afastava. Dave e Steven começaram a conversar, Steven ainda tentando explicar o esquema dos quilômetros para David, que parecia entender lentamente.
— O que conseguiram na segunda visita aos Norton? — Harry decidiu interromper o assunto.
Ficaria louco caso ouvisse, mais uma vez, como era feita a divisão dos quilômetros rodados. Além do mais, queria realmente saber como e se haviam conseguido conversar com a mãe de Jared quando retornaram à casa dos Norton para uma segunda visita. Ela parecia uma chave importante no quebra-cabeças.
As expressões não muito animadas de David e Stevenentregaram tudo antes mesmo que Hemmings falasse:
— Não muito produtivo. O pai nos recebeu de novo, e ele não sabia de muita coisa. Estamos apostando no amigo misterioso que ele citou, Charlie. Essa amizade soou suspeita, mas não temos como saber o que se passa na cabeça de pessoas como os Norton, não é?
Harry assentiu. Sabia que as famílias de ambas as vítimas — Sofia e Jared — não seriam tão fáceis de lidar. Harry nem ao menos se surpreendeu com o fato de os pais não saberem muita coisa sobre os filhos. Aquele tipo de gente geralmente não ligava para nada além do dinheiro, então como poderiam ajudar em uma investigação na qual a vida pessoal dos filhos era o principal foco? Afinal, até ali não havia indícios de que era um Serial Killer. Tudo apontava para dois homicídios que poderiam ter sido cometidos por qualquer um; seja por vingança, raiva, inveja ou até mesmo dinheiro.
— E com os Spilman? — perguntou Dave. Lera os relatórios, mas sempre havia coisas que não eram escritas.
— Também foi ruim.
Harry não estava realmente decepcionado. Nunca esperou muito deles, de qualquer jeito. E o avanço com Marie Spilman era grandioso. Uma pena que ele não pudesse comentar aquilo com os colegas. David, Angelina e Steven provavelmente não apoiariam a conduta do homem e diriam que Marie era apenas uma criança; que ele não deveria envolvê-la em qualquer um de seus planos excêntricos.
— Na verdade — Angelina estava de volta, guardando o celular no bolso. — Foi bem produtivo — sorriu para os outros dois, uma provocação tomando a sua voz na próxima frase: — Harry não pôde acompanhar tudo, mas eu consegui convencer os Spilman a dar permissão para que escutássemos as gravações feitas durante as terapias de Sofia.
— É sério? — Harry estava realmente impressionado. — Eles vão nos deixar escutar todos os segredos da filha deles, assim, tão facilmente? Sem nenhuma resistência?
Ele não entendia. Os Spilman pareciam sempre tão reservados. Deixar que a polícia tivesse acesso a segredos compartilhados em uma sessão de terapia não fazia sentido.
— Harry, ao contrário do que você pensa, eles querem, sim, encontrar o assassino de Sofia. — Angelina repreendeu. — Concordaram sem hesitar. Buscaremos as gravações amanhã, no consultório de Louise Campbell.
Harry pareceu convencido, dando de ombros com indiferença. Tentar entender a cabeça das pessoas daquela família não seria um de seus passatempos. Queria distância deles, na verdade. E apesar de ser um desejo quase impossível de ser alcançado, ele se esforçaria.
— E a nossa viagem à costa? — ele perguntou.
— Enzo disse para esperarmos as gravações chegarem e ver se Sofia comenta alguma coisa sobre elas nos áudios. Enquanto isso, vamos ao necrotério falar com o legista. Ele acabou de ligar dizendo que os corpos serão entregues às famílias amanhã, pela manhã. Temos que nos apressar.
— Todos nós temos que ir? — Dave perguntou, engolindo em seco.
Não era segredo para ninguém que o homem não gostava de necrotérios. Todas as vezes que aconteceu de ele ter de ir a um, David saiu do local vomitando — ou perto disso. Angelina tinha um bom coração e geralmente permitia que ele ficasse no carro, já que era ela quem mandava quando Enzo não estava por perto, mas naquele dia não parecia disposta a ser tão boazinha.
— Todos — afirmou. — Incluindo você. Está na hora de superar isso, Dave. Você é policial!
O rosto de David perdeu um pouco da cor, fazendo o homem suspirar quando Angelina passou por ele, dando um tapinha em seu ombro como forma de consolo. Steven, esperando melhorar a situação, disse que talvez a mulher mudasse de ideia e o deixasse ficar no carro.
Harry riu da inocência dos dois e seguiu pelo mesmo caminho de Angelina, todos saindo da Scotland Yard para tentar conseguir mais informações.
...
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