D O I S

     Quando Enzo West retornou ao apartamento de Sofia, naquela tarde, horas após o assassinato da mais velha das herdeiras Spilman, sentiu algo estranho no ar; e não era como se depois de vinte anos de carreira ele não conhecesse todos os pequenos detalhes da sensação de se estar em uma cena de crime, mas o prelúdio da tragédia era tão forte que chegou a ser incômodo.

     Enzo sentia o caos estagnado naquele conjunto de cômodos agora sem vida, e era impossível não se alarmar. 

     Harry White também sentia, mas tentava a todo custo ignorar. Sua atenção estava presa na sacada do apartamento de Sofia, por onde ela havia caído, e ele observava tudo tão atentamente que West chegou a cogitar não fazer a pergunta:

     — O que acha que aconteceu? 

     Harry balançou a cabeça. Sua voz saiu rouca e baixa, do jeito que saía sempre que ele imergia tanto em pensamentos que voltar à realidade, mesmo que fosse apenas para opinar, parecia difícil:

     — Não faz sentido. A porta da sacada estava trancada por dentro quando chegamos. Isso elimina a possibilidade de suicídio. Se o assassino queria simular um suicídio, por que eliminou essa possibilidade trancando a porta?

Enzo West suspirou.

     —Eu sinceramente esperava que você me dissesse isso.

     — Preciso de mais tempo. Com essa sacada, de preferência.

     Enzo concordou, entendendo o pedido, e se afastou para sair do apartamento. Ele tinha plena consciência de que não ajudaria em nada ficando ali, mas que, se saísse, Harry trabalharia mais depressa. Ele era o tipo de pessoa concentrada o suficiente para se distrair com qualquer coisa. Quanto menos barulho, menos luzes e menos vozes, melhor.

     Do lado de fora estava David Smith, que também era de sua equipe de detetives. Sua função ali consistia, mesmo que ele não soubesse, em evitar que Harry White se envolvesse em grandes problemas. Dave era um homem de grande porte, do tamanho — e também tão burro — quanto uma porta, daqueles que nem White poderia tentar enfrentar, e por isso Enzo o mantinha por perto. Um brutamontes era bem vindo quando ao menos duas vezes por caso Harry quase levava um soco.

     — Fique aqui e veja se ele consegue achar alguma coisa com os seus poderes mágicos. — instruiu — Vou procurar Angelina.

     Mesmo que desde o Caso Ryan as cosias parecessem calmas e, surpreendentemente, Harry ainda não tivesse montado nenhuma apresentação de slides para denunciar o assassinato de alguém, Enzo não podia descansar.  

     Era preciso muita atenção quando se tratava de White. Principalmente em um caso grande como aquele.

— Sério? — David olhou para Harry, que permanecia imóvel em frente à sacada. 

Era impressionante como Smith ainda não havia entendido o seu papel ali. Era sempre a mesma coisa. E por mais que Enzo não o culpasse por não querer tomar conta de uma criança de 46 anos, olhou para David com seriedade e acrescentou:

— Se ele fizer alguma besteira, a culpa será sua.

E saiu.

...

     David Smith — ou Dave — sinceramente não achava que Harry precisasse de supervisão. Ele era ótimo em arrumar confusão, sim, mas só havia os dois ali. Não era como se White fosse começar uma discussão com as paredes!

     — Dave, venha aqui um minuto — a voz do demônio, mais conhecido como Harry White, chamou.

     Smith respirou fundo e começou a andar em direção a ele. Quando parou ao seu lado, White levou uma das mãos ao próprio queixo, mas não olhou para o colega. Continuou centrado na sacada do apartamento de Sofia.

     — Quanto você pesa? — perguntou.

Dave ficou confuso, mas respondeu:

     — Eu não sei.

     Harry se moveu para a frente e abriu a porta de vidro da sacada. O apartamento ficou gelado com a brisa noturna de Londres passando pelas paredes, mas a iluminação da lua e dos postes ajudou a deixar o ambiento menos macabro. 

     — Me empurre contra a parede, por favor.

     David deixou a vista alaranjada de Londres para olhar Harry White e sentir vontade de rir. Aquilo soou errado e estranho de diversas formas diferentes.

     — O quê?

     Harry revirou os olhos e, para obter uma reação mais rápida, empurrou David Smith com os dois braços. O homem era tão grande que o movimento não causou impacto. Isso, porém, não impediu que David retribuísse o empurrão com outro, fazendo White bater contra a parede do apartamento de Sofia com um baque surdo ecoando pelas saídas de ar.

     Dave esperou qualquer reação como resposta, menos a que veio:

     —  Droga— Harry murmurou, parecendo decepcionado  — Acho que sou muito pesado.

     Sem mais explicações, White bufou e saiu da sacada, seguindo pelo apartamento de forma silenciosa. Ele foi até a cozinha, parando por um minuto para observar atentamente cada um dos armários sem abri-los, e então seguiu para a lavanderia, onde mexeu nos varais vazios como se amasse o barulho dos pregadores plásticos balançando.

      Aquilo lembrou Dave do assassino dos pregadores. Bizarro, diga-se de passagem, e traumatizante para um primeiro caso na divisão de homicídios. Ele nunca se esqueceria de todos aqueles objetos juntos de uma forma tão nojenta, muito menos de Harry White rindo deles. Intestino preso, ele disse ao defunto com a barriga aberta cheia de pregadores no lugar das tripas. Ninguém riu, mas todos queriam.

     Ou pelo menos foi aquilo o que Harry dissera.

     Da cozinha, passaram para um corredor de paredes extremamente brancas que abrigava três portas idênticas, e Harry soube qual era a do quarto de Sofia apenas porque uma das maçanetas tinha a cobertura dourada gasta além das outras. Ele parou em frente ao cômodo e respirou fundo duas vezes, pensando no que encontraria, sabendo que o quarto de uma vítima sempre era um cenário difícil de estar, e então empurrou a porta delicadamente.

     David Smith e Harry White entraram com o rangido inconveniente da porta quebrando o silêncio fúnebre do apartamento, mas aquilo não deixou as coisas melhores. Suas sombras desenhadas pela luz do corredor ficaram no chão, sozinhas e estáticas, por vários segundos até que alguém realmente começasse a se mover, e, quando finalmente se moveram, Harry sentiu um calafrio percorrer sua espinha. 

     Ele pensou que talvez fosse a escuridão, mas nada adiantou quando ascendeu a luz. O quarto se parecia muito com o de alguém vivo para que o pensamento de um dono morto não fosse perturbador. Mesmo que o cheiro de Sofia ainda ocupasse cada parte do local, aquele cômodo com cama, fotos, computador e itens pessoais não tinha mais uma identidade, muito menos um dono. Agora ele era só um lugar cheio e vazio, sem ninguém para habitar, totalmente à mercê daqueles dois policiais curiosos.

     Deixando todos os pensamentos sobre Sofia, a pessoa, de lado, ele adotou a visão que nunca deveria ter deixado para trás: a de Sofia, a vítima. Então andou até onde deveria ser o armário dela e o abriu, pronto para iniciar aquele método clínico de análise profissional, que gostava de pensar ser parecido com um aspirador de pó: sugar o necessário e ignorar tudo o que poderia fazê-lo engasgar.

     Quando abriu o armário, estava focado. Havia uma grande bagunça de roupas jogadas para todos os lados. Harry estreitou os olhos, alternando a atenção entre quarto absurdamente organizado e o guarda-roupa caótico cheio de cabides vazios.

     — Dave — ele chamou. — Procure Enzo e diga que estamos buscando uma mala. Diga que precisamos das imagens das câmeras de segurança.

     — Já olhamos tudo, White. Não tem nada por lá.

     Harry balançou a cabeça. Sofia Spilman chegou a pé, não saiu do prédio e caiu do apartamento que morava. Eles procuravam pessoas entrando, claro, para matá-la, mas provavelmente não haviam tentando achar ninguém saindo.

     — Não as da portaria. As do estacionamento — disse e, fechando o armário, completou: — Sofia planejava fugir esta noite.

...

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