D E Z O I T O

     Harry White odiava hospitais, pois sempre se sentia um intruso naquele tipo de ambiente. Era realmente estranho o modo como, mesmo quando ele tentava andar normalmente, seus passos pareciam rápidos e barulhentos demais em comparação aos das outras pessoas. Até as suas roupas eram escuras demais. Era como se sua vida agitada, rude e suja dentro das ruas londrinas não combinasse com a imensidão branca, limpa e delicada de um hospital.

     O detetive encontrou Natallie em poucos minutos, localizando-a pelos seus cabelos cor de mel que, como sempre, estavam presos em um rabo de cavalo. Conteve o impulso de segurá-la pela cintura quando chegou perto, parando ao seu lado e chamando a sua atenção com um leve toque de dedos em seus ombros, tensos simplesmente por estar em serviço. Natallie se virou e olhou para Harry, confusa por alguns segundos. Então as suas feições começaram a se suavizar e ela sorriu de maneira sincera quando o reconheceu por completo.

     — Quarto trinta e dois — informou, e, então, percebendo o semblante tenso do marido, completou de forma doce: — Angelina vai ficar bem, não se preocupe. Ela teve uma recuperação rápida e só está aqui porque precisamos fazer mais alguns exames.

     Harry concordou com a cabeça, impressionado com o modo como qualquer palavra proferida por Natallie e seu tom de voz calmo conseguia fazê-lo se distrair. Precisava arrumar um jeito de ser imune a ela antes que as pessoas começassem a perceber que aquela era a sua maior fraqueza.

     De qualquer jeito, naquele momento ele agradecia por cada milímetro do sorriso anestesiante que a mulher exibia. A agradeceu e seguiu a direção indicada pela mulher. Ao andar, sentiu um cansaço estranho nas pernas, que o obrigou a ir devagar, como se pudesse cair ou tropeçar a qualquer minuto.

     Quando chegou ao quarto certo, a luz estava apagada. Harry hesitou sobre se deveria entrar ou não, pensando que Angelina pudesse ter voltado a dormir, mas optou por girar a maçaneta e abrir a porta com cuidado. Um feixe esbranquiçado cresceu no chão com a luz que escapou do corredor, morrendo bem na ponta da cama que Angelina estava deitada.

     — Angie? — Harry chamou baixo, preferindo conferir se ela estava acordada ou não.

     Viu-a se mexer. Angelina levou uma das mãos aos olhos para proteger as pupilas da pouca iluminação que, de repente, tinha invadido o seu quarto. Ela resmungou algo, provavelmente xingando quem havia entrado de repente, mas parou quando reconheceu o parceiro ainda parado na porta.

     Ela parecia cansada, com olheiras embaixo dos olhos e a pele pálida. Seus cabelos negros estavam soltos e espalhados pelo travesseiro.

     — Nada como sobreviver a uma explosão para purificar a alma, não é? — Harry brincou, entrando no quarto e se jogando na poltrona ao lado da cama. Angelina revirou os olhos, mesmo que aquilo tenha parecido doer. — Vai com calma, coração — riu, provocando-a.

     — Eu quase fiquei surda — ela pestanejou, visivelmente raivosa. — E cega! Estou nesse quarto escuro porque eles disseram que deveriam tomar cuidado com qualquer tipo de luz. Então, Harry, eu não estou com disposição para as suas piadinhas.

     Harry fez bico, como se estivesse realmente magoado.

     — Só queria deixar o seu dia melhor.

     — Quer deixá-lo melhor? Tire-me aqui! Esse lugar está me deixando louca... — ela fechou os olhos, e, por um minuto, Harry achou que ela fosse chorar de desespero. Aquilo o fez rir, principalmente quando Angelina completou em um tom parecido com o de uma criança emburrada: — Eu odeio hospitais!

     — Sinto muito ser a pessoa a te falar isso, mas parece que você vai ter que ficar aqui por um longo tempo — apesar da lamentação, ele não estava nem um pouco ressentido. Ao contrário, Harry achava graça, encontrando uma ótima oportunidade para provocar a parceira.

     — O lado bom de estar aqui é que, pelo menos, eu posso me livrar de você — ela semicerrou os olhos. — Como agora: por favor, você está me desgastando, vá embora!

     Harry White, por algum motivo, entendeu o tom raivoso de Angelina como um convite para rir ainda mais. Talvez precisasse daquilo. Talvez precisasse vê-la com aquela falsa raiva e os olhos azuis arregalados em descrença enquanto o homem se desdobrava de rir na cadeira desconfortável do hospital. Talvez um pouco de distração fosse o que eles realmente precisavam naquele momento.

     E ali, eles se esqueceram dos Caso Spilman, da explosão e das queimaduras que ainda incomodavam o peito do policial e os dedos da detetive. Esqueceram-se da audição sensível de Angelina e começaram a rir, juntos, como se alguma piada realmente boa tivesse sido contada; como se eles não estivessem ferrados, sem rumo e pistas e com a destruição de um patrimônio particular nas costas; como se a morte de uma garota inocente não fosse responsabilidade deles ou como se, lá fora, não houvesse outras dezenas de assassinos esperando para encontrar vítimas tão jovens e fáceis quanto Sofia Spilman.

     Ali, os dois riram como se o mundo não estivesse caindo diante de seus olhos.

...

     Três dias depois, parado no centro do apartamento de Sofia Spilman, Harry White tinha um dos braços cruzados na frente do peito e os dedos passando pela barba rala do queixo, observando a sacada à sua frente. A vista era limitada por conta dos outros vários prédios da região, mas não chegava a ser decepcionante. Dava para ver pontos laranjas, luzes da cidade que nunca morriam e as pessoas andando pelas calçadas sujas. Estava escuro e muitas coisas — como as poucas árvores, os animais e o seu próprio carro —, misturavam-se com a paisagem. 

     Harry tentava entender o porquê daquela sacada ser tão importante. Por que trancariam Sofia lá? Por que a trancariam naquela parte exposta do apartamento?

    Ele vestiu as luvas de látex e abriu a porta de correr. Passou para o lado de fora da sacada e sentiu o vento gélido da noite passar por aquele ponto esquecido da cidade. Andou até o parapeito e observou a vista. Lá embaixo, viu a marca do sangue de Sofia, que ainda manchava o asfalto de maneira significante. Virou-se para a direção da porta, vendo o seu reflexo no vidro sujo e olhando através dele, para dentro do apartamento.

     Ali, com o frio começando a corroer os seus ossos, Harry White permaneceu parado na sacada do apartamento de uma garota morta, tentando entender a cena do crime, o assassino e até mesmo a vítima. Passou os dedos pelo material frio do parapeito, imaginando uma cena na qual Sofia Spilman estivesse se jogando dali. Desesperada, com medo, o vento bagunçando os seus cabelos cor de fogo e o rosto ardendo em lágrimas. Alguém do outro lado da porta, dentro do apartamento, observando-a, instigando-a, talvez, apontando uma arma a ou ameaçando-a de algum jeito, esperando ela se jogar.

     White olhou da porta para a sacada e, então, para o Café do outro lado da rua. Lembrou-se do simpático funcionário, aquele para quem ela tinha pedido ajuda antes de morrer. Alguém que viu mais do que Harry poderia ver com a sua imaginação e a junção dos fatos. Um garoto que era apaixonado pela vizinha, que fora rejeitado e que poderia tê-la matado por pura obsessão. Um suspeito que tinha vista privilegiada para a cena do crime.

     Matthew Horan, Harry lembrava do nome, fora o único que realmente vira alguma coisa naquela noite, mas dizia não ter visto nada. Estava nervoso e intimidado pelos policiais quando relatou os ocorridos, e parecia realmente transtornado. Muitos, como o próprio Enzo, diriam que ele estava traumatizado por ter encontrado o corpo, mas e se fosse uma encenação? 

     Harry voltou para dentro do apartamento, protegido pelas paredes que lhe proporcionavam calor e o separava do frio e do vento que fazia-se presente do lado de fora. O policial andou pelos cômodos do lugar e tentou achar algo que poderia ter deixado passar na primeira vez em que esteve ali. O silêncio era crucial, confortável para os seus ouvidos — que preferiam daquele jeito. Harry agradecia a falta de todos os outros profissionais, pois assim podia pensar com mais clareza, sem se preocupar com nada.

     Voltou para o quarto de Sofia, que estava do mesmo jeito de quando ele entrou ali com David. Os ursos eram os mesmos e o guarda-roupas permanecera aberto depois da inspeção de Harry. E então ele se lembrou da mala. Não tinham encontrado a mala que, ele sabia, existia e estava cheia de coisas que poderiam ajudar no caso. A mala que era praticamente a resposta para tudo, já que, se soubessem o que Sofia levava nela, provavelmente saberiam para onde ela pretendia ir.

     Pensou em procurar por um diário, algo que Sofia pudesse ter usado para se expressar ou desabafar. E ele procurou, por todos os cantos e lugares, mas não encontrou nada. Nada além de fotos de família e amigos, de livros da faculdade e coisas pessoais, porém insignificantes.

     Harry chegou a tentar desvendar fundos falsos nas coisas, e ele até achou, mas todos escondiam dinheiro. E não era o que ele procurava. Acabou ficando frustrado e enraivecido, perguntando-se se não era mais moda toda aquela coisa de adolescentes terem diários. E então ele pensou que não, na verdade, aquilo nunca foi uma tendência. Garotas e garotos não contavam segredos a pedaços de papéis; contavam para amigos.

     Harry estava sentado na cama da vítima, procurando pelas fotos dos quadros alguém que se parecesse com um melhor amigo. Tinha a sensação de que, se perguntasse aos pais quem era a pessoa pela qual Sofia era mais próxima, eles não saberiam dizer. Precisava encontrar sozinho.

     Pegou uma das garrafas de uísque que encontrou embaixo da cama de Sofia e a abriu, bebendo um pouco do líquido quente enquanto observava cada uma das fotografias e tentava associar rostos.

     Por fim, com o gosto amargo da bebida queimando a sua garganta, ele só conseguiu pensar em um nome. Uma única pessoa que poderia fazê-lo poupar tempo e que teria todas as respostas.

...


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