D E Z E S S E I S

     Correr nunca foi o esporte preferido de Harry White.

     Quando o homem estava em fase de treinamento para ser aprovado na Scotland Yard, por exemplo, detestava as provas de aptidão física justamente por causa daquela etapa sempre tão fatídica do processo. Era odioso o modo como ele perdia o fôlego rápido demais e, mais detestável ainda, como nunca conseguia alcançar a velocidade almejada. Chegava a ser vergonhoso, e apesar de Harry geralmente compensar tudo nos outros testes — como os de tiro e lógica — ele realmente não gostava de falhar.

     Por isso e antes mesmo de tudo acontecer, Harry já sabia que aquela perseguição não acabaria bem. Como sempre, correr não se mostrou algo agradável — e muito menos útil — naquela tarde londrina, fria e cinza demais, quando Harry perseguiu um homem encapuzado por entre as ruas cheias da cidade. Seu sangue corria quente pelas veias e os pulmões quase não davam conta de processar o ar que, hora ou outra, parecia não ser suficiente para manter o fôlego do policial. Harry chegou a tomar uma nota mental que dizia "Pare de fumar, seu idiota, ou vai acabar perdendo os pulmões", mas foi algo extremamente momentâneo e, em um minuto, tudo o que ele queria fazer era parar e acender um cigarro.

     Toda aquela preocupação extremamente aleatória abandonou os seus pensamentos assim que Harry sentiu um baque contra o próprio corpo. Antes que pudesse reagir, ele caiu no chão, grunhindo com o impacto e caindo violentamente contra o asfalto da rua. A dor no abdômen não o deixou levantar e, mesmo com o filete de sangue escorrendo pela lateral de seu rosto, Harry só entendeu o que estava acontecendo quando viu o carro parado atrás de si. Um rapaz desceu do veículo e andou até o policial, falando coisas tão sem sentido e com um tom de voz tão irritante que, se Harry não estivesse tão zonzo, provavelmente teria gritado com ele.

     Meio atordoado, o policial notou o círculo de curiosos pouco a pouco tomando forma ao seu redor. E enquanto ele tentava aceitar o fato de que tinha acabado de ser atropelado, tudo finalmente começou a escurecer.

...

     Cronologicamente, apenas três horas foram gastas, mas, quando acordou, estava sozinho dentro de uma ambulância enquanto um caos digno de dias se instalava do lado de fora. Sua boca estava seca e ele estremeceu quando uma corrente de ar frio bateu contra o seu corpo, fazendo-o finalmente notar a falta do casaco e da camiseta preta que antes vestia.

     Passou os olhos por si mesmo, percebendo os curativos feitos em seu peito e os arranhões em seus braços. Arrancou todos os pequenos esparadrapos brancos colados em sua pele, pegou a sua camiseta e, ainda zonzo, foi em direção a Enzo, que estava conversando com um paramédico de frente para uma outra ambulância, do outro lado do estacionamento.

      Enquanto andava, tudo dentro da mente de Harry se mostrava extremamente confuso. Sua cabeça doía, mas agora não era apenas mais uma de suas enxaquecas. Era o resultado doloroso de sua recente contusão. A desordem de sua coordenação motora era iminente e prolongava seus passos. Era realmente difícil andar quando a sensação era a de que todo o seu corpo estava prestes a desmontar em pedacinhos.

     Tudo do lado de fora lembrava um cenário apocalíptico, a produção de algum filme extremamente ruim. Havia um prédio exalando fumaça negra, bombeiros, curiosos, jornalistas, médicos e policiais. A chuva também não ajudava a amenizar qualquer situação. As gotas minúsculas causavam pequenas ondas nas poças de água, fazendo aquela frágil realidade parecer uma grande ilusão de ótica.

     Harry continuou caminhando em direção a Enzo, já vestindo a sua camiseta preta. O tecido causou um ardor significante no peito dolorido do homem e agiu como uma dolorosa motivação para ir mais rápido. Infelizmente, quando chegou perto do chefe, tudo escureceu de novo. Dessa vez, foram questões de segundos e, quando Harry abriu os olhos, estava sendo guiado por dois socorristas para dentro da ambulância mais próxima. 

     Odiando tudo aquilo e o modo como o olhavam com preocupação, Harry agradeceu mentalmente quando um dos paramédicos foi chamado para o lado de fora. Parecia ser uma situação de emergência, pelo modo como o grito saíra exagerado e quase alarmante, mas o médico desapareceu tão rápido que Harry não teve tempo de perguntar o que tinha acontecido.

     E então o policial percebeu que não estava sozinho.

     — O senhor tem comido... Coisas saudáveis? — o segundo paramédico, que permanecera na ambulância, perguntou.

     Harry, ainda desnorteado, não conseguiu elaborar uma resposta decente e recebeu um singelo suspiro como única e suficiente reação.

     — O senhor desmaiou por causa do trauma na cabeça, mas só permaneceu assim por três horas porque está fraco demais, detetive. Ao que tudo indica, não coloca nada com proteínas no organismo há um bom tempo. Aconselho que pare de beber e comece a tomar mais cuidado com a sua saúde.

     Harry piscou, vendo tudo girar por mais alguns segundos. Reparou na maca ao seu lado, e essa foi a única razão pela qual não mandou o homem cuidar da própria vida. Era Angelina que estava deitada ali, com os olhos fechados e as costas apoiadas em um grande travesseiro.

     — Vou passar algumas vitaminas, espero que as tome — a voz do outro tomou seus ouvidos, mas Harry não prestou muita atenção. 

    Levantou com o máximo de pouco equilíbrio interno que conseguiu juntar, vencendo o mínimo espaço que o separava de Angelina e parando ao lado dela. Escorou-se na maca em que a parceira estava deitada para não cair, de repente sentindo um acesso estranho de tontura. Algo que o fez respirar fundo e tentar manter a concentração nas palavras que saíram pela própria boca:

     — Ela está bem? 

     — Vai ficar — respondeu depois do tempo gasto para assimilar do que e de quem Harry estava falando. — Mas aconselho que o senhor volte a se sentar, pois ainda existem rastros de medicamentos em seu organismo. Eles te deixam tonto e é melhor não arriscar uma queda.

     — O quê? — Harry virou o rosto para o médico. — O que vocês me deram? O que... O que aconteceu com ela? — então algo estourou dentro de seu cérebro e imagens desconexas tomaram forma. Angelina, Louise, Paul e uma explosão atingindo os seus nervos mais sensíveis. — Mais alguém se machucou?

     Harry tinha consciência de que o seu tom de voz era mais alto e grosseiro do que ele pretendia usar a princípio. Aquilo, porém, não pareceu atingir o paramédico, que o olhou com compreensão. White ficou ali, esperando uma resposta, e aceitou de bom grado quando o homem explicou tudo o que estava ao seu alcance. Não era muita coisa, afinal ele era médico e seu trabalho era ajudar pessoas, não fazer relatórios sobre incêndios, mas mesmo assim foi esclarecedor.

     — Há várias maneiras de algo pegar fogo. No seu caso, senhor White, não foi tão direto como o que aconteceu com o prédio, mas vamos dizer que resquícios da tragédia grudaram em você no momento em que te atingiram. Quando correu atrás daquele suspeito, tudo só piorou. O senhor só está vivo e bem porque choveu e a água amenizou os efeitos das queimaduras — ele explicou. 

     — E Angelina?

     — Sua amiga também teve sorte. Estava perto demais e poderia ter sido pior, mas ela sofreu apenas uma passageira perda de audição devido ao som demasiado alto, que perfurou superficialmente seus tímpanos. Está desmaiada no momento, mas acordará em breve.

     — E quanto tempo ela vai ficar sem escutar? — Harry estava bem mais calmo àquela altura. As coisas tinham parado de girar e começavam, pouco a pouco, a fazer sentido dentro de sua cabeça.

     — Tempo indeterminado.

     O policial concordou lentamente com a cabeça.

     — E os outros? Estão todos bem?

     — O sujeito, Paul, dono da clínica, não teve tanta sorte quanto o senhor e sua parceira. Ele se encontra com queimaduras por todo o corpo. Parece que o homem estava perto demais na hora da tragédia. Provavelmente... — ele franziu a testa, tentando se lembrar — Destrancando as portas, ou algo assim.

     — E... A outra mulher? — Harry arriscou perguntar. Havia algo em seu subconsciente teimoso que queria saber como Louise, a psicóloga, estava, fosse por suspeita ou por mera curiosidade.

     Bem mais por suspeita, na verdade.

     Afinal, não havia ninguém além da polícia e de Louise que soubesse o local, horário e situação na qual eles iriam buscar aquelas fitas. E apesar de ele não achar nenhum motivo plausível para ela querer causar uma explosão, Harry não podia deixá-la de lado.

     — Ela não sofreu nada. — As palavras do médico tornaram cada canto da ambulância algo tenso demais para ser suportado, mesmo que o homem não tivesse consciência do significado da própria frase. — Vestia uma grossa jaqueta de motoqueira e isso a protegeu.

     Harry agradeceu, mais por querer ficar sozinho do que por educação, e o homem saiu da ambulância, deixando-o com os próprios pensamentos.

     A partir dali, Louise Campbell não deixou a sua linha de raciocínio nem por um segundo. 

     Mas o que ele teria para acusar Louise? Para explodir o consultório, ela precisaria estar envolvida, de alguma maneira, no assassinato de Sofia. E segundo Angelina, Campbell estava em outro lugar na hora em que a primogênita dos Spilman morreu.

     White sentou ao lado da maca de Angelina, começando, aos poucos, a sentir o frio Londrino passar pelo tecido fino da camiseta preta que vestia. Apesar de toda a confusão, havia certa calma ali; certo tipo de pausa depois de um longo e confuso dia onde apenas a respiração baixa e contínua de Angelina fazia-se presente no ar; onde apenas a mente conturbada e caótica de Harry White era capaz de importunar.

     O detetive apertou os olhos, passando as mãos pelos cabelos. Cinzas caíram de seus fios quando ele suspirou, pensando que tinha falhado. A hora da autopiedade finalmente chegara, e, apesar de ser algo extremamente raro para Harry, todo o seu egocentrismo e o currículo cheio de acertos e sucessos, ele se lembrou do Caso Ryan. Lembrou-se do fracasso que escondera de todo mundo, do que tinha dado errado. Pensou em como o Caso Spilman estava facilmente caminhando para algo próximo daquilo.

     — O senhor vai acompanhá-la até o hospital? — o médico voltou, subindo na ambulância e sentando-se do outro lado de Angelina. Ele checava coisas e aparelhos que o policial nem ao menos saberia mencionar caso perguntassem.

     — Ela vai acordar rápido? — Harry queria muito ficar e ir com a parceira até o hospital, mas podia ver, mesmo que distante, Enzo West quebrando a cabeça com toda aquela confusão.

     — Suponho que não.

     White desceu da ambulância, vendo Enzo parado no centro do estacionamento, conversando com Louise. O estômago de Harry se contraiu ao ver a mulher, pensando que, se ela fosse mesmo a culpada, Angelina estava inconsciente por sua causa.

     — Tudo bem? — Enzo perguntou assim que Harry parou ao seu lado, lançando um olhar compassivo para o detetive.

     — Eles descobriram qual foi a causa da explosão? — olhou para o prédio, ignorando a pergunta do chefe.

     Enzo examinou o detetive e suspirou. O ar saiu em nuvens pela sua boca quando ele comentou, levemente preocupado:

     — Harry, não é melhor você ir para um hospital?

     — Não. Eu estou bem. — White estava impaciente, como de costume, e só queria que Enzo pulasse logo a parte da preocupação sem sentido. Precisava saber o que tinha acontecido. — O motivo? Qual foi? — apressou.

— Não sabem ainda.

     Louise, ao lado de Enzo, observava a cena com curiosidade. E parecia que ela estava provocando Harry. Ele não saberia dizer caso perguntassem, mas os braços cruzados e a postura indiferente da mulher não o convenciam. Era como se ela quisesse fingir que não estava nem aí, e, apesar de ser realmente boa naquilo, Harry sabia que ela não podia ser tão indiferente a tudo. 

     — Você se machucou? — Harry perguntou para Louise. Ela fez que não com a cabeça.

     — O desenhista virá aqui para fazer um Retrato Falado da pessoa que você perseguiu — a voz de Enzo interrompeu a tensa troca de olhares entre Louise e Harry — Tente ser paciente, tudo bem? Essas coisas demoram.

     — Ele estava encapuzado, Enzo. Se você quiser, eu mesmo posso desenhar um capuz para você.

     — Só... Descreva o suspeito. 

     O chefe suspirou antes de sair, e deu dois tapas no ombro esquerdo de White. Era para ser um cumprimento, mas Enzo tocou no lugar em que as recentes quase queimaduras de Harry residiam, fazendo o homem grunhir e levar a mão ao lugar dolorido.

     Quando se virou para Louise, viu que a mulher ria.

     — Qual é a graça? — perguntou de maneira grosseira.

     Louise pareceu surpresa pelo tom exageradamente rude, mas se recuperou rápido e deu de ombros, o queixo franzido em uma tentativa inútil de conter a diversão que insistia em escapar pelos seus lábios. O sinal indiferente que fez com a cabeça, indicando que não era nada, foi a gota d'água para Harry.

     — Você quase morreu. Angelina está em uma maca. Paul, seu chefe, vai ficar internado por um bom tempo. Por que está rindo? — perguntou, de repente, e todo o cansaço e o estresse que sentia acabou escapando pelas suas palavras, deixando o tom alto e quase mal educado. Como ela não respondeu, ele continuou: — Você não fala? É algum tipo de Hippie natureba que assinou contrato com a mãe natureza? 

     E então a expressão da mulher beirou ao ridículo. O riso que Louise tentava conter escapou em uma espécie de lufada e Harry pôde ver, pela primeira vez, como os olhos dela brilhavam quando ela zombava tão descaradamente dele.

     — Percebo que finalmente conseguiu se recuperar do atropelamento, senhor White, e eu fico feliz por isso, mas a sua recuperação não significa que eu sou obrigada a lidar com os seus ataques bipolares. Quando estiver disposto a ser educado, podemos conversar como adultos.

     Harry arregalou os olhos antes que pudesse conter a reação. Sua cabeça voltava ao estado de enxaqueca característico enquanto o sorriso de Louise desaparecia aos poucos. Então algo passou pelo rosto da mulher, como um fantasma, e ela deu um passo para trás.

     Harry não entendeu o ato até perceber Natallie agarrada ao seu pescoço.

     — Você está bem! — a esposa suspirou em seu ouvido. — Deus, eu fiquei tão preocupada!

     Harry fechou os olhos ao sentir o perfume da mulher. Quando os abriu, Louise já não estava mais ali.

     — Estou bem — ele a confortou.

     — Está com dor? — Natallie se afastou subitamente, segurando o marido pelos ombros. — Eles te deram analgésicos? Fizeram exames? Viram se você quebrou algum osso?

      Harry não fazia ideia de quais eram as respostas para aquelas perguntas, então confirmou com a cabeça e sorriu ao vê-la suspirar de alívio. 

     Natallie, então, olhou para os lados e perguntou:

     — Alguém... — vacilou um pouco. — Se feriu gravemente?

     — Não. — Harry afirmou, achando graça no modo com a mulher não pronunciava palavras referentes à morte. — Estão todos vivos.

     Natallie mordeu o lábio inferior, em visível conflito com o seu subconsciente, lutando contra a vontade de abraçá-lo de novo. Ela só queria levar o marido para casa e preparar um chá. Qualquer coisa que o fizesse se sentir melhor.

     Desde que Harry entrara para a divisão de homicídios, Natallie achava que cada caso o afetava, de certo modo. Sabia daquilo porque era impossível não se afetar. Trabalhava em hospitais há anos, e, mesmo que tivesse visto muitas perdas naquele lugar, pelo menos ali ela sabia que era possível fazer alguma coisa a respeito. Era doloroso imaginar como deveria ser horrível não poder ter ao menos aquela oportunidade. Como poderia ser insuportável ver pessoas mortas e saber que não há nada a se fazer por elas.

     Harry percebeu que os olhos da esposa lacrimejavam, e, mesmo sem entender o porquê, segurou-a pelos ombros e falou, na intenção de distraí-la:

     — Você lembra da minha parceira, Angelina? Ela se feriu por causa da explosão. Não foi nada grave, mas eu gostaria que você ficasse de olho nela quando estiver no hospital. Pode fazer isso? Eu não confio em mais ninguém.

     Natallie fez que sim com a cabeça. É claro que ela podia fazer aquilo. Não conhecia Angelina muito bem, mas, nas poucas oportunidades em que ambas conversaram, a outra se mostrou uma pessoa incrivelmente forte e simpática — além de ter ouvido todas as histórias nas quais Angelina salvara a vida de Harry. Natallie certamente devia muitas coisas à mulher.

      — Farei isso, não se preocupe. Ela ficará bem.

     Harry sorriu e beijou a testa da esposa, indicando que o seu tempo tinha acabado e que ele tinha que ir. Natallie sorriu quando Harry esfregou seus ombros delicadamente e deu-lhe as costas, caminhando na direção oposta, onde Enzo West, que ela sabia ser seu chefe, o esperava.

     Ela respirou fundo e arrumou os cabelos, finalmente dando atenção ao clima extremamente pesado do lugar, que começava a trazer indesejáveis lembranças para a mulher. Natallie sabia que, quando chegasse em casa, pelo fim da tarde, ainda poderia ver rastros de fumaça se misturando ao cinza característico do infinito telhado de Londres.

     Então seus olhos pararam sobre uma pessoa. Uma mulher, mais especificamente. Ela tinha cabelos castanhos e estava com Harry quando Natallie chegara ao local. Vestia uma jaqueta de couro, calças jeans e uma bolsa que atravessava o seu tronco. Era engraçado o modo como ela era bronzeada demais; quase como se não pertencesse àquele cenário frio.

     As duas trocaram olhares por quase um minuto até Natallie balançar a cabeça e começar a andar de volta para o seu carro.

     Ela só queria sair logo dali. E esperava que Harry fizesse o mesmo.

... 

CONTINUA

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