queime a viagem sem volta

NA NOITE EM QUE ELIZE PRESCOTT NÃO MORREU

O carro estava pronto, do outro lado da rua em frente à mansão Prescott, com o motor e os faróis desligados. A festa de aniversário havia acabado, então o jardim estava vazio e todos os corredores em silêncio. Empregados andavam perto da fonte limpando copos de plástico e recolhendo guardanapos, mas as árvores e a pouca iluminação do bairro aliaram-se aos apaixonados fugitivos daquela noite, escondendo na escuridão a primeira parte do plano que haviam traçado.

Elize, dentro da casa dos pais, preparando-se para partir, sentia como se todas as forças do universo estivessem ao seu favor.

Haviam planejado tudo: com o dinheiro e as joias da família que Prescott roubaria do cofre da mãe, conseguiriam chegar ao Texas. Ficariam lá por algum tempo, até que a poeira baixasse, e então seguiriam para o próximo destino. Alugariam um lugar pequeno, trabalhariam em bares e postos de gasolina, sobreviveriam do jeito que fosse preciso. Mas ficaram juntos. Londres seria excluída, e a família perfeitamente falsa que Elize tinha na Europa sumiria da sua lista de problemas. Seria só ela e Scott, para sempre, como recentemente achavam que deveriam ser. 

Uma batida na porta acordou Elize, fazendo-a parar com as mãos a meio caminho da mala. O suéter vermelho preferido dela enroscou entre os anéis em seus dedos como se não quisesse deixá-la partir. Poderia ser um sinal, mas foi completamente ignorado. Elize o puxou até rasgar e correu para atender às três batidas discretas que só poderiam pertencer a uma pessoa:

— Não se esqueceu do nosso jantar, não foi, Elize?

Ela havia esquecido.

Claro, não contou para a mãe, muito menos deixou transparecer em suas feições. Victoria Prescott poderia se tornar uma pessoa assustadora quando se sentia negligenciada. Elize odiava a ideia de ter medo de alguém que deveria amar, mas aquilo acontecia sempre que a mãe levantava uma sobrancelha de maneira descontente. 

— Não esqueci, mamãe. Já estou descendo.

Victoria sorriu satisfeita e se afastou do quarto da filha. O barulho dos seus saltos sumiu gradativamente pelo corredor. Foi como um pesadelo se afastando, e quando ficou sozinha Elize finalmente conseguiu respirar aliviada. Quase colocara tudo a perder por causa daquele maldito jantar! O plano era claro: sumir de um jeito que as pessoas só notariam quando fosse tarde demais. Deixar os pais esperando na mesa principal da mansão com certeza anteciparia as coisas.

Elize pegou seu celular e mandou uma mensagem para Scott, falando sobre o atraso no plano. Pediu para que adiassem as coisas por algumas horas, mas, do outro lado da rua, o carro não se moveu. Ela precisava que ele fosse embora. Não sabia quanto tempo aquele jantar iria durar, e arriscar deixá-lo ser pego pelos seus pais não era uma opção. 

Scott, nos encontramos pela manhã. Você me busca às sete, no portão da mansão.

Ele não respondeu, mas visualizou. Era um péssimo hábito, mas Elize o conhecia bem o suficiente para saber que Scott a obedeceria: seu silêncio significava que tinham um novo acordo. Ele voltaria para buscá-la de manhã. 

Respirando fundo antes de continuar com a encenação da noite, Elize trocou o vestido que usou durante a sua festa de aniversário por um igualmente lindo, mas diferentemente confortável. Passou um batom vermelho sangue nos lábios, em homenagem à transição de idade pela qual passava, e se encarou no espelho: perfeita. Mas não era o suficiente. Não enquanto Scott estivesse naquele carro e ela ali dentro. Elize só se sentiria completa quando finalmente conseguisse ficar a sós com o único homem que realmente a amaria no mundo. Até lá, sua existência não passaria de um momento de espera. 

Depois de um tempo, Scott respondeu um singelo ok ao comunicado de Elize. Ela sorriu, guardou o celular dentro da sua mala de fuga e saiu do quarto. Faria o que sua mãe estava pedindo não só por medo de uma falha no plano, mas também em consideração ao fato de que talvez nunca mais fosse vê-la de novo. Aquela era a oportunidade perfeita para se despedir dos pais. Apesar de não gostar das regras e imposições deles, os amava. Sentiria falta deles. Não eram tão distantes assim.

A mansão Prescott ainda mostrava indícios da festa daquela noite. Todos os convidados haviam partido, mas a comemoração não acabava tão cedo quando se tratava de um aniversário. O costume daquela família era peculiar, mas não bizarro: primeiro uma grande festa, e depois um jantar. Victoria e Stephen Prescott faziam aquilo desde que Elize era pequena. Em todos os aniversários dela, o bolo, os parabéns e o champanhe vinham antes da particular reunião em família ao redor da mesa de madeira italiana.

Era como uma encerrarão. Uma refeição de vitória. A comemoração, naquela parte da festa, era só deles, em homenagem ao fato de que ainda eram perfeitos.

Elize sentou no seu lugar da mesa e permaneceu calada. O pai e mãe já estavam lá, de banho tomado, como se não tivessem acabado de sair de uma exaustiva socialização forçada. Era de se invejar. Elize não conseguia ser legal com todo mundo. Muito pelo contrário, ela tinha o costume desagradável de humilhar e maltratar qualquer um que cruzasse o seu caminho. Na maior parte do tempo, Elize não gostava daquele fato sobre si mesma, mas não podia mudar. Era simplesmente quem ela era. Tinha sorte, na verdade, de ter encontrado alguém que a amava apesar da pessoa horrível que era.

— Ficamos sabendo do seu desentendimento com o nosso segurança — comentou Victoria.

Parecia uma observação casual, mas não era. Mães como ela não mencionavam assuntos como aquele por puro acaso. Se Victoria questionava Elize, era porque sabia de alguma coisa. Talvez até mesmo de Scott.

Elize começou a ficar nervosa.

— Ele tratou mal a Diana.

— Duvido disso.

— Então acredita nele e não em mim? — Elize elevou um pouco a voz — Um segurançazinho? Sério?

Victoria sorriu para a empregada que trouxe uma jarra de água à mesa. Esperou que ela saísse para olhar Elize e responder:

— Não acredito em nada que sai da sua boca desde que começou a andar com aquele garoto, Elize.

Scott.

Ela não tinha o direito de falar dele. Victoria não o conhecia, não sabia o bem que aquele garoto fazia a Elize. Era muito injusto que sua mãe quisesse crucificar uma pessoa sem nem ao menos lhe dar uma chance. Se Victoria o conhecesse, veria que Scott era um filho gentil, um bom namorado. Um... cara legal.

Mas as chances naquela família só existiam quando havia algo interessante a se ganhar. Elize odiava aquilo.

— Ele não tem nada a ver com a nossa conversa, mãe.

Victoria continuaria a discussão de Stephen não tivesse interrompido, batendo com a taça de vinho na mesa de jantar. Seu rosto estava contorcido de raiva, de insatisfação pela conversa e o conteúdo dela. Não era grande fã de Scott, também. Outro hipócrita.

— Deixaremos esse assunto de lado — ordenou — porque, de qualquer maneira, Scott J. Adams não terá nenhuma importância muito em breve. Elize está prestes a ir para Londres e esquecer essa paixão ridícula por um garoto do subúrbio. 

Elize sentiu a resposta entalada em sua garganta. Ela queria gritar que nunca chegaria a Londres, que sua vontade era única e exclusivamente ficar ao lado de Scott. Ele importava, sim. E não era só um garoto do subúrbio. Ele era o único homem capaz de amar Elize naquele mundo, e aquilo o tornava a pessoa mais importante de todas.

Quem mais conseguiria gostar de uma pessoa tão desprezível, afinal? Só outra pessoa desprezível.

— Já arrumou as malas, filha?

— Sim, mamãe.

Não estava mentindo.

— Está levando aquele casaco de pele? Fica ótimo em você.

— Estou. E minhas botas também. Quero estar impecável quando finalmente deixar Westwood.

Outra verdade.

Victoria esticou a mão direita para tocar o rosto da filha. Ela era tão linda. Os cabelos ruivos pareciam feitos de ouro, brilhando com a luz suave do lustre acima da mesa. 

— Você está sempre impecável, meu amor.

Por um momento, Elize vacilou. Pensou em não ir, em seguir as regras dos pais. Fugir e nunca mais vê-los parecia uma maldição agora que ela encarava o sorriso terno da mãe. Por mais que brigassem, Elize amava Victoria talvez mais do que tudo no mundo.

Continuaram a refeição sem mais conversas. Na mesa de jantar dos Prescott, enquanto os resquícios da festa de aniversário cobriam o chão e sujavam as taças vazias de champanhe, um momento realmente bom aconteceu. Eles se sentiram como uma família, mesmo que desestruturara.

E foi assim que Elize percebeu que Scott talvez não fosse o único a amar a pessoa desprezível que ela era.

🔥🔥🔥

Quando o jantar acabou, Elize voltou para o seu quarto. As lágrimas quentes das últimas horas ainda estavam acumuladas atrás dos seus olhos, queimando sua cabeça e a deixando pesada. Era muito para se sentir em um só dia, principalmente para Elize. Geralmente, ela não sentia nada. Precisava se acostumar com todo aquele drama.

Quando faltavam apenas alguns minutos para o amanhecer, o carro de Scott parou dentro da mansão Prescott, atrás da fonte, embaixo de uma árvore. Victoria e Stephen não o veriam porque dormiam na suíte que tinha a sacada para a piscina, mas todo o cuidado era pouco. Precisavam agir rápido para garantir que nada e nem ninguém interrompesse a fuga de Elize da torre da princesa amaldiçoada.

Era como estar em um filme, e seu príncipe encantado a esperava para ajudá-la a finalmente se libertar.

Quando estiver pronta.

A mensagem de Scott deveria ter servido de incentivo, mas provocou exatamente o efeito contrário: ao ler aquelas palavras, Elize percebeu que não estava pronta. Que, acima de tudo, não tinha certeza do que queria. Claro, seu maior desejo era ficar ao lado de Scott. Mas será que precisavam mesmo sumir? Deixa a California, seus amigos, a escola... E se não conseguissem trabalho? E se começassem a brigar ou fossem presos? Como ficaria a mãe de Scott com aquele padrasto terrível que o garoto rinha?

Além de tudo, aquele jantar com os pais havia feito algo mudar. O casaco de pele da mãe jogado sobre a cama de casal do seu quarto, o gosto do champanhe caro ainda impregnado em seu paladar... Aquelas coisas eram especiais. Eram coisas de Elize. E ela não poderia se desfazer, nem viver sem elas, por mais que tivesse achado que sim por alguns segundos.

Desculpe, Scott. Eu não posso fazer isso.

Seus dedos digitaram a mensagem sem qualquer comando consciente. Foi automático, como se seu cérebro já estivesse pensando naquelas palavras há algum tempo. Dentro de Elize uma sensação de alívio tomava conta de cada célula, feliz por não precisar abandonar tudo o que aprendera a amar com os anos. No fundo, ela sabia que não poderia nunca ter tudo o que desejava. Sacrifícios seriam necessários, e, por mais que ainda quisesse ficar com Scott, não conseguiria fazer aquilo do jeito que estavam planejando. Era duro demais.

Scott ficou off-line assim que visualizou a mensagem. Elize sentiu um calafrio e andou até a sacada para verificar se o carro dele ainda estava escondido nas sombras. Por algum motivo, torceu para ver o jardim vazio, mas ele ainda estava ali: os faróis ligados, seu dono caminhando para longe, na direção da mansão Prescott, com as mãos ao lado do corpo e uma expressão nada feliz no rosto.

Elize pensou em pedir para ele ir embora, mas decidiu que precisavam daquela conversa. Era o jeito maduro de lidar com as coisas, e, por mais que os dois não tivessem agido de maneira madura desde que se conheceram, talvez fosse a hora de começar.

Tragicamente, Elize estava errada. 

A existência deles como um casal estava amaldiçoada a não aproveitar qualquer tipo de começo. A não ser que houvesse uma grande tragédia envolvida.

... 

CONTINUA

N/A: 

Suspeito que a essa altura vocês já têm teorias formadas a respeito de toda essa confusão e o que levou o Scott a matar a Elize. Me contem, quero muito saber <3

Ah, e pra quem não sabe, no sábado estarei lançando uma história em parceria com a  aqui no Wattpad. Ela vai ter a mesma vibe que Queime Tudo, então fiquem de olho nos nossos perfis e no Instagram que fizemos para trazer novidades (badkarmawattpad) porque vcs vão amar <3

beijão e até a próxima

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top