queime a hora do pesadelo
DOIS MESES DEPOIS QUE ELIZE PRESCOTT NÃO MORREU
Harry White chegou ao Tártaro quando as chamas já tinham sido contidas. Sua parceira, Annelise, vinha ao lado, correndo com os cabelos bagunçados por ter sido acordada no meio da noite. White estava impecável, pois não costumava dormir cedo. Seus horários ainda bagunçados serviam de desculpa, coisas que apenas o fuso horário britânico explicaria.
— Onde estão os corpos?
O bombeiro, visivelmente confuso, olhou para Annelise e balançou a cabeça. Era uma pergunta extremamente fácil: na ligação feita ao serviço de emergência, o segurança do Tártaro relatou um incêndio, um desastre que começou durante a apresentação de uma banda. Deveria haver pessoas dentro do bar, músicos e clientes, mas o salão estava vazio — queimado, mas vazio.
— Não sabemos.
Harry e Annelise se olharam. Estranho. Nunca haviam presenciado algo assim antes.
— Vamos falar com o segurança.
Com White em seu encalço, Annelise seguiu na direção do homem alto parado perto de uma viatura. Seu terno negro estava impecável, mas cheirava a fumaça. Ele não parecia aflito, nem com medo, nem traumatizado.
— Boa noite. Sou Annelise, esse é o meu parceiro. Queremos fazer algumas perguntas.
O homem olhou para os dois policiais e concordo:
— Claro. Qualquer coisa para ajudar.
🔥🔥🔥
Elize pisou no acelerador até sentir que o carro poderia explodir. No banco do passageiro, Scott afundava cada vez mais contra o estofado. Ainda sentia o fogo perto da sua pele, mas não estava com medo. Toda a sua existência havia perdido o sentido. Não adiantaria nada se desesperar ou gritar, espernear ou implorar; estava fodido. Completamente fodido.
Se Elize batesse aquele carro naquele exato momento, não faria diferença. Scott já havia aceitado o seu destino. Na verdade, preferia que acontecesse o quanto antes. Cada minuto ao lado da maluca endiabrada era um minuto de tortura psicológica e física. Seu corpo todo estava dolorido, sua cabeça não raciocinava mais. Scott só conseguia pensar nos gritos saindo de dentro do Tártaro enquanto o fogo consumia o esqueleto do bar.
Um pesadelo.
— Para onde estamos indo? — ele perguntou.
Elize estava tão feliz dirigindo aquele carro que chegava a ser assustador.
— Para um lugar especial — respondeu ela, sorrindo — Você vai amar.
Scott duvidou muito daquilo. Qualquer coisa que vinha de Elize nos últimos dias simplesmente não o agradava mais. Diferente de antes, ela agia como se não tivesse nada a perder. Aquele medo, aquela insegurança por conta da família e questões sociais de antes havia sumido. Scott a conhecia bem o suficiente para saber que aquilo não era um bom sinal.
Quando o carro parou, Scott abriu os olhos. Estavam na casa dele, mas já era muito tarde. Todas as luzes estavam apagadas, e com certeza sua mãe e Greg dormiam no andar superior. Ele não queria acordar nenhum deles, mas Elize pouco parecia se importar. Assim que o motor foi desligado ela saltou para fora do carro e andou na direção da porta de entrada como se fosse a dona do lugar.
Scott seguiu para dentro de casa, sempre na cola de Elize. Pediu para que ela voltasse, para que saísse, mas foi completamente ignorado.
— Hoje vou te dar a chance de observar algo incrível — ela disse — Então fique agradecido. E quieto.
Scott não entendeu uma única palavra do que Elize disse, mas não discutiu. Havia um brilho estranho no olhar dela que fez o seu coração gelar. Ele pode jurar que viu suas pupilas crescer e ganhar bordas vermelhas.
Estava ficando maluco.
Elize subiu as escadas da casa de Scott com os saltos tilintando a cada degrau. A Madeira das tábuas era velha e rangia. Ele sabia que só aquilo seria o suficiente para acordar a mãe e o padrasto. Scott perdera as contas de quantas vezes fora dedurado por aquele barulho irritante.
— Venha, vai ficar aí?
Do topo da escada Elize já estava impaciente. Ela revirou os olhos quando Scott deu um pulo e finalmente a seguiu. Os degraus fizeram menos barulho com ele, porque estava de tênis. Mas também foi o suficiente, como das outras vezes, para o padrasto acordar.
— Que porra você está fazendo, moleque?
Greg usava um roupão aberto por cima da cueca, e estava irritado. Olhava fixamente pra Scott, e sua voz calejada entregava quão profundo estava sendo o sono que acabara por ser atrapalhado. Elize, bem ao lado dele, sorriu e tossiu. Só então Greg a notou. Ele deu um passo pra trás, a olhou de cima a baixo de um jeito que fez Scott querer socar a cara dele e limpou a garganta.
— Elize? O que está fazendo aqui?
Elize deixou a cabeça pender levemente para a direita. Se tinha uma coisa com a qual Greg deveria estar acostumado, era com a presença dela, principalmente durante as madrugadas.
— Como assim?
— Você sumiu pôs bastante tempo daqui. — Se aproximou, como se contasse um segredo: — Achei que finalmente tinha largado o merdinha.
A risada articulada de Elize ecoou por toda a casa. Greg não entendeu o motivo da graça, mas sustentou uma expressão amigável por puro interesse. Ele não tinha o mínimo de vergonha na cara, puxando o saco de Elize por ela ser a pessoa mais rica que teve a oportunidade de conhecer.
— Isso é tão irônico — ela limpou uma lágrima do canto do olho. — Você tem razão! Ele é mesmo um merdinha. Eu deveria ter largado o Scott faz muito, muito tempo.
Parado no meio do lance de escadas, Scott apertou o corrimão em resposta à raiva. Morta ou não, Elize não tinha o direito de falar dele daquele jeito. Vadia pretensiosa!
— Então é só você terminar com ele — apoiou Greg, o cheiro de vodca escapando em seu hálito — Tem coisas mais interessantes por aí.
Elize balançou a cabeça.
— É tarde demais, Greg. O estrago já foi feito. Sendo sincera, gostaria que alguém tivesse me falado esse tipo de coisa antes. Teria poupado muito sofrimento.
A voz dela ficou baixa, deixando a confissão um pouco mais pessoal. Confuso, Greg olhou pra Scott e lhe lançou um olhar muito estranho. Elize o entendeu perfeitamente: mulheres.
— Não tem mais nenhuma salvação para mim — Elize continuou, já retornando o tom habitual — Mas pensei muito sobre isso e acho que posso salvar uma pessoa que está destinada a acabar do mesmo jeito que eu.
Sob o olhar confuso de Greg, Elize o puxou pelo roupão e o jogou da escada. Scott quase foi atingido e levado junto, mas pulou para o lado no último minuto e viu o padrasto rolar pelos degraus como uma bolinha de ping-pong perdida.
Ele sentiu o ar sumir dos pulmões, com medo de olhar para cima e encarar de Elize.
Definitivamente ela estava maluca.
🔥🔥🔥
— Acorda!
Scott sentiu aquele grito fincar em sua pele. De uma hora para outra Elize não se parecia mais com a garota que havia passado quinze dias atormentando a sua vida: ela era um monstro. Com olhos negros, unhas pontudas e uma voz estranhamente rouca.
Greg estava sentado na cadeira da mesa da cozinha. Uma parte da sua testa estava amassada, com certeza algo que aconteceu durante a sua queda. Ele olhou ao redor e entrou em desespero quando encontrou Elize.
— Calminha — ela o empurrou assim que Greg tentou levantar.
Os pés da cadeira rangeram, dando sinais de que não aguentariam mais uma investida de peso. Scott ficou assustado com a força de Elize, quando pensou a respeito. Ela nem pareceu se esforçar para derrubar Greg.
— O que você quer?
— Nada que você pode me dar.
— Minha mãe vai acabar chamando a polícia — disse Scott, se aproximando do ouvido dela.
Queria reverter aquela situação. Só Deus saberia dizer o que aconteceria se Greg decidia-se bater em Elize do mesmo jeito que batia em sua mãe. Scott acabaria saindo na porrada com ele, e poderia ser fatal.
— Ela está na minha casa — Elize respondeu. — Fazendo a janta, ou sei lá. Garanti que fosse ficar longe.
— Sua namorada é maluca! — gritou Greg — Tira essa vadia psicótica daqui!
Ele mal fechou a boca e Elize o acertou com um dos pratos sujos largados na mesa.
— Você não lava nem a louça que suja — ela resmungou.
Scott pensou que Elize também não lavava, mas decidiu guardar o comentário para si.
— Elize, vamos embora.
— Fica quieto, Scott, antes que eu decida arrancar a sua língua.
Ele se calou. Algo na ameaça dela indicava que aquela não era mais uma de suas brincadeiras, que de fato Elize estava prestes a machucá-lo de verdade.
— Levanta — Elize ordenou, puxando Greg para que ficasse em pé.
O sangue do machucado em sua testa escorria pelo rosto e pelo pescoço, e o ar começou a absorver o cheiro de suor, comida estragada e medo. Scott passou a ficar enjoado, mas Elize nem pareceu notar. Se divertia demais para ao menos se incomodar.
— Lave a louça. Vamos esperar.
Greg a olhou extremamente confuso. Então, lentamente, sua atenção foi para Scott, como se quisesse confirmar o que tinha acabado de ouvir.
— Eu já sabia que você era burro — Elize chamou a sua atenção — Mas não pensei que seria tão burro. Sou eu que estou dando as ordens aqui, não ele. Está na hora de todo mundo entender isso.
Houve um pequeno segundo de tensão, e Greg começou a rir. Junto com o cheiro de sangue, suor e comida estragada veio o rastro do hálito escorrendo pelos dentes amarelos dele.
— Eu cheguei a apostar que vocês acabariam matando um ao outro, mas dupla de terroristas? Nunca imaginei. Qual é o plano? Seguir pela vizinhança fazendo justiça por cada dona de casa desocupada que não sabe fazer uma lasanha direito?
Elize não se moveu quando ele avançou na direção dela, segurando o seu rosto com uma das mãos. Os dedos sujos de sangue mancharam as bochechas delicadamente maquiadas do demônio de Westwood, mas não surtiram efeito algum em sua expressão.
Scott foi quem agiu, avançando na direção de Greg assim que os dedos do padrasto encostaram na namorada. Ele foi tomado por uma ira que Elize nunca havia presenciado, empurrando o homem mais velho e mais pesado contra a cadeira da cozinha, que finalmente cedeu.
A Madeira dos pés e do encosto viraram pequenas estacas que atravessaram o braço direito de Greg. Mais sangue jorrou, manchando o ladrilho branco da cozinha. Scott começou a acertá-lo assim que se estabilizou, e continuou socando o rosto gordo do padrasto até que as suas mãos ficaram vermelhas e dormentes. Foi como se a dor valesse a pena.
Era a sua vingança, finalmente. E enquanto a cena se desenvolvia, sangrenta, feia e cruel, Elize permaneceu parada perto da porta, com os braços cruzados e um sorriso triunfante no rosto.
Não teve como Greg se defender, nem lutar, nem tentar conversar ou xingar. Scott estava descontrolado, os olhos vermelhos nas órbitas e as veias do pescoço saltando como se fossem explodir. Ele não pensava, só agia, e quando pegou uma das pernas da cadeira para enfiá-la do estômago de Greg nenhum pensamento sensato cruzou a sua mente. Foi como se não houvesse mais nada no mundo inteiro além dos seus impulsos, da sua vontade de matar o homem que mais odiava na vida.
Quando Scott percebeu o que tudo aquilo significava, já era tarde demais. O estrago havia sido feito, o sangue escorria pelo buraco na barriga de Greg e melava as suas mãos. Não havia um ruído além do sofrimento dele tomando o ar.
Elize se aproximou dos dois, andando com os saltos sobre a poça de sangue. Ela delicadamente se abaixou ao lado de Scott e o abraço pelas costas. Passou os dedos pelo seu pescoço, beijou a suas bochechas, sentiu cada gota do suor nervoso dele, o quente toque de sua pele por dentro da camiseta enquanto seus braços o rodeavam.
— O que eu fiz?
Aquela pergunta ficou entalada na garganta de Scott, que emitiu apenas um ruído assustado. Elize beijou sua bochecha mais uma vez, deixando a marca do batom vermelho perto dos lábios dele. Então esticou as mãos, descendo os dedos pelos seus braços até que alcançasse o ponto onde Scott segurava a estaca improvisada. Ele tremia, e Greg os encarava com os olhos arregalados. Era como se ainda não acreditasse que os dois estavam fazendo aquilo, como se pensasse que era um pesadelo estranho.
Não era.
Elize rodeou os dedos de Scott com os seus. O contraste foi gritante: pele limpa, clara, de unhas feitas e anéis brilhantes contra calos, tatuagens e sangue. Com um impulso, ela empurrou a madeira mais fundo no corpo gordo. Fez barulho, um barulho nojento. Mais sangue escorreu. O cheiro piorou, um grito passou pela garganta de Greg como se ele finalmente entendesse que não era um pesadelo.
Elize respirava contra a bochecha de Scott, o nariz encostado na pele e os lábios deixando mais marcas borradas de batom. Ele tremi entre seus braços, respirava com dificuldade e sentia o toque das mãos dela quase tão quentes quanto o sangue. Quando começou a chorar, as lágrimas escorreram pelo rosto dos dois.
Empurrou mais a estaca. Não dava mais para saber quem dominava os movimentos.
Mais gritos.
Mais sangue.
Dessa vez Scott se soltou e pulou para trás, acuado como um animal assustado. Ele foi até a parede mais próxima a abraçou os joelhos, olhando para o padrasto morrendo dolorosamente.
Elize virou alguns centímetros do rosto para encará-lo, mas não se aproximou. Precisava terminar o trabalho.
Com as pontas dos dedos ela puxou a estava de dentro de Greg. Fez questão de arrastar a Madeira para cima, rasgando órgãos e pele no trajeto, escutando cada gemido doloroso como se fosse música.
Scott não se moveu. Só observou. Não soube o que pensar, nem o que fazer, mas entendia cada ação de Elize como se os dois fossem a mesma pessoa. Depois daquele tempo, estavam conectados. Sua vingança era a dela, a raiva também. A dor. O ódio.
Talvez por isso Elize se sentiu tão bem quando as unhas negras cresceram pelos seus dedos como garras de uma criatura sombria, passando pelo buraco deixado pela perna da cadeira de madeira e entrando em Greg. Scott já tinha visto aquilo, já tinha reparado nos olhos avermelhados e na voz estranha que Elize adotava em momentos oportunos. Mas nunca havia presenciado a abominação crescendo pela sua pele, traçando caminho pelos órgãos de um homem quase morto na intenção de fazê-lo sofrer mais.
Foi cruel.
Foi feio.
Foi sangrento.
Scott fechou os olhos quando Elize rasgou Greg de dentro para fora. Uma onda de sangue explodiu pela cozinha e sujou as paredes, a mesa e os restos da cadeira quebrada. O cabelo de Scott ficou pegajoso, seu tênis branco, vermelho.
Elize lambeu as unhas enquanto elas voltavam ao tamanho normal, admirando-as por todo o caminho. Havia sangue nela também, mas sua aparência soou incrivelmente harmônica: foi como se combinasse com ela. Como se tivesse sido feita para usar vermelho.
Elize levantou e foi até onde Scott estava, olhando-o daquele jeito de quinze dias antes, quando queria uma carona para casa:
— Onde ficam os esfregões dessa casa?
...
CONTINUA
N/A:
Eu não sei vocês, mas tenho cada dia mais certeza de que a Elize é o amor da minha vida.
Quero bater um papo com vocês sobre a reta final da história! Infelizmente falta pouco para acabar. Me encontra no Instagram (Andresa7ios) pra gente conversar!
Até a próxima ❤️
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top