Parte 1
"Namorar:
v.t. Procurar inspirar amor a; requestar,
cortejar; fazer a corte a.
Cobiçar, desejar vivamente possuir."
Algumas vezes coisas grandes surgem das coisas simples ou até mesmo das insignificantes. Não pense, caro leitor, que irá encontrar aqui um romance como os que os autores do passado nos deixaram. Na verdade, tudo será muito singelo, pouco (ou nada) extraordinário. A história que irei lhe contar se passou há muito tempo na cidade maravilhosa do Rio de Janeiro, na época em que os títulos ainda vigoravam entre os mais abastados; quando se podia ouvir o farfalhar dos longos vestidos das damas arrastando-se pelos grandes salões; quando os casamentos se faziam por arranjos repentinos e a conquista remetia-se apenas aos jovens humildes que possuíam a sorte de encontrar o amor nas poucas vezes em que alguma bela senhorita era realmente cortejada.
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As flores encontravam-se abertas pelo caminho e exalavam seu perfume com toda sua suavidade. Dom Guilherme olhou para o lago e, ficando de cócoras, tocou a água fria, movimentando as mãos e produzindo pequenas ondulações. Ele apertou os olhos e soltou o ar dos pulmões como se o tivesse prendido ali por muito tempo. O amor podia ser algo doloroso, pensou ele. Achava que Victória o amaria depois de um tempo, mas, da pior maneira, descobrira que o coração dela encontrava-se mais inacessível que as joias da coroa.
À primeira vez que vira Victória, fora nos bailes da corte. Sua figura miúda e delicada chamara-lhe a atenção no mesmo instante e o atraíra de tal forma que ela tomou-lhe os pensamentos por dias. Os cabelos castanhos pareciam brilhar sob as luzes dos candelabros espalhados pelo salão; os pequenos lábios rosados e as bochechas coradas conferiam destaque a sua tez acetinada e seus olhos azuis cintilavam com o brilho de todas as constelações. Não foi difícil para que ele se apaixonasse pela pequena fada da província.
A certeza de que deveria fazê-la sua esposa tomou conta de todo o seu ser, fazendo vibrar dentro dele todas as aspirações de um jovem amante e sonhador. Embora não fosse dado a vaidades, Dom Guilherme sabia que sua austeridade, porte altivo e figura atlética conferiam-lhe um ar sedutor difícil de ser desprezado. Não era cego de não notar como as damas cochichavam a seu respeito e não era tolo de não perceber que elas lançavam a ele olhares cobiçosos. Algumas chegavam mesmo a insinuar-se e até as mais castas não resistiam ao ímpeto de espiá-lo de esguelha.
E foi movido pelo fogo que lhe consumia o espírito de dia e de noite que Dom Guilherme se dispôs a pedir a mão de Victória, ainda que nem ao menos tivesse trocado com ela uma palavra. Falou direto aos pais da jovem, na certeza de que ela certamente não o recusaria. Além do mais, casamentos arranjados se faziam todos os dias e não era nenhuma novidade que se ordenasse assim.
O pai, um comerciante recém-enriquecido, deslumbrado com a perspectiva de ter seu nome vinculado à de uma família tão benquista e respeitada, não hesitou em conceder ao nobre fidalgo a permissão para que Victória se unisse a ele e nem tampouco a mãe da moça fez alguma objeção. E, embora quando ele lhe fizera o pedido, Victória tivesse se mostrado pouco entusiasmada e até um tanto arredia, Dom Guilherme não desistiu de seus anseios. Interpretou aquela forte hesitação como a timidez e o medo natural que carregam as donzelas.
Mas o casamento lhe mostrara que sua ideia a respeito de que com tempo ganharia a afeição de Victória estavam equivocadas. Já nas primeiras núpcias do casal, a dama se mostrara rebelde a todas as tentativas de Dom Guilherme de aproximar-se. Às noites, ela chorava copiosamente quando ele a visitava em sua alcova. A princípio, Dom Guilherme sentia-se culpado como um réu que tivesse cometido o pior dos crimes por saber que somente sua presença fazia lágrimas jorrarem daqueles grandes olhos. Mas, com o passar das semanas, aquilo começou a irritá-lo profundamente, pois as ações da dama feriam demasiadamente seu orgulho viril de modo que ele resignou-se a ignorar a presença dela, deixando que cada um vivesse em seu próprio mundo.
Tentou veementemente cumprir com a sentença designada a si mesmo. Mas era difícil observar a esposa, sentada em sua cadeira em frente à janela, cerzindo, com toda sua áurea angelical, sem sentir uma ternura apoderar-se dele e um desejo incontrolável de quebrantar as barreiras impostas por aquela criatura de coração e temperamento severos.
E ao buscar consolo em algum objeto que lhe remetesse à sua senhora, Dom Guilherme achou, no cesto de sua andorinha aprisionado, o bilhete de um amante ardoroso. Aquilo foi o ápice para fazer com que suas entranhas se retraíssem e o espectro do ciúme o consumisse. Achou-se dignamente no direito de tirar satisfações com Victória, mas ela, em vez de parecer constrangida, mostrou-se ultrajada.
- Vossa Excelência não tinha o direito de mexer em minhas coisas! - protestou.
- Como ousa me trair bem debaixo do meu nariz? - ele a inquiriu, sentindo suas faces esquentarem com as emoções que faziam com que suas veias pulsassem agitadas e inquietas.
- Está julgando os fatos, meu senhor, à sua maneira. Se me deixar explicar...
Dom Guilherme estava alterado em demasia e não quis ouvi-la. Retirou-se da presença da esposa e cavalgou até as margens do rio que ficava em sua propriedade. Apeou do cavalo e se pôs a pensar, tentando acalmar os nervos e aquietar o espírito.
Divagou sobre a situação e concluiu, com a ajuda do ar puro e das inspirações divinas com a qual o Criador agraciara os mortais, que deveria pagar como um verdadeiro cavalheiro pela prepotência e soberba que lhe acometeram o coração. Não queria continuar com o desafeto da jovem esposa e não queria abrir mão dos sentimentos que carregava consigo, pois não podia aceitar que aquele amante a roubasse dele. Não sem que ao menos lutasse.
Estava disposto a esquecer-se daquela carta e das palavras de amor contidas nela e dar uma chance aos dois - uma última chance de cortejá-la, pois, ainda que austero, sendo um homem de uma natureza afável e tendo como exemplo um casamento tão abençoado e cheio de todo amor como fora o de seus pais, não podia senão desejar o mesmo amor espontâneo para si mesmo.
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