Capítulo 4 - Cante de novo
Abri os olhos com um sentimento de ansiedade dentro do peito. Eu nem havia conseguido pregar os olhos direito. Era a primeira noite que eu dormia fora de casa, no CBA, o colégio dos sonhos de qualquer um que ame dança, canto e teatro tanto quanto eu.
Além do mais, a saudade de casa já apertava o meu peito. E a preocupação de dar de cara com a Deborah por aí também contribuía para a minha insônia.
O dia já havia amanhecido e logo o sinal anunciando que tínhamos que nos levantar tocaria. Haviam nos explicado que o sinal sempre tocava 10 minutos antes das refeições e as 6:15 da manhã, para que todos nós nos levantássemos e tomássemos um banho. Uma hora depois, o sinal para que fôssemos para o refeitório tocava para tomarmos o café da manhã e irmos para a sala de aula.
No entanto, como nós ainda não sabíamos em que turma ficaríamos, depois do café da manhã, antes de irmos para a nossa primeira aula, eu e Clara — e provavelmente todo o mundo — combinamos de irmos juntas olhar o mural de avisos para vermos em qual turma ficaríamos.
O sinal tocou e eu me levantei, pegando uma roupa normal para vestir. Arnaldo havia nos avisado que a primeira aula que teríamos era de canto, portanto, não precisávamos nos preocupar em vestir uma roupa confortável, o que significava que eu poderia muito bem vestir a minha calça jeans.
Clara se levantou logo em seguida, mas eu entrei primeiro no banheiro. Por sorte, todos os alojamentos tinham uma suíte. Tomei um banho rápido, repleta de nervosismo e alegria afinal, hoje eu teria a minha primeira aula!
— Seria muito legal se nós duas ficássemos na mesma turma, não é? — indagou Clara, colocando um pedaço de pão na boca.
— Poxa, nem me fale. — Eu concordei, olhando para as mesas já lotadas do refeitório. — Seria mesmo.
De mil pessoas, somente quatrocentas haviam passado na avaliação de ontem e mesmo assim o refeitório continuava abarrotado de pessoas.
— É uma pena que os professores não façam as suas refeições junto com os alunos. — observou Clara, passando manteiga em um biscoito Cream Cracker. — Seria realmente interessante comer com a visão daqueles gatos.
— Mas comer com eles significaria comer junto com a Deborah também. — Clara bufou, jogando o biscoito de volta em sua bandeja.
— Aquela... Bruxa!
Ao olhar mais uma vez ao meu redor, eu percebi que algumas pessoas olhavam na direção que eu estava com Clara e cochichavam. Eu tinha certeza de que a notícia do meu atraso já havia vazado pelos corredores.
Posso jurar que agora todos só me chamam de Pequena Rebelde por aí, inclusive Barbara, que havia arranjado protótipos de Barbie semelhantes a ela para andar junto na hora do intervalo. O sinal tocou e eu e Clara nos levantamos junto com outros alunos que também haviam terminado de comer.
Todo o mundo estava ansioso para saber em que turma ficaria. Saímos do refeitório e fomos direto para o primeiro andar, na direção do mural de avisos.
Meu coração acelerou a medida em que eu chegava mais perto junto com Clara. Uma multidão de pessoas parou na frente do mural de avisos, bloqueando a minha visão.
Alguns comemoravam ao verem seus nomes em uma respectiva turma e outros reclamavam quando viam que haviam ficado na turma da Deborah.
Quando algumas pessoas se dispersaram, eu e Clara abrimos caminho e ficamos bem na frente das folhas com os nomes das turmas. Procurei meu nome na turma da Deborah, mas não achei, o que me fez respirar aliviada.
Porém, eu não estava na turma do Bruno também.
Muito menos na do Leandro.
Também não achei meu nome na lista do Tony.
Prendi a respiração quando passei os olhos pela folha com a turma do Arthur e senti vontade de realmente me matar quando vi o meu nome na terceira linha da lista. Eu estava mesmo na turma do Arthur.
— Não acredito nisso! — guinchei, sentindo uma vontade louca de voltar para São Paulo. — Eu estou perdida!
— O que houve? — Clara perguntou, olhando-me preocupada devido ao meu desespero.
— Eu estou na turma do Arthur! — falei, desesperada, apontando para a folha correspondente a turma de Arthur.
— Ai meu Deus! — Clara colocou as mãos em meus ombros, fitando-me bem de perto. — Fica tranquila, Dianna. Se você mostrar empenho, tenho certeza de que ele não vai mais pegar no seu pé.
— É, talvez você tenha razão. — ponderei, tentando pensar positivo. — Em que turma você ficou? — perguntei, tentando ignorar o frio que eu senti em minha barriga.
— Na do Leandro! — disse ela, toda contente.
— Que legal, fiquei na turma do Bruno! — Barbara gritou, vindo para o meu lado. — Boa sorte, Pequena Rebelde. Acho que você precisará muito agora que descobriu que está na turma do Arthur.
— Cale a boca, Barbie falsificada! — Clara defendeu-me, aproximando-se de Barbara lentamente.
— Não me mande calar a boca, sua idiota. — retrucou Barbara, fuzilando-a com o olhar.
— Se você me chamar assim novamente eu juro que corto a sua língua com um alicate de unha e dou pra sua mãe de presente de natal! — Entrei no meio das duas, impedindo que se engalfinhassem no corredor.
— Parem, por favor. — pedi, segurando o braço de Clara com força.
— Vamos embora, Barbara. — Uma das amigas de Barbara veio para o lado dela, nos encarando de forma esnobe. — Deixe essas fracassadas para lá.
— Fracassada é a sua bunda suada e cabeluda! — respondeu Clara, enquanto as duas se afastavam.
— Vamos para a sala de aula, ok? — Clara assentiu, concordando comigo. Seu rosto estava vermelho de irritação. — Boa sorte no seu primeiro dia com o Leandro.
— Boa sorte com o Arthur. — Ela riu, dando-me um abraço rápido. — Por favor, tente não se enforcar.
— Tudo bem, pode deixar. — Sorri, me afastando de Clara e indo na direção contrária.
O CBA é uma escola imensa. Possui diversas salas de aula para canto, diversos estúdios de dança gigantescos e salas de aula de teatro. Fora o salão principal, o refeitório, os inúmeros alojamentos e as outras salas que eu ainda nem conhecia. As salas de aula ficavam no segundo andar, o que foi um alívio para as minhas pernas cansadas.
Corri pelas escadarias afoita, já que os elevadores estavam em manutenção. Torci para que eu não estivesse atrasada, já que eu ainda não sabia qual era o horário exato da primeira aula.
Quando entrei na sala, ela já estava parcialmente lotada. Haviam alguns lugares sobrando, mas preferi me sentar na terceira fileira do canto. Ignorei os cochichos dos outros alunos e fiquei observando as folhas brancas de ofício e outros materiais como lápis e canetas que estavam em cima da minha carteira.
Arthur entrou logo em seguida, usando uma roupa tão formal quanto a de ontem. Uma calça social cinza e uma blusa social branca com um blazer da mesma cor da calça. Seu sapato brilhava e ele usava uma boina cinza na cabeça que só lhe deixava ainda mais charmoso. Ele trazia consigo uma bolsa de couro pendurada de lado em seu ombro. Arthur a colocou em cima de sua mesa e se sentou, olhando para os alunos que já estavam ali na classe.
Seu olhar parou em mim assim que me viu.
— Pequena Rebelde! — saudou ele, abrindo um sorriso irônico. — Fico feliz que tenha trocado a bateria do seu relógio, já que chegou na hora hoje. — Ele fechou o rosto quando viu que os alunos riram de sua piada. — Eu fiz a piada para mim, não para vocês. Tenham compostura, eu não vou facilitar suas vidas aqui dentro porque vocês não são diferentes ou melhores do que ninguém!
Os alunos rapidamente pararam de rir, e eu sorri internamente por ele ter colocado todos eles em seu devido lugar. Logo em seguida, Arthur abriu uma pasta e começou a anotar algumas coisas em uma folha de papel. Depois, se colocou no meio da sala de aula e olhou para nós.
— Como esse é o nosso primeiro dia de aula, quero que cada um faça uma apresentação breve. Depois, passarei uma parte teórica sobre canto para copiar e se der tempo, quero ouvir alguns de vocês cantando.
Alguém deu três batidas na porta e colocou a cabeça para dentro da sala, revelando mais quatro pessoas temerosas ali fora. Se estivessem atrasados, tenho certeza de que eu seria retirada do posto de Pequena Rebelde rapidamente.
— Com licença, professor Arthur. — disse a única menina do grupo.
— Vocês deram sorte que ainda falta um minuto para a aula começar. — Arthur encarava seu relógio de pulso com um olhar de advertência no rosto. Os cinco entraram na sala procurando lugares para sentar, mas notei que pareciam acuados por conta do que Arthur havia dito. Eles tiveram muita sorte mesmo. — Agora podemos começar com as apresentações. — Arthur esfregou uma mão na outra, empolgado.
Passou os olhos pela sala de aula de um canto a outro lentamente. Me abaixei em minha cadeira para que ele não me notasse.
— Pequena Rebelde, vamos começar com você.
Droga.
— Fique de pé e diga seu nome, sua idade, de onde veio e como você se define. Isto é, suas qualidades e defeitos. — Respirei fundo e me levantei, arrastando a cadeira que eu estava sentada para trás. Toda a atenção se voltava para mim.
— Eu sou Dianna Smith, tenho vinte anos e nasci em São Paulo, mas minha família paterna é dos Estados Unidos, da cidade de New Haven, o que explica o sobrenome americanizado. — Dei uma risadinha sem graça, tentando parecer mais desinibida do que eu realmente era. — Eu sou uma garota muito sonhadora e criativa. A minha timidez não foi resolvida com as aulas de teatro, mas não é nada tão preocupante ao ponto de me impedir de fazer as coisas. Também me considero uma pessoa muito ansiosa, mas quem não é assim hoje em dia? — Mordi o lábio inferior, nervosa. Eu sentia meu rosto esquentando cada vez mais e resolvi escondê-lo tirando algumas mechas do meu cabelo de trás da orelha.
— Hm, interessante. — Ele disse, sorrindo sugestivamente.
Notei que Arthur ainda fazia sua análise mental quando me sentei.
Seus olhos eram ainda mais bonitos pessoalmente, e eu me repreendi por ter reparado nisso.
[...]
O refeitório se encontrava totalmente tumultuado e as conversas paralelas só me irritavam à medida que eu via que algumas pessoas ainda falavam sobre mim. Tenho certeza de que o meu atraso ontem nunca vai ser esquecido. O lado bom nisso tudo é que grande parte dos alunos transbordava empolgação, então eu meio que fui deixada de lado quando o assunto da primeira aula no CBA preencheu o falatório das mesas.
Clara não parava de falar no quanto o Leandro é lindo e no quanto é difícil prestar atenção em alguma coisa com aqueles olhos e aquele corpo perfeito tão perto de si. A minha aula de canto não foi tão ruim quanto eu esperava. Claro que eu fiquei apavorada, principalmente quando Arthur me mandou cantar na frente de todo o mundo, mas depois disso as coisas ficaram um pouco melhores.
— Dianna, venha até aqui, por favor. — Arthur me chamou com a mão enquanto posicionava sua cadeira de lado, para que ele visse os alunos e a mim ao mesmo tempo.
Eu fui sem questionar, mas as minhas pernas estavam tão bambas quanto gelatina. Andei devagar até ele com a esperança de que se eu andasse no ritmo de uma tartaruga a aula acabaria e eu poderia sair da sala de aula como um foguete. Mas é claro que aquilo não aconteceu.
Arthur me entregou um microfone e disse:
— Quero que você cante uma música de sua escolha.
Eu comecei a cantar sem acompanhamento de um instrumento a primeira música que me veio à cabeça. Minhas mãos tremiam tanto que eu fiquei com medo de que todo o mundo percebesse isso.
— É nítido que você tem uma voz bonita e uma grande potência vocal, mas a sua entonação não está boa. Você está deixando que a sua timidez atrapalhe seu desempenho, o que consequentemente, faz a sua voz travar. Que tal tentarmos novamente dessa vez? — O jeito atencioso de Arthur fez com que eu me surpreendesse.
Sentado de onde estava, ele observava todos os meus movimentos. Seus ouvidos eram de músico, então com certeza ele estava atento a qualquer falha que eu pudesse cometer, e isso fez com que eu o admirasse.
Fechei os olhos e tratei de me concentrar em mim mesma. De repente, foi como se tudo tivesse desaparecido. Cantei outra vez sem me preocupar com as vozes negativas em minha cabeça.
— Isso foi ótimo, bem melhor! — Arthur se levantou da cadeira e abriu um sorriso satisfeito. — Vou passar para você uns exercícios de respiração. Lembre-se que o diafragma é um de nossos instrumentos auxiliares mais importantes. Essa música exige fôlego demais e eu notei que você ainda não tem controle total do diafragma. Os exercícios vão te ajudar. — Ele se virou para o resto da turma. — Prestem atenção, pois isso vai servir para todos vocês.
Antes de chamar outro aluno para a frente, Arthur nos ensinou os tais exercícios. Eles eram mesmo de grande importância, e eu com certeza iria pratica-los novamente depois. A aula foi tão boa e inspiradora que eu sentia até vontade de dançar. Arthur era mesmo um professor divino.
— A comida daqui é uma delícia, não acha? — perguntou-me Clara, falando de boca cheia, perdida entre garfadas de uma deliciosa macarronada.
— É sim. — respondi, brincando com a macarronada praticamente intacta em meu prato.
— É estranho que você concorde comigo já que até agora não te vi colocando uma garfada sequer de macarronada na boca. — observou Clara, olhando-me atentamente.
Abaixei a cabeça e larguei o garfo de qualquer jeito no prato, brincando com a costura desfiada de minha blusa.
— Só estou distraída mesmo.
Não queria contar para Clara que o motivo da minha distração era a aula de Arthur. Do jeito que ela é, tenho certeza de que diria que estou me apaixonando pelo meu professor, quando não é nada disso. A fase da Dianna fã apaixonada passou, mas a admiração que eu já sentia por ele cresceu agora que eu vejo o quanto ele é atencioso e dedicado aos seus alunos.
— Mas correu tudo bem na aula do Arthur? Ou ele implicou com você?
— Aconteceu o oposto. — respondi, sem conseguir esconder o sorriso que brotou em meus lábios involuntariamente. — Ele foi o professor que eu imaginei que seria.
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