Capítulo 38 - Eu tenho uma nova velha amiga
Quando eu era pequena, eu gostava muito de escrever. Se eu não tivesse me apaixonado instantaneamente pelo ballet e pelo teatro, provavelmente teria me tornado uma escritora.
Os pesadelos horripilantes que eu tinha de vez em quando sempre me inspiravam de alguma forma, e tudo o que eu temia enquanto sonhava era descartado quando eu começava a escrever. Aquela costumava ser a minha maneira de enfrentar os meus medos, mas como eu encararia os meus temores mais reais?
As coisas eram mais fáceis quando eu era criança. Um machucado parava de doer com um beijo carinhoso da mamãe, o trauma de um pesadelo sumia com as palavras, mas tentar fazer alguém que te odeia parar de te atormentar é mais difícil do que parece.
Crescer é uma droga.
Encarei a barra enquanto me aquecia no estúdio de dança, me sentindo nervosa. Desde que eu soube que a Deborah tem motivos — insanos e descabidos — para ter raiva de mim, que eu não consigo me concentrar direito em nada além da caligrafia de uma Deborah mais jovem escrevendo tantas coisas insanas.
Observei os outros alunos se aquecerem tranquilos e os invejei por um tempo. Os seus problemas se limitavam a feridas nos pés e pliés mal feitos. Eles não sabem a sorte que tem.
— Bom dia, alunos. — disse Arthur, entrando na sala. O som de sua voz fez meu coração dançar, e eu apertei a barra com força por conta do nervosismo. — Trago notícias que não irão agradar muito vocês — completou, andando pelo estúdio de dança enquanto encarava cada rosto tenso dentro daquela sala. Todos esperavam pelo pior, inclusive eu. — Em breve todos vocês farão uma avaliação surpresa arquitetada por mim e pelos outros professores, onde metade dos alunos de todas as turmas serão eliminadas.
— O QUE?! — exclamou Beth, ao que todos os outros começaram a reclamar e a choramingar ao mesmo tempo. Quando os olhos de Arthur pousaram em mim, eu me senti aquecida. O contato visual demorou menos do que eu gostaria, e ele logo retomou a postura rígida de sempre.
— Desculpem, mas eu não faço as regras. — Arthur deu de ombros, tranquilo.
— A avaliação será de canto, dança ou teatro? — perguntou Diego, atrás de mim.
— Pode ser de qualquer um dos três. Só na hora vocês saberão. A única coisa que precisam saber por ora, é que a avaliação acontecerá ainda esse mês no salão de teatro principal as dez horas da manhã e será individual. — Um falatório começou a tomar conta de toda a sala. A tensão que rodeava o ambiente era palpável. Eu já nem sabia mais qual problema necessitava mais da minha preocupação.
— Agora, vamos começar a aula. — Arthur aumentou o tom de voz para que o falatório cessasse — Formem grupos de cinco e comecem a treinar os fouettés.
Contrariados e resmungando, os alunos fizeram o que Arthur pedira.
Eu, Diego, Beth, Fabio e Anne nos juntamos para o fouettés. Enquanto o próximo grupo ia para a frente do estúdio e fazia a sua performance até o outro lado da sala, eu senti meu tornozelo latejar.
Arthur me mandara ir ver um médico fora do CBA, mas eu ainda não havia seguido a sua recomendação pois meu tornozelo havia parado de doer. Deborah não fora penalizada por ter me lesionado porque alegou que não foi intencional. Infelizmente, Arnaldo acreditou na víbora.
Apesar de discordar de mim, Arthur não se opôs quando informei a ele que não veria mais um médico. Realmente achei que meu tornozelo havia melhorado, e agora percebo que foi um alarme muito falso.
— Di, você está bem? — Diego notou que havia algo de errado comigo. Respondi de forma afirmativa com um aceno rápido de cabeça — Parece que você viu um fantasma e que vai vomitar a qualquer momento.
— Só estou nervosa — respondi, olhando de forma concentrada para os grupos que saíam e realizavam as suas performances. Meu tornozelo deu mais uma fisgada, e eu tive que me manter bem concentrada para que não saísse nenhuma careta que denunciasse o quanto eu estava sofrendo.
Quando chegou a vez do nosso grupo, eu e Anne fomos na frente e os outros seguiram mais atrás. Tentei me concentrar em tudo, menos na dor que eu sentia, mas era uma tarefa praticamente impossível. Coloquei um pé no chão e o outro um pouco atrás, lembrando-me da técnica que aprendi com a professora Lucy quando fiz o fouetté pela primeira vez. Fiquei sobre os dedos de um dos pés, mantive o meu corpo ereto e me preparei para girar, vendo que os outros faziam o mesmo que eu.
Senti os olhos de Arthur em cima de mim, e fiquei com medo de que ele percebesse que eu não estava bem. Começamos a fazer a nossa sequência de fouettés, e quando fiz o último, me desequilibrei por conta da dor.
— Dianna, você está bem? — Arthur estava visivelmente preocupado. Percebi que as pessoas estranharam o fato de ele não ter feito nenhuma piada sarcástica por eu ter quase caído, ou por não ter se dirigido a mim pelo maldito apelido irônico do início do ano. Se isso fosse um motivo para levantar suspeitas sobre nós, eu estava ainda mais encrencada do que eu pensava.
Mas eu simplesmente não conseguia lidar com esse tipo de pensamento agora.
— Estou, eu só perdi o equilíbrio. — respondi, ofegante pelo esforço e pela fisgada. A música clássica continuava tocando ao fundo, e todos pararam de se preparar para prestar atenção em mim.
— Seu fouetté não está sólido. — Arthur me olhou de modo desconfiado, voltando a postura de professor rígido que agora aprendi a admirar — Precisa treinar a perna de apoio.
Fiz que sim com a cabeça.
— Tudo bem.
Apesar da dor constante no tornozelo e do restante das minhas preocupações, eu estava feliz. Meu pai chegaria ainda essa semana no hospital, e minha tia já estava preparando tudo para recebê-lo. Tinha esperanças de vê-lo o quanto antes e isso meio que recarregou as minhas energias.
O clima tenso do lado de fora da sala ainda era percebido por mim, já que os outros professores provavelmente já tinham dado as boas novas sobre a avaliação surpresa e o grande número de eliminatórias.
Por incrível que pareça, aquele era o menor dos meus problemas.
Procurei uma sala vazia e me sentei no chão, suando frio. Meu tornozelo latejava demais, mas eu precisava tentar adquirir forças para ir até um hospital público, já que eu não tinha dinheiro para ir em um particular. Os remédios já não faziam mais efeito, mas eu simplesmente não conseguia me levantar.
— Dianna, você está bem? — Barbara colocou a cabeça para dentro da sala, me assustando.
— Acho que essa é a terceira vez em menos de 24 horas que me fazem essa pergunta. — respondi, sem humor. Eu realmente estou um trapo. Barbara entrou na sala e se sentou de pernas cruzadas na minha frente. A dor era tão intensa que eu nem consegui tratar a Barbara com a frieza que os meus amigos estavam lhe tratando.
— Eu soube que você se desequilibrou na aula do Arthur. — Ela comentou, ao que eu a encarei de forma perplexa. — O que? — A loira se defendeu. — Todos só sabem falar do quanto ele pareceu preocupado quando você quase caiu.
— As pessoas adoram inventar uma fofoca. — revirei os olhos, irritada.
— Você já foi no hospital ver isso?
— Queria ir hoje, se eu conseguir levantar daqui e caminhar.
— Você tem plano de saúde? — fiz que não com a cabeça. — Vem comigo. — Barbara se levantou e estendeu a mão para mim. Hesitei, mas segurei sua mão e aceitei a ajuda que ela me forneceu para levantar. Meu tornozelo latejava muito, e eu julgava ser pelo esforço que eu vinha fazendo.
— Onde nós vamos?
— Fica tranquila, eu não vou te sequestrar.
— Assim espero, pois eu ainda tenho um tornozelo bom e não tenho medo de usar.
Ela deu uma risada sem humor.
— Bom saber.
Barbara me levou de Uber até um consultório chique no centro. Olhei para o prédio enorme e espelhado com espanto. Aquele consultório deveria custar um rim.
— Sei o que está pensando e vai sair de graça. Meu tio é um cirurgião ortopédico e sempre cuidou das lesões que eu adquiri durante os anos no ballet. Ele vai ficar feliz em cuidar de você.
Nos dirigimos até o balcão da recepção, onde Barbara falou com uma das recepcionistas simpáticas do local. Enquanto a loira perguntava pelo seu tio, olhei ao redor e percebi o quanto aquele consultório era luxuoso. Poltronas refinadas onde os pacientes aguardavam estavam devidamente espalhadas pelo grande salão de espera. As vidraças que estavam estrategicamente posicionadas pelo local iluminavam de uma maneira impressionante todo o primeiro andar.
— Ele vai nos atender agora! — Barbara virou-se para mim, visivelmente empolgada.
Nós duas fomos até o segundo andar, que era onde o tio de Barbara trabalhava. O suor começou a tomar conta das minhas mãos, e eu fiquei com medo do que o médico diria quando visse o estado do meu tornozelo, que ainda não tinha parado de latejar.
Ao entrarmos no consultório, o tio de Barbara, que atendia por doutor Lemos, pediu que eu fizesse alguns exames antes de poder me dar um parecer mais preciso. Ele examinou meu tornozelo em silêncio e eu fiquei nervosa ao ver que estava inchado e um pouco vermelho. Eu fiz os exames e aguardei impacientemente que eles ficassem prontos.
Demorou um pouco, mas quando o doutor Lemos retornou com os resultados dos meus exames, ele tinha no rosto um olhar de extrema seriedade. Meu coração quase parou em expectativa, e Barbara colocou uma das mãos sobre a minha para me amparar.
— Dianna, seu tendão está muito inflamado, por isso você sente tantas dores. O fato de você não ter continuado o tratamento, e ainda forçar constantemente seu tornozelo na dança, agravou a situação. Vou te receitar um remédio para que a inflamação diminua, outro para dor e vou pedir para que você coloque compressas de gelo no local afetado. Você precisará retornar ao consultório pelo menos duas vezes em cada semana para fisioterapia e acompanhamento.
— Eu vou poder dançar? — perguntei, me sentindo nervosa e culpada.
— Você não pode forçar o tornozelo de jeito nenhum. Recomendo que diminua o horário dos treinos, pois se a situação se agravar, será necessário que faça uma cirurgia. — Ele recomendou, me entregando a receita com os remédios. — Tente não dançar pelas duas primeiras semanas para o tornozelo poder descansar. Dependendo de como seu corpo reagir ao tratamento, essa pausa pode acabar ou se alongar.
Seria difícil, mas eu teria que fazer esse sacrifício.
— Tudo bem.
— Vou agendar para que você venha ao consultório toda a terça e quinta às quatro horas da tarde, tudo bem? Preciso que você volte aqui nessa quinta para podermos iniciar os tratamentos.
— Tudo bem. Obrigada por tudo.
Barbara e o tio se abraçaram, e eu saí do consultório me sentindo um pouco melhor.
— Eu nem sei como te agradecer. — Eu disse, abraçando Barbara. Era como se um peso enorme tivesse sido tirado de dentro do meu peito. Eu tinha plena consciência de que a minha situação ainda não era muito boa, mas eu conseguia enxergar uma luz no fim do túnel.
— É o mínimo que eu posso fazer. Você desde o começo foi legal comigo, e eu sempre te tratei muito mal. Eu nunca me vou esquecer disso. — Barbara confessou com sinceridade. Eu abri um sorriso enorme para ela.
Naquele momento eu soube que Barbara estava do meu lado.
— Acha que é muito tarde para te chamar de amiga?
Barbara sorriu com a minha pergunta e me abraçou.
— Não mesmo.
Ao chegarmos juntas ao CBA, Clara, Diego e Marlon me encararam como se eu tivesse sido abduzida. Expliquei a eles tudo o que tinha acontecido, e eles pareceram um pouco mais tranquilos em relação a Barbara. Ainda estavam um pouco receosos e relutantes, mas já era um bom começo.
Decidi ir até a sala de Arthur para lhe avisar que eu havia ido a um médico fora do CBA. Ele tinha se mostrado bastante preocupado desde que deixei a sua aula naquela manhã, então achei melhor atualiza-lo de tudo. Eu estava medicada e bem, mas eu sabia que precisava me cuidar se quisesse continuar saudável e dentro do concurso.
O encontrei sentado em frente ao computador digitando freneticamente. Ele parecia animado, e eu gostei de vê-lo daquele jeito.
— Arthur, posso falar com você?
— Claro, pode entrar.
Caminhei timidamente até ele e me sentei na cadeira acolchoada. Eu ainda estava meio sem jeito depois de tudo o que acontecera entre nós, mas engoli a vergonha para poder contar para ele as boas novas.
— Fico feliz que tenha ido ver um médico como recomendei. Isso quer dizer que o doutor Saraiva realmente não é confiável. — Arthur estava pensativo. — Ele agiu de forma grave com seu tornozelo e isso se caracteriza como negligência médica. Acho que Arnaldo vai ter que saber disso.
— Mas será que ele vai acreditar em nós?
— Claro que vai. — Arthur estava claramente sério, e parecia irritado também. — O médico que você foi já confirma que houve negligência médica somente pelas recomendações e exames que ele fez.
— Eu não quero prejudicar ninguém.
— Dianna, independente da relação que ele tenha com a Deborah, o doutor Saraiva precisa ser punido. E se ele já tiver negligenciado clinicamente alguma outra pessoa? O seu caso ainda tem alguma salvação, mas e se não tivesse? Ele poderia ter acabado com a sua carreira. Isso é muito sério e precisa ser reportado a direção. — A gravidade da situação me atingiu em cheio naquele momento. Ele estava certo, isso deveria ser denunciado para que outras pessoas não passassem pelo mesmo que eu.
— É, você tem razão.
Alguém bateu na porta.
— Arthur, você está aí? — A voz de Arnaldo soou meio agressiva do outro lado da porta. — Preciso falar com você.
— Vou precisar que se esconda embaixo da mesa. — sussurrou Arthur para mim. — Arnaldo não gosta que eu atenda os alunos fora do horário das aulas.
Me enfiei embaixo da mesa de Arthur como se fosse uma amante me escondendo da esposa enfurecida.
Arthur abriu a porta para o pai. Eu só conseguia ver os pés dos dois por debaixo da mesa e eu fiquei nervosa com a possibilidade de Arnaldo me ver ali embaixo.
— Eu fui verificar a sua conta no banco e soube que uma quantia grande de dinheiro foi removida há alguns dias. Confesso que fiquei bastante surpreso ao ver onde a maior parte do dinheiro foi parar. — Arnaldo comentou, e pelo seu tom de voz, parecia ter tirado algumas conclusões precipitadas.
Paralisei em meu lugar, o medo e tudo o mais corroendo meu peito.
— O que o senhor está querendo dizer? — Arthur perguntou, tentando se fazer de desentendido.
— Você se importa muito com essa garota, não é? Quero dizer, ela deve ter alguma coisa especial para você ter pago o tratamento e tudo o mais para o pai dela. Eu fiquei me perguntando porque você a ajudou naquela avaliação quando ela não tinha um par, mas eu achei que não fosse nada demais. Não antes de descobrir que você a ajudou tanto. O que mudou, Arthur? O que você tem com essa garota?
O silêncio reinou na sala enquanto Arnaldo esperava por uma resposta, e meu coração petrificou enquanto eu processava as informações que eu havia recebido.
Arthur era o doador anônimo do meu pai.
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