Capítulo 33 - Tempestade
Observar os alunos realizando os exercícios que Arthur passava na barra durante as aulas de dança tinha se tornado um hábito. Agora que eu estava de repouso por conta da fisioterapia, foi preciso que eu arranjasse formas de ocupar a minha cabeça ociosa. Claro que eu sempre dava umas espiadas para Arthur, que estava sempre muito bonito, cheiroso e bem arrumado, mas eu não queria que ninguém mais além de Clara percebesse o que eu sentia por ele. Além do mais, existia um lado bom em estar de repouso. Eu podia observar os pontos fortes e fracos dos meus adversários, ou pelo menos os dos que faziam aula na mesma turma que eu.
Eu estava sentada no chão, bem no canto para não atrapalhar ninguém. O local que eu tinha escolhido era estratégico, e me dava uma bela visão de todos os meus concorrentes e de Arthur, que observava a turma com o olhar compenetrado.
Havia uma compressa de gelo em meu tornozelo que incomodava, mas a determinação de me recuperar era maior do que o desconforto que eu sentia.
Quando Arthur deu a aula como encerrada, Arnaldo entrou em nossa sala, paralisando os alunos que já se encaminhavam para a saída. Diego me deu a mão para que eu conseguisse me levantar.
— Que bom que estão aí. — falou ele, olhando de mim para Arthur. — Vocês vão fazer uma entrevista fora do colégio hoje.
— O que? Mas por que? — estrilei, sentindo o pavor acelerar meu coração. Arthur estava mais calmo do que eu, apesar de notar que ele também havia sido pego de surpresa.
— Por causa do vídeo que vazou na internet. Analy me explicou tudo, a estratégia que ela nos deu vai ser um bom marketing para nós e a imagem do colégio. Se arrumem, dentro de uma hora quero os dois na minha sala para partirmos. — E ele saiu sem dizer mais nada.
— Bom, melhor você ir almoçar e se arrumar logo. — instruiu Arthur, colocando sua bolsa de couro no ombro.
Obedeci, caminhando com um pouco de dificuldade.
— Vou ter que passar no médico primeiro. — avisei, enganchando meu braço em Diego, que me ajudava a caminhar.
— Você vai ficar famosa antes da gente. — brincou Diego quando deixamos o estúdio de dança.
— Eu sinceramente não sei mais se isso é bom ou ruim.
— Você está sentindo muitas dores?
— Só de vez em quando. Agora está doendo um pouco mais, mas o doutor Saraiva disse que é normal e que daqui há mais uns dias vou me sentir melhor. O remédio ajuda bastante a aliviar.
— Menos mal.
Paramos em frente a sala da enfermaria.
— Quer que eu entre com você?
— Não, obrigada. Vai almoçar. — Dei um beijo em sua bochecha e Diego abriu um sorriso enorme e fofo para mim.
— Se precisar, me manda um zap. — Fiz que sim com a cabeça e entrei na enfermaria. Havia alguns bailarinos lesionados e passando mal ocupando algumas das diversas macas da enfermaria. Passei pelo consultório da psicóloga e me dirigi até a sala do doutor Saraiva, que me aguardava ansiosamente.
Após examinar meu calcanhar e o último exame que eu havia feito, notei que seu rosto estava franzido e que ele suava muito, mesmo que o ar condicionado estivesse funcionando normalmente. O médico parecia nervoso, e eu fiquei com medo de que esse nervosismo tivesse a ver com meu calcanhar.
— Seu calcanhar está ótimo. Tem sentido dores?
— Eu vim praticamente me arrastando até aqui.
— Então essa dor deve sarar logo, não vejo mais inflamação no seu exame. Continue tomando o remédio que eu passei e colocando as compressas de gelo. A partir de semana que vem você pode voltar a dançar.
Eu mal conseguia acreditar no que ele me dizia.
— Isso é sério? — Arregalei os olhos, surpresa. Eu jurava que demoraria pelo menos mais uns 15 dias para eu poder me recuperar totalmente, fora que eu ainda sentia o calcanhar incomodar.
— É sim, parabéns. — Ele abriu um sorriso esquisito, mas eu estava feliz demais com a notícia para reparar mais nisso. Agradeci ao médico e saí da sala me sentindo mais alegre com aquela notícia.
Tive que comer, tomar banho e me arrumar em tempo recorde para não atrasar o horário da tal entrevista. Meu estômago estava embrulhado por conta do nervosismo que eu já começava a sentir. Meus amigos me desejaram sorte e disseram que iriam me assistir quando a entrevista fosse ao ar.
Quando cheguei para encontrar Arthur, seu pai ainda não havia chegado. Ele guardou o celular no bolso assim que me viu.
— Arnaldo disse que não poderá nos acompanhar. Ele me mandou o endereço por mensagem e disse para encontrarmos Analy lá. — Meu professor revirou os olhos, nada contente com aquela notícia. Dava para ver que ele estava tão animado quanto eu em participar de mais uma entrevista. Porém, por mais que fosse desagradável ter que dar mais explicações ao público, era bem menos desconfortável ir sabendo que não teria que aturar a energia pesada de Arnaldo pelo caminho.
— É muito longe daqui?
— O estúdio fica há mais ou menos uma hora e vinte daqui.
— Então a viagem vai ser longa.
— Vamos torcer para não pegarmos trânsito. — Arthur se retirou da sala e eu o segui. Ele estava com um humor muito sombrio naquele dia, e eu me perguntei se era culpa de Arnaldo ter nos colocado em uma entrevista de última hora ou se haveria algo mais no meio disso tudo.
Meu coração se encheu de expectativas quando me dei conta de que estaria totalmente sozinha com Arthur em um carro pelas próximas horas. Tentei me controlar, afinal, não era como se fôssemos dar um passeio romântico e clandestino, mas meu coração parecia não querer entender muito bem isso, de modo que acelerou gradativamente quando entramos no carro.
A viagem foi silenciosa. A única coisa que ouvi foram algumas músicas de uma playlist aleatória que Arthur havia encontrado. Ele disse que eu poderia escolher a playlist da volta, e eu notei que poderia escolher a mesma, pois tínhamos um gosto musical muito similar.
Nós trocamos algumas palavras, mas não foi nada de muito importante. Não pensei em lhe contar sobre o tornozelo, pois apesar da empolgação que eu sentia, algo dentro de mim me dizia que Arthur não queria conversar muito. O tópico do meu calcanhar era algo que ele com certeza iria querer opinar, e talvez o clima não fosse muito propício para isso.
Ao chegarmos ao estúdio de gravação, Analy já estava lá a postos a nossa espera. Enquanto ela nos passava diversas instruções de forma apressada, falando mais rápido do que uma britadeira, maquiadores passavam produtos em nossas olheiras e imperfeições. Também reparei que uma mulher mexia no meu cabelo com uma expressão de puro descontentamento. Provavelmente ela teria pesadelos com o ressecamento dos meus fios mais tarde.
Não consegui prestar muita atenção nas instruções de Analy, mas fiquei com medo de pedir para que ela repetisse e eu fosse taxada de burra ou lerda por ela. A mulher falava tão rápido que eu mal conseguia entender tudo o que saía de sua boca. Arthur parecia estar tão perdido quanto eu, a diferença, é que ele conseguia disfarçar infinitamente mais.
A entrevista não foi tão complicada quanto achei que seria. O ambiente era agradável e tranquilo, e todos os profissionais nos deixaram bastante à vontade. Nós falamos sobre o vídeo vazado, pois ele era o ponto principal da entrevista, e posso dizer que não foi ruim, principalmente pelo que o Arthur dissera sobre mim.
— Eu tenho um carinho muito grande pelos meus alunos. Sei que posso ser sério, rígido e difícil de lidar, mas eu gosto de ajudar a todos que demonstram disciplina e interesse pelas minhas aulas e a Dianna é uma dessas pessoas. Ela merecia que eu a ajudasse naquele momento, e foi isso que eu fiz. Não me arrependo de nada disso, pois não gostaria de vê-la ser desclassificada do concurso por conta de uma injustiça. Dianna tem evoluído muito desde que chegou ao CBA, e eu tenho muito orgulho de quem ela está se tornando como profissional.
A resposta de Arthur fez Analy se remexer de forma desconfortável na cadeira, mas não parecia ser uma catástrofe colossal o seu discurso. Talvez ela até reclamasse dele depois, mas não era tão ruim quanto a entrevista que eu fiz junto com Barbara e Rogerio.
Não falamos o motivo de Arthur ter precisado me ajudar na avaliação, tampouco sobre o culpado pelo vídeo estar no ar, pois ainda não havíamos descoberto nada sobre esse último tópico. E para ser sincera, eu tinha uma ideia de quem poderia ser capaz de fazer algo assim, porém acusar Deborah sem provas estava fora de cogitação.
Ao saírmos, Analy nos parabenizou e fez questão de citar algumas coisas que eu e Arthur havíamos dito. Eu sabia que ela não ia deixar passar batido o discurso de Arthur sobre mim, e fiquei aliviada por tudo ter ido conforme ela e Arnaldo tinham planejado, afinal, a última coisa que eu queria era provocar a ira do diretor do CBA.
Levei um susto ao ver o tempo carregado de nuvens negras e pingos grossos de chuva que tocavam meu corpo de forma desenfreada.
Nos despedimos de Analy e corremos até o carro de Arthur antes que a chuva torrencial ameaçasse encharcar as nossas roupas.
Um temporal começou a cair e o trânsito não demorou a se tornar caótico. Arthur mal conseguia enxergar o caminho a sua frente devido ao vidro embaçado pela chuva que caía. Os pingos faziam um barulho como se fossem perfurar o interior do veículo, e eu fiquei assustada quando o nível da água começou a subir pelas ruas por onde passávamos.
O trânsito ficou ainda mais lento do que o normal enquanto a água subia rapidamente. O carro resfolegou e o motor desligou.
Arthur girou a chave na ignição, e o motor resfolegou com mais força antes de desligar novamente.
— Isso não é bom. — observei, encarando o painel do carro. Eu não entendia nada sobre isso, mas aquele som era esquisito demais para ser considerado normal.
— O carro morreu e estamos bem longe de casa. — Arthur tentou ligar o carro mais uma vez, mas não teve sucesso. — Vou ter que ligar para o reboque. — Ele retirou o celular do bolso e soltou um palavrão baixinho.
— O que houve?
— Estou sem sinal.
Tirei o celular da bolsa e vi que o meu se encontrava na mesma situação.
— O meu também.
— Que ótimo.
A tempestade que caía lá fora aumentou ainda mais e eu fiquei me perguntando se era possível que a situação ficasse pior do que já estava. O carro resolveu pegar, mas só deu tempo de Arthur parar no acostamento para que o motor morresse novamente.
— Tem um hotel há algumas quadras daqui. Talvez lá eles tenham sinal no telefone. — Arthur disse, irritado. — Vamos até lá?
Não era como se tivéssemos muita escolha.
Nós não tínhamos levado guarda-chuva, então ficamos ensopados antes mesmo que tivéssemos tempo de nos afastar muito do carro. Arthur fez questão de retirar todos os pertences de dentro do veículo antes de trancar a porta e sair. Ele guardou tudo dentro da lapela do casaco e nós corremos pelas ruas alagadas, com um pouco de dificuldade. O nível da água já estava acima do meu tornozelo, que começou a protestar devido o esforço.
Arthur percebeu e passou meu braço por cima de seu ombro, de modo que eu apoiei meu peso quase todo nele para que meu calcanhar não ficasse ainda mais sobrecarregado.
— Obrigada. — Lhe dei um sorriso tímido, sem deixar de notar seu cheiro tão próximo de mim.
O caos nas ruas era nítido, e muitas pessoas tiveram que abandonar seus carros no meio da estrada. Quase choramos de alívio quando encontramos o hotel.
Nós entramos encharcados e tremendo de frio. A boca de Arthur estava branca e seus cabelos, grudados na testa.
Nos dirigimos ao balcão da recepção, e eu não pude deixar de reparar que o ambiente era bem simples e calmo. As luzes estavam piscando e a TV pregada à parede estava com uma interferência de sinal bem alta.
— Boa noite, podemos usar seu telefone? Meu carro quebrou e precisamos voltar para a escola.
— Lamento. — A recepcionista atrás do balcão era uma mulher baixinha e rechonchuda. Ela não parecia lamentar tanto pela nossa desgraça. — Nossos telefones estão mudos desde que essa chuva maldita começou a cair. Passou agorinha no noticiário que essa é a pior tempestade que teve nos últimos dez anos. A luz já faltou umas três vezes e a chuva não vai parar tão cedo.
Arthur parecia xingar Arnaldo e seus ancestrais mentalmente naquele momento. Ele olhou para o celular novamente, provavelmente para checar se o sinal havia voltado. Pelo olhar de frustração em seu rosto, dava para ver que isso ainda não tinha acontecido.
Meu celular também não tinha sinal e nem bateria.
— Vamos ter que passar a noite aqui. — Arthur se virou para mim com um semblante de quem aceita a derrota.
— Mas e o seu pai? — perguntei, a minha voz tremia pelo frio.
— Não podemos ficar na chuva, o carro enguiçou e não temos condições de pegar essa estrada nem de Uber. A cidade entrou em alerta de calamidade.
— Ok então...
— Vou querer dois quartos, por favor. — Ele se virou para a recepcionista.
— Nós só temos um quarto sobrando. Vocês deram sorte, muita gente tem nos procurado hoje por conta da tempestade.
Arthur e eu nos entreolhamos e foi como se nos comunicássemos por telepatia. A nossa situação não era favorável. Não tínhamos sinal para reboque, nem condições para um Uber e nem para nada, fora que nessa tempestade é perigoso ficar lá fora. Por mais que Arnaldo possa se irritar com isso, eu sabia que não tinha muito o que fazer. Procurar outro local para ficar a essa altura do campeonato era muita loucura.
O olhar que lancei para meu professor fez com que ele captasse o que eu deveria ter dito.
— Vamos ficar com esse quarto, por favor.
Só então eu me dei conta de que ia dormir no mesmo quarto que o meu professor bonitão por qual tenho uma paixão platônica e absurda.
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