Capítulo 1 - Alçando Voo
— Meus pés estão tão doloridos! — exclamei, me jogando no chão do estúdio de ballet. Minha respiração estava desregulada devido ao treino incessante e o suor encharcava o meu collant e a minha testa, fazendo com que alguns fios de cabelo soltos do meu coque grudassem no rosto.
— Acho que você já treinou o bastante por hoje — disse Lucy, minha professora de ballet e tia de consideração. — Você precisa descansar. Terá um longo dia amanhã e algumas horas de viagem dentro do avião.
Só de lembrar da viagem para o Rio de Janeiro eu já ficava nervosa. Meu nome estava na lista dos mil escolhidos para estudar no CBA por seis meses, que é o tempo de duração do concurso, mas eu sabia que só os três finalistas ficariam os seis meses inteiros. Papai não havia gostado muito da ideia de deixar sua única filha sair de São Paulo para participar de um concurso em um lugar totalmente diferente. Eu nunca tinha saído de perto dele, então era compreensível a sua preocupação.
Meu pai é americano e conheceu a minha mãe aqui no Brasil, durante uma viagem que ele fez à trabalho. Os dois se apaixonaram perdidamente um pelo outro, e quando resolveram se casar, decidiram que queriam morar aqui em São Paulo, o que quer dizer que só fui a New Haven, cidade onde meu pai nasceu, três vezes na vida. Eu gostava bastante de ir para lá, mas nunca senti vontade de morar fora do Brasil. Todas as viagens que fiz para os Estados Unidos, eu fui acompanhada dos meus pais, e apesar do Rio de Janeiro ser infinitamente mais perto de São Paulo, papai ainda assim está surtando por ter que me deixar ir. Ele só permitiu que eu fosse porque eu já tenho vinte anos e respondo por mim mesma. E também por causa da minha mãe, já que ela era a única pessoa no mundo que me incentivava a seguir os meus sonhos.
Eu vejo esse concurso como uma grande chance e eu não posso deixá-la escapar de jeito nenhum. A ansiedade e o nervosismo já preenchiam o meu corpo inteiro. Eu tenho certeza de que não conseguirei dormir essa noite, o que me dará umas boas olheiras pela manhã. Mas quem se importa? Eu estou indo para o Rio de Janeiro!
Eu sempre gostei da energia da cidade maravilhosa.
— Eu sei, é que... — Mordi o lábio inferior e suspirei, hesitando em continuar a frase. — Eu preciso impressionar os professores. Deve ter muita gente talentosa nesse concurso e eu preciso estar no mesmo nível que eles.
— Tenho certeza de que você está, querida. Dê o seu melhor que a sua mãe lhe aplaudirá de onde ela estiver — assenti, sentindo os meus olhos arderem. Lucy percebeu e afagou o meu rosto, dando-me um sorriso doce e encorajador.
Lucy foi uma das melhores amigas da minha mãe. Se conheciam desde a época da faculdade e eram praticamente inseparáveis antes do acidente tirá-la de mim. Lucy costumava dizer que a minha mãe era como uma caixinha cheia de conhecimento. E ela era mesmo. Colecionava livros de todos os tipos, cores e tamanhos diferentes. Se trancava na biblioteca de nossa casa e ficava lá dentro lendo livros até perder a noção do tempo. Gostava de escrever histórias de romance e era a pessoa mais doce e amável que eu já conheci.
Ela fazia muita falta.
— Queria que ela estivesse aqui — confessei, sentando-me no chão e encarando o piso liso e bem encerado.
— E ela está, querida — disse Lucy, olhando-me carinhosamente. — Bem aqui, no seu coração. — Lucy tocou meu peito com a ponta do dedo indicador, bem no lugar onde meu coração batia.
— Você tem razão. — Enxuguei uma lágrima que havia caído e sorri, levantando-me do chão.
— Agora vá para a casa. Amanhã irei até o aeroporto lhe dar um abraço apertado. — Nós duas sorrimos uma para a outra e eu a abracei bem forte.
— Obrigada. Por tudo.
Saí do estúdio de ballet e senti frio assim que coloquei meus pés na rua. Fechei meu sobretudo preto e enfiei minhas mãos no bolso. O frio costumava me deixar depressiva e desanimada. Mas não naquele dia, pois amanhã eu irei pegar o avião com destino ao meu grande sonho e nada será capaz de estragar a felicidade e empolgação que eu estava sentindo.
A expectativa de saber o que vai acontecer de agora em diante parecia que iria corroer o meu peito. Todavia, eu tentava a todo o custo não me preocupar com isso. Eu tinha que viver um dia de cada vez, lembrando-me de aproveitar o momento presente. E o presente de agora pedia-me que eu arrumasse as minhas malas e ficasse um pouco com o meu pai antes de tentar descansar para o dia de amanhã.
Entrei em minha casa correndo como um foguete.
— Pai! — Segui o cheirinho de comida e encontrei papai fazendo bolo na cozinha. Ele usava um avental de mamãe e cantarolava uma música antiga que tocava no rádio. Assim que me viu, ele deu um sorriso totalmente animado.
— Bem na hora! — exclamou, colocando luvas de cozinha nas mãos.
— Hora de quê? — Uni as sobrancelhas, colocando minha bolsa em cima do balcão e sentando-me no banco de madeira.
— De experimentar o bolo que acabou de sair do forno. — Dei um sorriso ao ver como papai estava empenhado em me agradar. — Você quase não tem comido besteiras. Uma extravagância antes do grande dia não fará mal algum.
— Também acho — concordei, observando-o retirar uma bandeja de alumínio de dentro do forno com um lindo bolo de chocolate.
Com cuidado, coloquei uma fatia do bolo no meu prato e papai colocou uma fatia maior no dele também. Trocamos olhares de cumplicidade e meio sorrisos cheios de amor e felicidade. Nós aproveitávamos o máximo de tempo juntos, já que daqui há algumas horas eu estaria dentro de um avião.
Depois que terminei de comer, papai e eu vimos um filme de comédia e demos várias risadas. Assim que o filme acabou, fui para o meu quarto arrumar as malas. Abri a gaveta da cômoda e peguei a lista que eu havia feito no dia anterior. A lista continha anotações de tudo o que eu precisaria levar para o CBA. Eu iria dividir um quarto com mais duas garotas. Os rapazes não podiam transitar pelo dormitório das meninas e vice-versa. Tudo isso estava escrito nas normas de conduta da escola, disponível no próprio site do CBA. O mesmo se aplicava ao dormitório dos professores.
Os dormitórios do sexo oposto e dos não estudantes estavam expressamente proibidos, e eu acataria todas as ordens que me fossem dadas porque a última coisa que eu queria era me prejudicar com isso.
Dei uma leve alongada no meu pescoço e nos meus pés antes de começar a arrumar as minhas malas, que estavam encostadas na parede do meu quarto e suspirei, encarando mais uma vez a lista que eu havia feito para me certificar de que eu não me esqueceria de nada. Eu havia colocado o meu guarda-roupa quase todo em minhas malas, e mais da metade do conteúdo delas eram voltados para meus collants e sapatilhas.
Olhei para a minha cômoda e vi uma fotografia dos meus pais no dia de seu casamento. Mamãe sempre me dizia que aquele fora um dos momentos mais felizes de sua vida. Papai também dizia a mesma coisa.
Quando o acidente aconteceu, eu estava estudando e papai ainda estava no trabalho. Seu carro ficara destruído com a pancada forte que levou. Até hoje não sabemos direito o que aconteceu, mas parece que o acidente foi causado por um motorista embriagado que bateu no carro de mamãe, fazendo com que ela morresse antes mesmo de chegar ao hospital.
Sempre que eu me lembrava disso eu sentia uma dor no peito tão forte que se igualava a morrer, ou pelo menos era assim que eu via a morte. Papai ficou abalado por tanto tempo que eu achei que ele nunca mais seria o mesmo. Com o tempo, a ferida se fechou um pouco, mas eu tenho certeza absoluta de que ela nunca ficará cicatrizada. As marcas causadas por um passado doloroso ficam sempre no presente. A cada lembrança, uma nova dor e a cada dor, uma nova ferida. Era um círculo vicioso.
Peguei a fotografia da cômoda e a abracei com toda a força, chorando como se eu nunca mais fosse conseguir parar. Deitei-me em minha cama sem soltar a fotografia, sentindo tanta dor que achei que meu peito sangraria. Fechei os olhos e franzi os lábios, tentando a todo o custo abafar os meus soluços.
Quando eu menos percebi, eu já havia caído no sono.
Eu batia os pés no chão impacientemente, segurando um copo de capuccino com uma mão e mudando a música que tocava em meu MP4 com a outra. Papai lia um jornal ao meu lado e Lucy estava em pé, andando de um lado para o outro.
Cassandra, minha única e melhor amiga, havia ido buscar algo que não fosse café para beber. Ela estava tão (ou mais) nervosa do que eu.
Se não houver atrasos, meu voo sairá daqui a quinze minutos. Quinze longos e torturantes minutos que me separam do meu verdadeiro destino.
Avistei Cassandra voltando com as mãos vazias e com uma carranca que poderia ser vista há quilômetros de distância.
— Esse aeroporto é muito tosco! — esbravejou, parando ao lado de Lucy e cruzando os braços acima do peito. Retirei os fones de ouvido para poder me comunicar melhor com ela.
— Por que? — perguntei, dando um grande gole em meu capuccino.
— Porque é! — exclamou, irritada. — Não achei nada que me agradasse para beber.
— Não? E refrigerante?
— Não estou afim de tomar refrigerante agora.
— Mas não tem só refrigerante aqui — disse Lucy, intrometendo-se na conversa e dando um sorriso de lado. Ela já estava acostumada com os chiliques corriqueiros da minha melhor amiga.
— Eu sei, mas acho que o mau humor que estou sentindo tirou a vontade que eu tinha de tomar alguma bebida. Acho que é o nervosismo. — Cassandra desfez a carranca de seu rosto para sorrir.
— Parece até que é você que vai para o CBA — debochei, fazendo com que ela me encarasse com uma expressão engraçada.
— Eu estou surtando, tá ok? Já parou para pensar que depois que você entrar naquela escola maluca e sobreviver lá dentro com aquele bando de ambiciosos você vai estar na televisão? Eles gravarão todas as avaliações de vocês e algumas partes das aulas. Tipo um reality show.
Claro que eu tinha pensado naquilo. Várias e várias vezes seguidas. Pensei tanto que achei que um buraco enorme fosse surgir no meu cérebro.
— Não é um reality show, Cass. — Revirei os olhos, tentando parecer irritada.
— Mas bem que parece! — Papai deu risada do desespero de Cassandra e eu dei um sorriso triste ao pensar no quanto sentiria falta daquilo.
Do jeito amável que Lucy me tratava e do jeito paciente em me ensinar a fazer pliés e relevés, do jeito maluco e meio mau humorado de minha melhor amiga Cassandra e do jeitão protetor e cuidadoso do meu pai. Eles eram a minha família e eu tinha medo de perdê-los como perdi a minha mãe. Mas se eu não entrasse naquele avião, meus sonhos não seriam concretizados. Eu sei que esse concurso é como um tiro no escuro e que eu poderei ser eliminada se fizer algo de errado. Também sei que pessoas tão ou mais talentosas do que eu estarão lá também. Mas eu não podia desistir antes mesmo de tentar.
O meu voo foi anunciado e eu me levantei, com a apreensão corroendo todo o meu ser e com lágrimas nos meus olhos. Eu sentiria falta de São Paulo.
Abracei Lucy, que me deu um beijo demorado na bochecha e sussurrou palavras de incentivo para mim, brincando comigo sobre a primeira e segunda posição do ballet para aliviar a tensão. E funcionou.
Cassandra foi a próxima a me abraçar, já chorando. Eu não me aguentei e comecei a chorar também. Parecia até que eu estava me mudando para o Japão.
— Prometa que não vai se esquecer de nós — falou, me abraçando apertado.
— Nunca me esqueceria de você, sua boba. — Eu disse, tentando sorrir em meio a tantas lágrimas. — Não esqueço as pessoas que são importantes para mim.
— Eu sei. Boa sorte, amiga. Eu amo você. Entre nas redes sociais, por favor. — Nós duas rimos juntas.
— Obrigada. Eu também te amo, sua boba. Pode deixar que eu vou entrar. — Eu respondi, passando a mão no rosto para me livrar das lágrimas que escorriam incessantemente.
Nos separamos do abraço e papai veio até mim com um semblante pesaroso que só me fez sentir vontade de chorar mais. Me joguei em seus braços, enterrando minha cabeça no vão do seu pescoço. Papai afagou meus cabelos e ficou dando beijos no topo da minha cabeça.
— Vá atrás do seu sonho, Dianna. Voe, evolua e arrebente nas avaliações. Impressione os professores e chegue até a final. Eu acredito em você, pequena. — Levantei a cabeça para olhar para ele e vi que ele sorria. Papai nunca havia me dito nada parecido e ouvir aquilo foi tão arrebatador que as lágrimas até caíram com uma veracidade maior. Mas agora eu chorava de alegria.
— Obrigada, pai! — Eu disse, beijando seu rosto. — Eu te amo muito.
— Eu também te amo. Seja vitoriosa! — Assenti positivamente com a cabeça e apertei sua mão com força antes de pegar minhas malas e começar a me afastar. —
Pode deixar! — assegurei, andando para a fila de embarque de costas para observar as pessoas mais importantes da minha vida ficando para trás. Eu vi o olhar esperançoso de Lucy sem deixar de reparar no sorriso repleto de saudades antecipadas de Cass e no brilho que o olhar de papai irradiava. Ele também sorria. T
odos deram um tchau com a mão e eu retribuí, sorrindo e deixando as lágrimas caírem. Me virei e comecei a caminhar em direção ao meu sonho com um sorriso bobo no rosto.
Minha vida mudaria naquela mesma manhã. Mesmo antes que eu embarcasse no avião ela já havia mudado. Desde o momento em que decidi me inscrever no concurso, ela já estava mudando. Enxuguei as lágrimas com a ajuda da manga da jaqueta que eu vestia sem tirar o sorriso do rosto. Naquele momento não havia tristeza.
Somente esperança.
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