Motivos reais ღ Capítulo 25
Entre os sentimentos que poderiam aflorar diariamente nos seres humanos, a saudade talvez fosse um dos mais angustiantes, dependendo da situação em que o indivíduo se encontrasse, claro. Fala-se muito de saudade todos os dias e em todos os lugares do mundo, não importa o idioma, porém nenhuma explicação seria tão clara quanto o próprio sentimento. Este muitas vezes chegava na calada da noite e não ia embora tão cedo.
Charles Seifer, marido de uma mulher incrível e pai de três filhos, sabia bem o que a saudade era capaz de fazer — ou melhor, o que ela mostrava sobre o que ele não poderia fazer. Há pouco mais de um mês, ele se viu deitado em uma cama de hospital após uma crise hepática que nem sabia que poderia ter. Recebeu a notícia de que seu fígado estava à beira de um colapso devido ao uso excessivo de álcool. Naquele momento, viu mais uma vez todos que mais amava sofrer por medo de perdê-lo, e isso acabou sendo o estopim para a decisão de se internar em uma clínica de reabilitação.
Após um laudo de um psiquiatra que alegava a necessidade de uma internação, tudo foi feito da maneira mais calma possível, considerando a extrema fragilidade do momento para todos. Com a ajuda de Lais, as duas famílias, Moreira e Seifer, visitaram algumas clínicas e Charles escolheu onde se sentiria melhor. Então, acompanhado das pessoas que mais amava e com uma mala na mão, há um mês ele embarcou em uma jornada de cura, com a esperança de voltar para sua família.
Em uma cidade pequena no interior de São Paulo, a Free Clinic era uma mistura de clínica de alto padrão com um imenso rancho no meio do nada, totalmente em contato com a natureza e o mais longe possível de uma prisão — ou pelo menos era isso que o panfleto prometia. Os pais de Charles decidiram arcar com todas as despesas do filho naquele local, mesmo sabendo que não era nada barato. Vendo o quanto seus filhos gostavam de vê-lo em um ambiente bonito e a Isis mais calma, Charles aceitou de bom grado a ajuda dos pais e agradeceu por ter esse privilégio que a grande maioria dos dependentes químicos não tinha.
A Free Clinic era de fato um dos locais mais bonitos entre as grandes clínicas. O rancho era vasto, com um lago, estábulos, uma grande horta, salas para leitura, redes espalhadas entre árvores, uma equipe médica disponível vinte e quatro horas, comidas saudáveis, e muitos animais, como patos, cavalos, galinhas, algumas ovelhas e cachorros. Lá recebiam somente pacientes que buscavam tratamento por vontade própria. Era um lugar pacato que acolhia dependentes de álcool e drogas.
O tratamento de Charles na clínica foi programado para cerca de cento e oitenta dias, ou seja, seis meses. O programa de reabilitação consistia em três fases: a primeira era o acolhimento e aceitação da doença; a segunda, a abstinência; e a terceira, a conclusão da reabilitação. Dentro dessas fases, o paciente passava gradativamente por muitas etapas, como desintoxicação, psicoterapias, grupos de apoio, atividades diárias e uso de medicamentos. Era um longo processo que exigia muita paciência.
Em apenas um mês, Charles havia enfrentado muitos desafios devido à completa abstinência e aos sintomas severos, além da saudade de casa. A clínica, apesar de confortável, ainda era um local isolado da sociedade. As visitas eram moderadas, ocorrendo duas vezes por mês — uma vez dos pais e outra dos filhos. Somente aos finais de semana o uso do celular era liberado para ligações por alguns minutos. Charles participava obrigatoriamente de grupos de apoio, dos quais não gostava. Por algum motivo, as janelas tinham grades, as portas não tinham chaves, e ele não usava mais facas.
Com roupas confortáveis, chinelos e barba feita, Charles segurava um picolé com uma mão e jogava milho para algumas galinhas com a outra. Particularmente, era um tédio gigantesco, e as horas pareciam não passar, principalmente quando o enjoo tomava conta de todas as células do seu corpo.
— O que será que as crianças estão fazendo? — ele bufou. — Sofia e Cristian acabaram de chegar da escola, e a Sol acabou o treino pesado?
Ele tinha muito tempo para refletir e observar coisas tão comuns no dia a dia que passavam despercebidas.
— Minha Isis, está difícil sozinha? Sinto sua falta, querida. — Ele jogou um milho com um pouco de raiva e bufou.
Um pedaço de pão voou em direção às galinhas, e algumas brigaram entre si para ver quem comia, o que fez Charles olhar para trás.
— Seifer, falando com as galinhas. — O companheiro de quarto de Charles se aproximou e sorriu largo.
— Britto, está melhor?
Britto era o companheiro de Charles desde o primeiro dia, mas ele já estava ali pela segunda vez após uma recaída nas drogas. Era um homem novo, sorridente e bondoso, que havia entrado nas drogas poucos anos atrás quando perdeu sua esposa e filha no parto.
— Sim, quando sinto muita falta das minhas meninas, a ansiedade me pega... Droga, ela era tão pequena, e minha amada Nina... — Britto consentiu. — Mas tudo bem, sei que a Nina fez o melhor que pode e estão com Deus.
Charles ouvia muitas histórias ali, algumas que o faziam ser mais grato por sua família.
— Sinto muito, amigão... — Charles jogou o resto dos milhos e se sentou na grama, fazendo o amigo o acompanhar. — Estou entediado, mas foi melhor, eu não ia conseguir sem estar preso em algum lugar.
Britto consentiu, eles já eram bons amigos e se entendiam.
— Quais são os nomes dos seus filhos mesmo? Alguns remédios mexem com minha memória, que a droga já tinha prejudicado.
Charles consentiu, afirmando que estava tudo bem.
— A mais velha se chama Sol, a do meio é Sofia e o mais novo é Cristian. — Charles sorriu. — Eles são bem diferentes: a mais velha é tranquila, a do meio é falante e o mais novo é o verdadeiro raio.
Britto observava Charles falar com um pouco mais de empolgação, então percebia o verdadeiro motivo dele estar na clínica.
— E sua filha? Como se chamava?
— Caroline, significa menina doce. — Britto sorriu. — Escolhemos esse nome antes de casarmos, anos atrás...
Charles se sentiu mal por ter perguntado e se desculpou várias vezes.
— Tudo bem, amigão, não se desculpe. — Britto sorriu. — Que Deus perdoe minha revolta e me ajude a sair dessa.
Charles tocou o ombro do rapaz e encarou as galinhas indo embora após serem alimentadas. A vida naquele lugar era bem repetitiva; todos os dias ele fazia algumas coisas que não gostava. Estava perdendo momentos com seus filhos, mas sabia que sairia dali.
— Sabe, Seifer, quando passar esses seis meses, faça de tudo para não voltar. Sei que odeia terapias em grupo, aulas longas de meditação e a comida sem sal... — Britto negou com a cabeça. — Mas não perca mais nada além desses seis meses, pois quando vê já passaram anos e anos. O tempo passa tão rápido que, quando nos damos conta, tudo se transformou em uma fumaça de momentos que não se podem mais agarrar.
— Certo, seguirei isso. — Charles sorriu, misturando medo e alívio.
Ele ouviu os conselhos de Britto e consentiu, recordando todos os momentos em família: a mesa cheia, os afazeres para ajudar sua sogra, poder deitar-se na cama com sua esposa cheirando a hidratante. Sentia quão necessário era tudo aquilo, embora houvesse passado apenas um mês.
♥
Na capital paulista, a noite estava tranquila, pelo menos na casa dos Moreira. Sofia e Yuna faziam um trabalho em dupla, como sempre, e após o jantar, Yuri viria pegar a irmã. As duas eram melhores amigas desde o primeiro dia de aula, e mesmo após o rompimento de Sol e Yuri, a amizade continuou como se fossem da mesma família.
— O que será que o pai está fazendo? — Cristian perguntou a Sofia. — E se ele não voltar mais? Sinto saudade, hoje tem nosso jogo.
Sofia encarou Cristian com uma expressão séria e, segundos depois, sentiu pena daquela criança inocente que não entendia tudo que levou o pai a ser internado. Ela também sentia uma saudade que nunca havia experimentado antes...
— Ele deve estar alimentando as galinhas, como naquele dia que fomos vê-lo. E ele vai voltar, nossa! — Com paciência, falou, tentando segurar as lágrimas. — Também sinto falta dele.
— Onde a Sol está? — Cristian perguntou. — Já tá de noite...
Cristian era, de longe, o mais apegado à irmã mais velha. Ele sempre recebeu muitos cuidados, assim como Sofia, quando Isis saía para trabalhar.
— Está treinando. Junho está chegando, ela está treinando por horas. — Sofia respondeu. — Vamos acabar aqui, sem mais papo triste.
Sofia pediu a atenção do irmão, e Yuna a cutucou.
— Amiga, é bom ter mais paciência. Ele ainda é uma criança... — Yuna sussurrou, e Sofia consentiu.
Os três estavam sentados à mesa fazendo a lição de casa com a ajuda de Isis, que havia chegado do plantão e preparava um lanche para eles. Ela havia mudado sua escala e não trabalhava mais à noite para poder dar mais assistência aos filhos enquanto Charles estava internado.
— Voltei, já acabaram? — Isis perguntou, sorrindo. — Trouxe misto quente com suco de limão.
Eles mudaram de assunto como se tivessem combinado e finalizaram as atividades rapidamente para então ficarem livres e comer o que estava cheirando muito bem. A loira sorria ao vê-los animados com o lanche. O que ela mais queria do mundo era que seus filhos menores permanecessem debaixo da sua asa para sempre, mas logo eles voariam como sua mais velha.
Isis os deixou lanchando e seguiu para arrumar algumas coisas, tentando não pensar em como estava sendo difícil sem seu marido todos os dias há um mês. Ela se sentia aliviada por ele estar em um lugar tão bonito.
Ela dobrou algumas roupas, as guardou e encarou a foto com Charles na mesa de cabeceira. Isis pegou seu celular e discou o número da sua filha mais velha. Ela se preocupava com a exaustão física e o perigo da cidade.
Após chamar algumas vezes, Sol atendeu.
— Filha.
— Oi, mãe. — Sol falou com a respiração ofegante.
— Está no colégio? A noite chegou... — Isis falou, sentando-se.
— Sim, só tenho mais um mês para a estadual. Estou na pista... — Sol respondeu. — Chego já, não se preocupe.
— Certo, bom treino. — Isis sorriu e desligou.
♥
Como Sol havia dito à mãe, a competição estava cada vez mais próxima. Por estar no último ano de colégio, ela passava vários dias na semana fazendo simulados à tarde, o que a mantinha o dia todo no colégio. Com suas roupas confortáveis, ela treinava sua coreografia que montou com Nadja. Tinha que ser uma bela dança para competir com muitos patinadores do estado, igualmente bons, vindo de academias e outros colégios.
Parte de sua cabeça estava em seu pai, e como se não bastasse tudo que precisava pensar, Vicente estava em sua mente ainda mais do que antes. Durante todo o dia e em tudo que ela queria fazer, sabia que ele adoraria também. Sol não estava se permitindo chegar a uma conclusão sobre o que estava sentindo por uma pessoa que nunca tinha visto pessoalmente, mesmo que ele fosse uma das pessoas mais incríveis que ela já conheceu.
A imagem dele estava constantemente em sua mente: o rosto vermelho pós praia, seus lábios volumosos, e o sorriso quando mostrava todas as conchas que ele havia encontrado. O jeito carinhoso com que falava e se preocupava, sendo cada dia mais aberto e falante, mas também sabendo ouvir e aconselhar como se não fosse apenas um ano mais velho. Mas ele era assim, completamente irreal.
Seus patins deslizavam na pista e seu joelho dava sinal de que estava cansado, muito cansado. Ela precisava aumentar o ritmo, realizar alguns saltos mais arriscados e leves como uma pena, mas sabia que estava cometendo o mesmo erro do passado, colocando a patinação como fonte de alívio para sua cabeça.
Ela freou os patins e parou no meio da pista. Sol passou a mão na testa e sentiu sua nuca molhada de suor.
— Por hoje chega. — Ela falou para si mesma e saiu da pista.
No banco de apoio, ela se sentou, retirou os patins e pegou o celular.
Não treine demais Sol, pode se machucar. E essa semana quando a Cecilia descobrir o sexo do bebê me avise, eu acho que é uma menina. Vamos apostar?
Ela leu uma mensagem de Vicente como se ele estivesse prevendo sua dor e sorriu.
Eu parei agora e acho que é um menino, ela tem muita cara de mãe de menino. Vamos apostar o que?
Sol lia as mensagens e sorria como uma boba, ela poderia ouvir a voz dele com seu sotaque forte.
Se eu ganhar, escolho a música que irá tocar na sua apresentação em junho, basta me dizer o gênero. Se puder, claro.
—Nossa como ele é ousado, eu passo meses escolhendo e ele quer essa missão? —Ela sorriu sozinha.
E se eu ganhar Vicente? O que fará por mim?
Vicente mandou muitas carinhas sorrindo e algumas bem confiantes.
Faço o que quiser, é só me dizer o que quer e terá.
— Uau, ele não tem medo? — Sol falou alto e se conteve ao ouvir o eco. — Você está sendo tão fácil, serei má.
Em segundos ela pensou em muitas coisas ousadas e obscenas, a mais leve era os lábios dele grudado nos dela e as mais pesadas eram como poderia joga-lo em sua cama larga que via por vídeo chamadas. Ela deglutiu em seco e se repreendeu mentalmente. Como ousava pensar assim e se deixar levar por algo tão unilateral? Era uma tolice.
Certo, qual música? Pode ser qualquer gênero, é apenas o instrumental. Preciso saber logo para acrescentar algo na coreografia...
Ela recebeu carinhas felizes e já se arrumou para sair do ginásio.
Não sei se gosta de uma banda Coldplay, é a minha preferida. Eu até ia te indicar caso não conhecesse, uma música deles chamada Yellow.
Ela leu e arqueou as sobrancelhas, ela ouvia aquela banda as vezes, mas nunca tinha visto as traduções. Antes que ela pudesse responder, ele acrescentou:
Essa música me lembra você sabe? Hahaha
-Lembra de mim? -Ela arregalou os olhos e sentiu sua barriga embrulhar. -Não seja emocionada Sol, estar se iludindo sozinha.
Nossa, por que lembra de mim? Ela fala de que? Sei que banda é essa, muito boa.
Yellow, é amarelo em inglês, o sol é amarelo e você é Sol ... E essa música não fala de nada demais sabe, só pessoas. Eu amo essa banda com todo meu coração, poderia ser ela. E você o que vai me pedir?
Sol sorriu, esperando não sabia o que, mas não aquilo.
-Ah, amarelo do Sol. -Ela falou sozinha. - O que eu pensava...
Ah, é verdade, irei escutar! Eu pensarei no que pedir, mas provavelmente nem precisará levantar da cama, não se preocupe.
Sol sorriu, negando em seguida.
Ótimo, de toda é meu lugar preferido e sou ótimo nela, deito e durmo rapidamente. :)
Sol deu um gargalhada e ecoou no lugar, logo ela saiu do ginásio rapidamente e seguiria para o ponto de ônibus, ela chegaria em casa em breve e pensaria em outra coisa sem ser nele, seu bom humor constante e de como ele era acolhedor.
♥
Após o banho, Sol abraçou Yuna. As duas se gostavam muito, e Yuna havia ficado triste quando Sol deixou seu irmão, mas entendia os motivos dela. A família se reuniu para o jantar, assistiu à novela e Luzia preparou um prato de brigadeiro para as crianças, que estavam no terraço jogando Uno.
Em círculo, os quatro jogavam em duplas: Sol com Cristian no colo para ajudá-lo, e Yuna com Sofia. Eles amavam aquele jogo e estavam concentrados em vencer, algo que Luzia achava positivo ao observar de longe.
— Aqui, um doce para vocês! — a senhora sorriu ao entregar um prato a Sol. — Depois escovem os dentes, o preço de ir ao dentista é absurdo.
— Obrigada, vó! — Sofia e Sol responderam em uníssono.
— Agora a vó deixa a gente comer doce à noite? — Cristian comemorou, e Luzia sorriu antes de sair.
Ela fazia o possível para que seus netos não sentissem tanto a falta do pai, como suas filhas sentiram quando seu marido se foi. Mesmo que a ausência de Charles não fosse por sua morte, Luzia se esforçava para que eles vivessem um pouco mais felizes até o retorno do genro.
Depois de um bom tempo de jogo, entre gritos e surtos, alguém venceu.
— Ganhamos! — Sofia exclamou, sorrindo. — De novo.
— Somos demais! — Yuna levantou a mão para um high-five, e Sofia bateu.
Sol sorriu, enquanto Cristian cruzou os braços, visivelmente desapontado.
— Não quero mais jogar, estão roubando — Cristian protestou, bravo.
Sol beijou a cabeça dele e riu.
— Calma, bebê. Elas são boas, tudo bem!
Cristian, ainda bravo, levantou e saiu andando.
— Vai perder o doce... — Sofia provocou.
— TÔ NEM AÍ! — Cristian gritou, irritado.
Sol decretou fim de jogo e as três meninas se sentaram para conversar e comer, após Cristian ter entrado.
— O tio está melhor? — Yuna perguntou. — Ele é mó legalzão.
As irmãs assentiram e explicaram a rotina do pai e quando ele iria voltar.
— Sair da bebida não é fácil, não mesmo — Sol comentou, e Yuna baixou a cabeça.
Sol percebeu que a menina coreana estava sem jeito, como se não quisesse falar sobre.
— É, um pesadelo — Yuna disse, forçando um sorriso.
Sol notou que Sofia a encarava e negava disfarçadamente, sem saber o motivo de os dois irmãos parecerem ter aversão à bebida.
— Yuna, posso te perguntar algo? — Sol perguntou. A menina consentiu com um aceno. — Os pais de vocês proíbem bebida?
Sofia olhou para Sol, fazendo gestos para que ela deixasse o assunto de lado. No entanto, Sol estava curiosa e queria entender melhor o motivo por trás da aversão dos dois irmãos à bebida.
— É... — Yuna franziu o cenho. — Sobre isso...
Ela parecia relutante em falar sobre o assunto.
— Tudo bem, não precisa. — Sol disse, tentando ser compreensiva.
— É, não precisa! — Sofia exclamou, apoiando a amiga.
Yuna encarou Sofia e assentiu, concordando com a decisão se elas pudessem manter a conversa privada.
— Pode ficar entre nós? Meu irmão não gosta que fale sobre isso... — Yuna pediu, e as meninas concordaram. — Nossos pais se conheceram na Coreia, fizeram faculdade, namoraram e se casaram lá. Então, até a empresa deles se consolidar aqui, eles iam e voltavam muito para construir as coisas, e chegou um tempo que passaram três anos direto aqui.
Sol ouvia atentamente, imaginando como a história se desenrolava e o impacto que isso poderia ter tido na vida dos irmãos.
— Nesses três anos, moramos com nossos avós porque minha mãe achava que a educação lá era melhor e era seguro. Sim, o país era seguro, mas em casa não era, porque minha vó escondia coisas da minha mãe. O que nossos pais não sabiam era que meu avô, após envelhecer, bebia muito, e quase todos os dias chegava bêbado e bem agressivo, quebrando coisas. Às vezes, ele batia na minha vó.
Sol respirou fundo e fechou os olhos, tentando absorver o que estava ouvindo. Yuna continuou, com a voz um pouco trêmula.
— Eu e meu irmão víamos tudo isso todos os dias quando chegávamos da escola e morríamos de medo quando ele ameaçava colocar fogo na casa se não tivesse mais bebida. Não contamos aos nossos pais por medo, e porque iríamos embora e nossa vó ficaria sozinha de novo, então tentamos aguentar. Meu irmão sempre mandava eu entrar no quarto, tapar os ouvidos e saia para cuidar da minha vó...
Yuna respirou fundo e Sofia pegou sua mão, apertando-a em sinal de apoio. Sofia também parecia estar tão chocada quanto Sol. A patinadora se sentia tomada por um misto de culpa e empatia, refletindo sobre como havia julgado Yuri sem saber o que ele e sua família haviam passado.
Ela percebeu que talvez não tivesse sido tão compreensiva quanto deveria ter sido.
— Não fale mais, tudo bem, princesa. — Sol falou, tentando interromper a dor que Yuna estava revivendo.
— Tudo bem, é bom que você saiba por mim de qualquer forma. Meu irmão nunca vai te contar e só assim você vai entender que não foi nada pessoal com seu pai. — Yuna suspirou e continuou. — Teve um dia, após anos vendo isso e tentando acalmá-lo pacificamente, meu irmão já mais velho e com mais coragem, enfrentou meu avô fisicamente quando ele tentou bater na minha vó. Mas o velho bêbado empurrou meu irmão que estava no topo da escada e meu irmão rolou a escada, se machucando.
Sol abriu a boca, chocada com a gravidade da situação.
— Então os vizinhos chamaram a polícia, meu avô foi detido e meu irmão foi para o hospital. Entraram em contato com nossos pais, que eram os guardiões do meu irmão em caso de doença, e quando meus pais chegaram ficaram sabendo de tudo. Meu irmão ficou bem, mas nossos pais ficaram arrasados e viemos embora trazendo minha vó.
Sofia baixou a cabeça, e Sol entendeu o motivo das consultas psicológicas que os irmãos faziam, mesmo sem Yuri tocar no assunto do motivo real. Ela sempre imaginou que era algo relacionado à mudança de cultura ou alguma dificuldade de adaptação.
— Seu avô foi preso, né? — Sofia perguntou, quebrando o silêncio.
— Sim, mas por ter empurrado meu irmão, afinal minha mãe prestou queixa. Já minha vó não prestou queixa por suas agressões. A Coreia do Sul tem mais casos de violência contra mulher do que se imagina; parece que nem há tanta comoção, e algumas mulheres, como minha vó, não prestam queixa. — Yuna suspirou. — Meu avô ficou preso alguns dias, mas com um bom advogado, apenas pegou serviço comunitário e hoje vive sozinho lá. Ninguém da família quer saber dele.
Sol estava indignada e sem saber o que dizer.
— Sinto muito por vocês, de verdade. Agora entendo a reação do seu irmão. Eu não poderia imaginar, sério. Eu... — Sol disse, cabisbaixa, e Yuna sorriu.
— Tudo bem, você não poderia adivinhar. — A menina respondeu, com um sorriso doce. — Nós vamos ao psicólogo, tratamos dos traumas, e não gostamos de bebida. Meu irmão, ao ver alguém bêbado, fica nervoso. É como se...
Yuna pensou um pouco e finalmente encontrou a palavra certa.
— Gatilho. — Sol sussurrou. —Isso se tornou um gatilho para ele...
Yuna assentiu, confirmando.
— Exatamente. — Yuna sussurrou, encarando Sol. — Por isso ele fugiu naquela noite, o amor por você não pode ser maior que o trauma.
O ambiente ficou carregado com a revelação, Sol sentia seu coração acelerado e culpado.
— Ele não deveria ter feito aquilo Sol, mas acho que ele teve medo de que o pai de vocês agisse da mesma maneira que meu avô. Pra nós, é um misto de raiva e medo... — Yuna assentiu.
Sol ficou em silêncio, refletindo sobre o que ouvira. A culpa e o arrependimento começaram a pesar sobre ela. Havia passado tanto tempo culpando Yuri por algo que ela não compreendia completamente. As dúvidas se acumulavam: foi injusta com ele? Ele deveria ter contado tudo? Sol se perguntava se o fim do relacionamento foi totalmente culpa sua...
♥
E agora, como isso fica gente?
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