9: Devorador de Corações

Antes de mais nada, bem vindos ao meu capítulo favorito do livro 💚

Esse capítulo contém cenas de violência, sangue, ossos quebrados, e terror psicológico.

Se você é sensível a esse tipo de coisa, pule as partes em negrito.

Mas NÃO pule o capítulo todo, porque a segunda metade é importante!

💚💚💚

Durante toda a semana, Lia, Anabel e Susana não tocaram novamente no assunto dos pesadelos. Porém, as três acordaram no meio da noite, totalmente apavoradas, madrugada após madrugada.

Apesar de não terem comentado com ninguém sobre o assunto, dava para ver a diferença no comportamento delas. As três pareciam pálidas e desanimadas, com os ombros caídos e sem força.

Lia, Anabel e Susana se sobressaltavam com qualquer barulho, viam vultos onde nada havia, e tinham a constante sensação de estarem sendo observadas.  As três compartilhavam de um tipo de apreensão que ninguém mais poderia entender.

Como se, a qualquer momento, o rosto de um colega pudesse se transformar numa máscara amadeirada monstruosa, ou se ao virar a esquina fossem simplesmente dar de cara com a figura pavorosa do Khalifawe, espreitando, pronto para atacar.

Na sexta à noite, depois de passar uma semana inteira tendo que encarar outras pessoas e dar respostas vagas sobre sua aparência e saúde, tudo que Lia queria era se enrolar confortavelmente em suas cobertas e dormir por doze horas seguidas.

Sua mãe passaria o fim-de-semana fora em um evento de moda na capital, e, por isso, ela poderia ficar de pijama o dia todo, comendo nada além de pipoca e cereal, e procrastinando todas as tarefas domésticas. Quem sabe até convidasse Anabel para hidratar o cabelo enquanto assistiam um filme...

Adormeceu planejando seu dia de preguiça, e sonhou que estava na Floresta Encantada que tinha descrito em seu texto. No sonho estava descalça, e sentia as folhinhas de grama fazendo cócegas em seus pés.

O cheiro de mato e terra úmida era agradável e reconfortante, e uma brisa serena agitava os fios rebeldes de seu cabelo. Haviam pequenas gotinhas de orvalho salpicando as folhas das moitas, e o sol lançava finos raios por sobre o verde.

Ela sentia o tecido macio da camisola roçando sua pele enquanto caminhava, passo por passo, para a entrada do Bosque.

Era a primeira vez em muito, muito tempo que se sentia tão bem. Aquela constante pressão em seu peito não existia mais, e ela não estava mais o tempo todo consciente de sua respiração.

Suas costas não pesavam por carregar o fardo terrível de guardar um segredo do resto do mundo, mas, ao contrário, se sentia tão leve, que quase podia flutuar. Se sentia completa, como se não precisasse mais sofrer ou ter medo outra vez na vida.

Pequenos raminhos de flores rasteiras margeavam o caminho, e um perfume adocicado muito sutil recendia no ar quando o vento batia em seu rosto.

Tudo ali era tão calmo e silencioso, que dava vontade de simplesmente continuar andando para sempre, e nunca mais olhar para trás, nunca mais voltar para aquela vida que só era cheia de tristeza e dor.

Então, Lia seguiu. Andou, e andou, e andou, por tanto tempo que não saberia dizer. Seus pés fizeram calos, e por fim criaram fissuras que começaram a sangrar. Mas ela não percebeu nada disso. Tudo o que sabia, é que não podia haver caminho de volta.

Com o passar do tempo, sua camisola se prendeu nas pontas dos galhos, e se rasgou em diversas partes. Pequenas folhinhas e gravetos caíram sobre seus cabelos, e ficaram presos, sem que ela desse por conta.

Com o passar do tempo, seus músculos doíam e ela se sentia exausta, mas estava inebriada, e não podia parar de caminhar. Por pior que as coisas parecessem, algo dentro dela sabia que do outro lado era ainda pior.

Quando olhava para frente, não via nada além das copas das árvores se fechando. Quanto mais entrava para dentro do Bosque, mais ele parecia continuar, para frente, e para frente, como caminhar dentro de um grande círculo; mas Lia sabia que não estava andando em círculos, porque, para isso, precisaria em algum momento retornar ao seu ponto de partida, e ela sabia que naquele caminho não havia retorno.

Ela andou por tanto tempo, que as copas das árvores foram se fechando cada vez mais sobre ela, e os raios do sol foram sumindo, tampados pela espessa camada de folhas, ou substituídos pelo brilho febril do luar.

Sua pele se arrepiava cada vez que o vento gélido da madrugada cruzava seu caminho. Ela tinha ido tão fundo no Bosque, que já não sabia mais como voltar. Quando olhava para trás, o caminho parecia tão infinito quanto para frente.

Sua mente queria continuar, mas seu corpo não aguentava mais, e, por isso, ela caiu no chão exausta e tremendo de frio. Abraçou os joelhos, tentando se manter aquecida, mas seu queixo batia violentamente.

Tentou cobrir os ombros com o cabelo, numa falha tentativa se proteger do vento, mas não adiantou. Continuava fria até os ossos.

Estava assim, congelada e vulnerável, quando viu um vulto passando entre os galhos das árvores. O mais profundo pavor tomou conta de seu ser. Não conseguia correr, não conseguia nem ficar de pé.

Àquela altura, não conseguia nem mesmo chorar. Suas lágrimas sairiam como cristaizinhos de gelo salgado. Tudo o que podia fazer era olhar, paralisada, e esperar para ver o que aconteceria.

Lentamente o contorno da figura do Khalifawe se materializou diante dela, o corpo encurvado, o rosto anguloso e pontudo, e as enormes garras prestes a estraçalhar qualquer ser vivente que cruzasse seu caminho.

Não podendo fazer mais nada, Lia olhou para ele fixamente, bem nos olhos. Os dois se encararam ferozmente, e ele veio em sua direção, andando desajeitadamente com suas pernas-galho, e arrastando as garras no chão como rastelos.

Quando se aproximou dela, suas garras estavam enlamaçadas, e ele delineou com um dedo-graveto o braço dela, sujando-a de um jeito que ultrapassava a camada da sua pele e chegava até a sua alma.

Aquele gesto fez com que gotículas de sangue emergissem de um recém-feito arranhão. Lia se sentia nauseada, um imenso mal-estar tomando conta de seu corpo e revirando suas tripas. Ela queria vomitar, pois quando vomitava sempre se sentia melhor.

Mas não conseguia. Fazia ânsias de vômito, mas no fim das contas nada saía, e um gosto enferrujado de sangue e terra subia à sua boca.

O Khalifawe subiu em cima dela, imobilizando sua cintura com o que deveriam ser seus joelhos, e mais do que nunca ela sentiu como se fosse nada mais que uma criança apavorada ao descobrir que o Bicho Papão era real.

Ele traçou uma linha reta em seu peito com o dedo indicador, e um corte profundo ali se abriu. Seu sangue, viscoso como mel, saía aos borbotões, escorrendo pela lateral de seu corpo e formando uma poça no chão sob suas costas. O sangue empapou seu cabelo e o que restava do tecido de suas roupas.

Então, o Khalifawe enfiou as garras, uma por uma, dentro do corte, penetrando mais profundo em sua carne até alcançar o osso de sua costela, que quebrou como se fosse um graveto seco. Seu rosto estava colado no dela, e ela sentia o bafo morno e pútrido de sua respiração.

Não conseguia mais olhar para ele, nem ver a cena que se decorria, por isso, fechou os olhos com o máximo de força possível. Sentiu os dedos da criatura se fechando ao redor de seu coração, sentiu suas veias sendo distendidas até arrebentarem, e, por fim, sentiu o peito vazio, repleto de nada.

O Khalifawe saiu de cima dela e se afastou alguns passos, enrodilhando-se na terra para comer o órgão ainda pulsante. Lia entreabriu um dos olhos e pode ver de canto o contorno de seu coração entre os dentes daquele ser pavoroso.

Ela agora nadava em uma piscina do próprio sangue. Ouvia o monstro resfolegando enquanto destroçava sua parte mais vital.

Lia sentia os olhos pesando, e ouvia ao longe a melodia dos grilos cricrilando e das cigarras cantando o prelúdio do alvorecer. Suas mãos e pés estavam submersos em sangue, mas ela nada sentia.

Não sentia mais frio, nem o toque do tecido molhado sobre sua pele, nem o sopro da brisa noturna. Já não sentia o pinicar da grama, nem o cheiro da terra, nem a umidade da geada. Não sentia seus membros, nem seus órgãos, nem nenhuma parte de seu corpo. Nem um formigamento ou agulhada sequer.

Tudo o que sentia era um monte de nada.

💚💚💚

Lia abriu os olhos lentamente, se acostumando à claridade. Tudo nela doía, da raiz dos cabelos até as unhas dos pés. Ela se sentia febril e devastada. Levou a mão ao peito, sob a roupa, e o percorreu com a ponta dos dedos. Sua pele estava lisa e macia, sem nenhum arranhão, como deveria ser.

Ela olhou ao redor, e viu que nada era familiar. Não reconheceu nenhum dos móveis, nem a colcha que cobria seus pés, nem o cheiro do travesseiro sob a sua cabeça.

Levantou, meio zonza, e viu que estava usando uma camiseta também desconhecida, que ia quase até seu joelho. Ao dar alguns passos vacilantes, acabou esbarrando numa mesinha de canto, e o abajur que estava por cima caiu no chão.

Ela se ajoelhou para apanhá-lo, quando a porta se entreabriu, e o rosto de Marco apareceu pela fresta.

— Você acordou — constatou ele.

— Marco? O que eu tô fazendo na sua casa?

— Taí uma ótima pergunta. Você me chamou no portão, às 6:47, vestindo nada mais que uma camisola em frangalhos — ele apontou para um canto no chão, onde uma bolinha de pano suja de terra estava amontoada.

Lia olhou para a camiseta que vestia.

— Eu te ofereci uma roupa minha. Os seus retalhos não estavam muito apropriados.

— Eu falei com você? Meus olhos estavam abertos?

— Sim, eles estavam. Você me chamou, como sempre faz nos dias de escola, e eu acordei assustado, pensando que pudesse ter confundido que dia era. Vesti minha roupa correndo, mas quando saí, me deparei com você, toda imunda, e tremendo de frio. Perguntei se você estava bem, mas você não disse nada, só me encarou assustada. Então te convidei pra entrar, te ofereci uma camiseta limpa, você pegou e entrou no quarto pra se trocar. Quando voltei pra ver se tudo estava certo, você estava deitada na minha cama, dormindo. Fui pra sala e cochilei um pouco no sofá.

— Quantas horas são?

Marco olhou para trás, para o relógio de parede que ficava na sala.

— Quase nove.

Lia se sentia extremamente constrangida com toda essa situação, e só queria ir pra casa. Por outro lado, não queria ficar sozinha de jeito nenhum.

— Seus pais estão em casa?

— Estão. Mas nunca acordam antes do meio-dia num sábado.

— Bom. Pelo menos eles não viram esse fiasco. Tenho que ir pra casa.

Lia olhou para o que restava da camisola sem saber o que fazer. Marco também olhava de um lado para o outro, dos retalhos para as pernas nuas dela, e para a cama bagunçada atrás, confuso.

— Marco... Eu não quero tornar essa situação nem um pouco pior do que ela já está..., mas... Será que você pode vir comigo? Minha mãe viajou, e eu realmente não quero ficar sozinha agora.

— Tá bom — ele concordou, receoso.

— Desculpa te colocar nessa posição.

— Não precisa se desculpar — Marco queria perguntar outra vez se estava tudo bem, mas, pensando melhor, é claro que não estava. Num dia bom, ninguém aparece ao amanhecer na casa de outra pessoa seminu e completamente encardido.

Lia assentiu com a cabeça, e saiu em direção à porta. Esperou no portão, enquanto Marco escrevia um bilhete para os seus pais, dizendo que estava na casa de uma amiga, e o fixava na porta da geladeira.

Os dois saíram, e a rua lá fora estava brilhante com o sol cálido da manhã. Lia estava descalça, como no início do sonho, e abraçava os ombros num gesto de autoproteção.

Marco passou o braço em torno dela, instintivamente, e o gesto foi bem-vindo. Eles desceram a avenida abraçados, e entraram na rua de Lia.

Temos um banner novo, yay!

E eu quero MUITO saber o que vocês acharam desse capítulo!

É uma das primeiras vezes que me arrisco em suspense/terror e tô curiosa pra saber se ficou bom!

Nos vemos domingo que vem 💚

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