8: Desenho Pavoroso


Entrar no quarto de Anabel era como entrar dentro da cabeça dela. Haviam cores vivas e lembranças por todo lado. Todas as superfícies eram cobertas de papeis. Desenhos, fotos, pequenos poemas escritos por Lia, colagens, recortes, pôsteres e afins.

No canto, havia uma estante cheia de livros e prêmios de vários tipos: troféus, medalhas, bottons com a estampa do número 1 e fitas penduradas, faixas, a coisa toda.

Anabel era um caso raro de pessoa que ganhava tudo, todos os concursos, sorteios e olimpíadas imagináveis. Sempre que acontecia algum evento premiável na escola, ou até na cidade, ela vencia em primeiro lugar.

Lia, por outro lado, só tinha certificados de participação. Ela nunca conseguia se ater ao tema proposto, sempre divagava e criava coisas muito boas, mas que não tinham nada a ver com o que fora proposto.

Quando Anabel e Lia tinham nove anos, foi aberto na escola delas um concurso de contação de história, onde os alunos deveriam decorar um livro infantil inteiro e recitá-lo no palco, na frente de todo mundo, e o aluno que melhor performasse seria recompensado.

Lia escolheu um livro simples, porque apesar de querer ganhar, como todo mundo, ela gostava muito mais de inventar histórias novas do que de decorá-las já prontas.

Anabel escolheu o maior livro de todos, com as palavras mais difíceis. E contou a história tão bem, que ao final todos tinham lágrimas nos olhos.

Ela foi convidada para se apresentar em todos os colégios da cidade, em todas as turmas. Até viajou para algumas cidades vizinhas com sua encenação. Lia, por outro lado, nem conseguiu decorar seu livro inteiro.

Era sempre assim. Anabel ganhou o concurso de desenho sobre “como cuidar do nosso planeta”, onde desenhou um mundo de cores vibrantes com coisas sendo recicladas ao redor, e também o concurso de redação sobre a cidade onde moravam.

Até nos bingos e sorteios, que não dependiam de talento, mas sim de pura sorte, ninguém tinha chance contra ela.
E não era só isso. Bel era também a menina mais bonita da escola, e de quem todos gostavam, até os adultos.

Sempre que um professor precisava de ajuda, ela era a escolhida. Precisavam de um líder de turma, ela era a primeira opção. Os meninos faziam uma lista das meninas mais bonitas de cada ano, ela estava sempre no topo; às vezes até acima das meninas mais velhas.

Anabel até foi a primeira de todas as meninas a usar sutiã (e ter algo para preenchê-lo).

Lia se lembrava bem de como, aos treze anos, a camiseta dela fazia voltinhas entre os seios, onde o pano ficava repuxado por causa do volume. Era a coisa mais estúpida para se reparar, com certeza. Mas era o tipo de coisa que por ridículo que fosse, só a fazia ser ainda mais bonita e descolada.

Muitas pessoas eram bonitas, cada uma com seu jeito particular, mas Anabel cativava em pequenos detalhes como esse, que poderiam passar despercebidos de forma isolada, mas no conjunto da obra, faziam dela uma criatura fantástica. Tudo nela era perfeito, dentro e fora.

Haviam ocasiões em que Lia se sentia um pouco intimidada por ela, e sentia que era injusto o universo ter dado todas essas coisas boas para ela, ao invés de distribuir de forma igual entre várias pessoas. Mas isso era só quando ela estava chateada.

No geral, sabia que cada um tinha sua fatia de pizza no mundo, e ela não precisava invejar e porção de Anabel, porque tinha a sua própria. Mesmo que de um jeito diferente. Ela sabia que o céu só era tão lindo, porque tinha bilhões de estrelas brilhando simultaneamente, cada uma em seu lugar apropriado, cada uma da sua própria maneira. Não importava que Anabel fosse a Lua. Ainda tinha muito espaço sobrando.

As duas estavam jogadas na cama, vendo clipes de música pelo computador, quando Lia se distraiu olhando para o mural de desenhos de Anabel, fixados com alfinetes coloridos uns sobre os outros. A imagem de Renan às vezes vinha à tona em sua mente, mas ela logo a afundava novamente sob lembranças do suposto Khalifawe, e a sensação pavorosa que ele trazia consigo.

Ela sabia, racionalmente, que devia ter ficado impressionada pela descrição precisa de Susana no dia anterior, e como sua imaginação era fértil, teria recriado o pesadelo da outra.

Contudo, a experiência tinha parecido tão real, que só de lembrar ela já podia ver aqueles olhos luminescentes a encarando, e sentir o pavor tomando conta de seu corpo, vertendo-se em um arrepio que a fazia se sentir febril.

Seu corpo suava, tentando expulsar aquela sensação, mas ela persistia. Sentia-se exatamente da forma como Susana descreveu.

Durante o dia, quando tudo era quente e claro, era fácil rir de tudo isso. Era fácil lembrar e achar que não tinha sido nada demais, porque pensando racionalmente, aquela figura não parecia assim tão assustadora.

Eram só um monte de galhos retorcidos, pelo amor de Deus. Só que o que fazia o sonho ser tão terrível não era o ser em si. Era a sensação de profunda agonia. O sonho brincava com as piores emoções que você já tinha sentido, misturando-as e as deformando para que se transformassem em algo muito pior.

Enquanto pensava tudo isso, o olhar de Lia se fixou nos papéis do quadro com tanta intensidade, que um esboço do Khalifawe apareceu em um deles. Não era tão preciso, os contornos estavam mais borrados, seu corpo parecia fora de proporção e os olhos não estavam brilhantes, mas sim vazios. Ainda assim, dava para reconhecer aquela imagem em qualquer lugar.

Lia saltou da cama e arrancou o papel, fazendo Anabel se sobressaltar com seu o movimento repentino.

— A Susana falou com você? — Lia perguntou espantada.

— Sobre o quê?

Lia virou a face do desenho para ela.

— Foi você quem fez esse desenho, Bel?

— Foi, por quê?

— De onde você tirou essa imagem?

— Lia, você está bem? Você está agindo de forma muito estranha hoje.

— Essa é a criatura do meu pesadelo. Na escola, hoje cedo.

— Quê? Como assim?

— Foi isso que eu vi quando cochilei.

Anabel agora estava com os olhos arregalados e uma expressão confusa.

— Não, Lia. Foi com isso que eu sonhei.

— Você? Quando?

— Praticamente todos os dias nessa última semana.

O queixo de Lia estava caído. Ok, podia-se dizer que Lia teve aquele pesadelo porque ficou impressionada com o relato de Susana. Mas segundo ela, não tinha contado nada para Anabel. E como Bel poderia ter sonhado a mesma coisa que Susana, nas mesmas noites, sem que uma tivesse contado nada para a outra?

— Vocês estão fazendo algum tipo de brincadeira comigo?

Susana e Anabel nunca tinham feito nada parecido com ela, as duas mal faziam qualquer coisa juntas. Ainda assim valia a pena se certificar. Se fosse algum tipo bizarro de brincadeira, Bel não iria conseguir sustentar a mentira por muito tempo. Susana até poderia ser capaz de enganá-la, mas não Anabel. As duas se conheciam bem demais pra isso.

— Brincadeira? Do que você está falando? Lia, é sério. Eu não tenho ideia do que está acontecendo aqui.

— A gente tem que achar a Susana, agora — mesmo sob essas circunstâncias, Lia não estava disposta a revelar seu segredo. Entretanto, ela precisava saber disso. Ela precisava ver o desenho. E, então, poderia decidir por si mesma sobre se abrir ou não com Anabel. — Bel, eu sei que nada disso faz sentido. Por favor, confia em mim. A gente precisa falar com a Susana o mais rápido possível.

Anabel não sabia nem o que pensar. Ela ainda não fazia nenhuma ideia sobre um suposto Khalifawe, nem sobre sua irmã, nem sobre nada. Ela só queria que essa insanidade acabasse, por isso, seguiu Lia até o portão sem questionar, subiu na garupa da sua própria bicicleta, enquanto Lia guiava, e as duas pedalaram até a lanchonete onde sua irmã mais velha trabalhava.

Ao chegarem, Lia estava esbaforida e vermelha, e o cabelo das duas estava bagunçado. Anabel desceu, ainda em estado de completa confusão, e Lia jogou a bike no meio-fio. O sininho da porta tilintou duas vezes quando elas entraram.

Susana estava atrás do balcão, com seu uniforme usual de trabalho: uma camiseta justa, de manga curta, cor amarelo vivo e uma jardineira lavanda; meias listradas de branco e roxo até os joelhos, e all star de cano alto do mesmo tom de amarelo da parte de cima. Seu cabelo estava preso para cima.

Ela levantou os olhos ao ouvir os sininhos, e sua expressão mudou de neutra para curiosa ao ver as duas. Lia tirou o pedaço de papel amassado do bolso, e esticou bem na frente dela, antes mesmo que alguém pudesse dizer alguma coisa.

Ao identificar do que se tratava a representação, Susana arregalou os olhos e direcionou um olhar furioso para Lia. Anabel agora não parecia mais tão confusa, mas sim nervosa e cansada de toda essa encenação.

— Sabe quem fez esse desenho, Susana? A Anabel.

— Poxa, Lia, eu pedi pra você não contar nada!

— Contar o quê? — interrompeu Anabel, e completou com: — Por que todos estão surtando com esse desenho? Meu Deus. Foi só um sonho que eu tive, não é tão grande coisa assim.

— Um sonho que você teve? — Questionou Susana. Bel confirmou com a cabeça, e reforçou a ideia com uma cara de “dã-ã”.

— E essa nem é a pior parte. Eu tive o mesmo sonho hoje de manhã na aula — contou Lia.

— Quem dorme tão pesado na aula a ponto de sonhar? — Susana perguntou, exatamente como a irmã fizera mais cedo.

— Isso não vem ao caso, ok? O que importa é: por que esse troço tá aparecendo no sonho de todo mundo? — Rebateu Lia.

Anabel finalmente começou a entender do que tudo isso tratava. Então, ao que parecia, Susana tinha tido o mesmo pesadelo que ela.

— Você sonhou com isso também? — Perguntou para Susana, para confirmar sua dedução.

— Várias vezes seguidas — ela respondeu.

As três ficaram em silêncio, cada uma encarando um ponto diferente. Susana foi a primeira a falar, depois de um tempo, e contou para Anabel toda a história. O que acontecia durante o pesadelo, como ela tinha confessado tudo para Lia no dia anterior, e, por fim, que estava trabalhando em uma história onde seria capaz de derrotar o Khalifawe.

Nesse meio-tempo, Lia e Anabel sentaram-se nos bancos altos que ficavam de frente para o balcão. Ao terminar sua história, Susana entregou um guardanapo e uma caneta para cada uma delas, e sugeriu que cada uma fizesse o mesmo: escrevesse ali suas melhores qualidades, e quais delas poderiam protegê-las contra o aterrorizante monstro.

Ai, gente, tô muito empolgada porque os próximos 2 capítulos são meus favoritos! 😍

Obrigada por chegarem até aqui 💗

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top