6: O Bobo e a Fada


Quando Lia chegou em casa, encontrou Renan sentado na poltrona do seu quarto, com as mãos firmemente entrelaçadas no colo, a cabeça baixa, e as pernas balançando compassadas.

Naquele dia, como na grande maioria deles, usava um boné, que cobria parcialmente seu rosto. Sua camiseta era fina, de manga longa, e tinha um desenho do homem-aranha escalando um prédio.

Lia achou que o vermelho acendia o tom de verde dos olhos dele de um jeito lindo. Devia ser porque vermelho e verde são opostos no círculo cromático, ou qualquer coisa assim.

— Te fiz esperar demais?

— Não — respondeu ele, erguendo os olhos somente o suficiente para enxergá-la.

— E aí? Tá tudo bem? — O que ela realmente queria perguntar era o que seria importante o suficiente pra ele ter se dado ao trabalho de ir até lá, mas achou que isso soaria mal.

— Meu skate? — Ele devolveu a pergunta, compreendendo o que ela realmente queria saber.

— Ah. Isso. — Lia abriu uma das portas de seu armário, pegou o skate, colocou-o no chão e empurrou com o pé, para que chegasse até ele, no lado oposto do quarto.

Renan pôs um dos pés em cima do shape, para parar o skate antes que ele colidisse com a base da poltrona.

— Você ainda está usando?

— É. Eu e a Bel damos umas voltas, às vezes.

Ele pareceu corar um pouco à menção do nome dela, mas não dava para saber com certeza.

— Se você quiser ficar mais...

— Não, tudo bem. Já fiquei as férias inteiras, já foi muito mais do que eu deveria.

Ele assentiu com a cabeça e olhou para fora através da janela.

— Quer dar uma volta comigo? Sabe, a saideira... — Arriscou Lia, com um pouco de receio de estar passando dos limites do que era aceitável dentro da amizade deles.

Renan ficou em silêncio por um longo tempo. Na verdade, foram apenas alguns segundos, mas parecia muito pra uma pergunta tão simples. Ele poderia só dizer que não, e tudo bem.

— Tudo bem se você não quiser.

— Eu quero.

Lia sorriu envergonhada, e as bochechas dele coraram de verdade dessa vez.
Os dois foram para a rua, e ela se ofereceu para ir primeiro. Foi até esquina ziguezagueando, subiu e desceu do meio-fio algumas vezes, e depois voltou para a porta de casa, onde Renan esperava sua vez, com um leve ar de aprovação no rosto.

Quando Lia chegou, e lhe entregou o skate, ele virou o boné pra trás e bateu o pé no shape, que voou pra cima, direto para sua mão.

Quando começou a andar, Lia ficou perplexa. Ele não era como ela e Anabel, que iam de um lado pro outro e faziam algumas gracinhas. Ele andava de verdade, como se o skate fosse uma extensão do seu corpo e a rua fosse o palco do seu show.

Fez manobras das quais a existência era desconhecia por Lia. Quando retornou, ela estava literalmente de queixo caído.

— Não sabia que você era tão bom! — Cumprimentou ela.

— Que nada.

Os dois deram mais algumas voltas, alternando-se. Quando ficaram cansados demais, se sentaram na calçada da porta da casa de Lia, um do lado do outro.

— Renan! Você devia disputar um campeonato, ou sei lá.

— Eu disputei.

— E aí?

— Foi legal.

Lia riu alto.

— Tá, mas... Você ganhou?

— É — ele estava novamente cabisbaixo, e estralava os dedos ruidosamente.

— Se a Bel visse isso! — Ela soltou, sem pensar.

— Hãn?!

— Ela ia achar maneiro, sabe... Ela curte skate mais do que eu, eu acho — a frase saiu meio vacilante, porque Lia se deu conta de que quase revelou o segredo da amiga sem querer.

Os dois ficaram encarando o chão por tanto tempo, que Lia já tinha começado a contar as pedrinhas do calçamento, quando Renan falou:

— Posso te contar uma coisa?

Para Lia foi um susto, primeiro porque ela estava distraída com seus próprios pensamentos, segundo porque ela nunca tinha visto Renan dizer tantas palavras ao mesmo tempo, e terceiro pois não conseguia imaginar o que ele poderia lhe contar, com esse tom de voz tão sério.

— Você tá me assustando um pouco — confessou ela, rindo de nervoso.

— Eu li seu texto.

— Que texto?

— Na escrivaninha — ele apontou com o polegar na direção da casa, atrás deles.
Lia franziu as sobrancelhas tentando se lembrar a qual texto ele se referia.

— Sobre o caminho sem fim — ajudou Renan.

— Ah. Aquele — ela suspirou aliviada. Pelo menos não era seu diário, onde ela citava inúmeras vezes a quedinha de Anabel por ele.

— Desculpa. Fiquei um pouco entediado. E eu achei que, se estava bem em cima da mesa, não devia ser algo tão secreto... — Ele confessou. Seu tom de voz era baixo e constante, e ele pronunciava as palavras sem pressa, com suavidade e cadência.

— Não tem problema. Não era nada demais.

— Mesmo assim.

— Você gostou, pelo menos? — Ela quis saber.

— Aham. Daria um ótimo jogo — sugeriu.

— Jogo? Interessante. Nunca tinha pensado nisso.

Agora os dois tinham posturas mais relaxadas. Como se andar de skate juntos, e confessar coisas, tivesse desanuviado um pouco da espessa neblina de constrangimento que circundava a amizade deles.

— Quando criança, eu tinha um jogo de videogame parecido — ele continuou.

— É? — instigou Lia.

Renan confirmou com a cabeça.

— Engraçado. Achei que você conhecia também, porque tinha um bosque encantado, exatamente como no texto. Mas como era um jogo infantil, os personagens eram criaturas de contos de fadas, e tal. Eu jogava como bobo da corte, na maioria das vezes.

— Não, não conheço. Engraçado. Mas... Um bobo? Sério? Por essa eu não esperava.

— O quê?

— É só que... Os bobos são... bobos! E você, nem tanto.

Uma sombra de sorriso atravessou o rosto dele.

— Quem você acha que eu seria? — Indagou Lia.

— Uma fada, talvez?

— É a gente que escolhe?

— Sim.

— E o que será que as fadas fazem?

— Não sei — ele riu de forma contida. — Nunca joguei como fada.

— Você perdeu a oportunidade de descobrir, então! Se eu fosse uma fada, o que eu faria? — Lia olhou para o nada, refletindo.

— Voaria, eu acho.

Os dois riram.

— Acho que as fadas meio que fazem o que elas querem — ele sugeriu. — E jogam pó mágico nas coisas, talvez.

— E brilham — Lia arrastava a ponta dos tênis no chão, distraída, espalhando poeira e pedacinhos de cascalho pra lá e pra cá.

— A gente podia colocar personagens na sua história. Se você não se importar — completou ele, provavelmente sentindo o mesmo medo que Lia tivera antes, de estar ultrapassando os limites da amizade deles ao sugerir mudar uma coisa dela.

— Seria interessante. Um bobo e uma fada, que tal?

Ele riu, o sorriso mais aberto que Lia já tinha visto em seu rosto até então.

— Eu posso ajudar.

— Seria bom.

Os dois continuaram ali, meio rindo um pro outro, Renan com o skate sob os pés, e Lia balançando suavemente o corpo para frente para trás, na falta de algo melhor para fazer com ele.

— Tá quase escurecendo — ele disse, por fim. — Acho que já vou indo.

— Tá bom. Foi legal você ter vindo.
Ele acenou com a cabeça em resposta, o que provavelmente significava que ele também tinha achado legal ter ido.

— Quer levar o texto? — ela ofereceu.

— Não, tudo bem. Eu lembro de cabeça.

— Ok.

Ele colocou o skate no chão, subiu em cima, e remou algumas vezes. Enquanto deslizava, olhou para trás e acenou com a mão. Lia acenou de volta, e o viu virar a esquina e desaparecer.

Comente aqui se você acha que rolou um clima entre Lia e Renan 😅

Continuem comigo, porque essa história está prestes a ficar MUITO interessante!

Obrigada por chegarem até aqui 💗

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