5: Valente
Esse capítulo contém cenas de pesadelo, em nível leve.
Se você não curte esse tipo de coisa, pule a parte marcada em negrito.
— Você não precisa ficar com uma expressão tão apavorada. Relaxa, eu não vou te morder — disse Susana.
— Desculpa — replicou Lia. — Eu não percebo que estou fazendo isso.
— Você tem tanto medo de mim assim?
— Não é medo, Susana. É só que... Eu sei que nunca vou atingir seu nível de qualidade. Eu sei que você nunca vai olhar pra mim como igual. Você sempre vai estar acima — confessou, sem pensar muito no que estava dizendo.
— Nossa. Ninguém pode reclamar que você não é sincera.
— Desculpa — repetiu. — Minha intenção não era ser rude. É só que, desde sempre, você sempre trata a Bel e eu como se você fosse adulta e nós duas fôssemos bebês.
— Não precisa ficar se desculpando, sabe? É que eu sou a mais velha. Não quero pesar o clima falando dos meus pais nem nada, é só que desde que eles morreram, eu sinto que eu tive que amadurecer muito mais depressa do que as outras pessoas da minha idade. Em muitos momentos, é como que eu tivesse que ser uma mãe pra Bel. Proteger e cuidar dela. E quem cuida de mim?
Lia conteve o impulso de se desculpar uma terceira vez, e ao invés disso apenas olhou para baixo, pensativa.
— Lá vem — Susana exprimiu, rolando os olhos.
— O quê?
— Essa cara de pena. Tá tudo bem, Lia. A vida é o que é.
— Droga. Eu tô fazendo com você exatamente o que eu odeio que façam comigo. Toda vez que o assunto do incêndio aparece, as pessoas fazem exatamente essa cara pra mim.
— A gente não devia estar lidando com incêndios e mortes. Nossos problemas deveriam ser, tipo, paixões adolescentes não correspondidas, brigas com as amigas e provas da escola.
Na maior parte do tempo, Anabel era tão bem-humorada, tão tranquila, e Susana parecia tão confiante e dona de si, que era fácil deixar de lado o que elas tinham passado, perdendo os pais tão jovens, e tendo que crescer sem uma mãe para lhes aconselhar e olhar por elas.
Devia ser horrível esse sentimento, de pensar constantemente em todas as coisas que elas não poderiam viver. Se Lia se sentia tão mal por não poder recuperar seus objetos, qual seria o tamanho da dor de perder alguém?
— Pelo menos a gente pode compartilhar nossa dor. Eu não tenho ideia do que vocês duas passam. A minha perda foi insignificante perto da de vocês. Mas eu entendo parcialmente sobre esse sentimento, sobre os olhares e comentários das pessoas, e sobre o constrangimento delas quando assunto vem à tona.
— Obrigada pela solidariedade. Seu sofrimento importa também, ok? Essa não é uma guerra de quem sofreu mais. Todos os sofrimentos importam, mesmo em graus diferentes.
— Uau. Acho que a gente nunca teve uma conversa tão profunda desde quando a gente tinha três e sete anos.
Susana riu.
— Eu não sou uma vilã! — Afirmou ela. — Só um pouco superprotetora com a minha irmã.
— A Bel se vira bem sozinha.
— É mesmo, não é?! Essa sem vergonha sabe se cuidar!
Lia pegou mais um cookie da bandeja, colocou em seu prato, e pôs uma pequena bola de sorvete em cima. Partiu um pedaço com a colher e comeu.
— Então. Agora que a tensão entre nós deu uma diminuída, deixa eu te explicar por que pedi sua ajuda.
— Hmm? — resmungou Lia de boca cheia.
— Eu quero escrever uma história, e não sei muito bem por onde começar.
— Tipo o quê? — Perguntou Lia, tapando a boca com as costas da mão, pra não voarem pedaços do cookie metade mastigado.
— Outro dia eu estava deitada, quase pegando no sono, quando vi uma sombra projetada na minha janela. Parecia uma pessoa, mas uma pessoa desfigurada, com ângulos estranhos no corpo. A situação toda foi bem ridícula, porque, é claro, como nos desenhos infantis devia ser só um galho de árvore arranhando a minha janela. Mas como eu estava meio dormindo, com um pé na realidade e outro na inconsciência, me pareceu que aquele ser era um tipo de homem-galho, arrastando suas garras pela minha janela, tentando abrir caminho até dentro do meu quarto. Eu estava com tanto sono, que não conseguia me obrigar a acordar de vez e perceber que nada daquilo era real. Então, acabei dormindo, e sonhei com essa criatura, que no sonho era chamada de Khalifawe. Ela vivia em um lugar sombrio, cercado por árvores, e eu tinha que lutar contra ela, mas não importa o que eu fizesse, nunca conseguia vencer. Quando eu pensava que tinha conseguido, ela ressurgia, e arranhava minha pele com suas garras-galho, e eu via as gotas de sangue pingando no chão, e formando uma espécie de desenho que eu não compreendia. Às vezes eu encontrava uma saída, mas no fim era só outra entrada para o mesmo lugar, e tudo recomeçava.
— Isso que dá jantar antes de dormir... — Lia quis rir de sua própria piada, mas desistiu ao ver a expressão séria no rosto da outra.
Na verdade, isso a lembrava de sua própria história, a que tinha escrito na sexta à noite, que terminava com sombras de galhos retorcidos. Um pequeno arrepio percorreu seu corpo, mas ela continuou impassível. Não queria piorar as coisas.
— Enfim. Desse dia em diante, eu não consigo mais dormir direito. Toda vez que deito na minha cama e apago a luz, ouço aquele som horrível de unhas raspando sobre o vidro. Durante o dia, quando eu penso no assunto, parece a maior das besteiras. Tudo isso por causa de um galho! Eu já até fui lá fora e cortei todos os galhos de árvore que tivessem a remota possibilidade de alcançar minha janela. Mas não adianta. Quando escurece, e chega a hora de dormir, eu simplesmente não consigo tirar isso da cabeça. E eu nunca me senti assim! Nem quando aconteceu o acidente! É como uma espécie de crise de pânico, mas eu não sei porquê. Pensei que, talvez, se eu escrevesse sobre isso, colocasse pra fora, talvez eu me sentisse melhor, sabe?
— Você não falou sobre isso com a Bel?
— Não. Ela se preocupa demais, e eu não queria causar um alvoroço em torno disso. Não sem antes esgotar as possibilidades de resolver sozinha.
Naquele momento, o celular de Lia apitou. Ela pediu licença e abriu a mensagem recebida.
Era de Renan, e dizia “vc não tá em casa”.
Lia respondeu com “não, na casa da Bel”.
“Espero?”
“Se vc quiser. Pra evitar de ter que bater papo com a minha mãe, pode ficar no meu quarto, devo voltar logo”.
“Certeza?”
“Claro, pq não?”
“Nada, te vejo daqui a pouco”.
— A sua ideia foi boa, na verdade — disse Lia, voltando ao assunto. — O que você tem em mente pra história?
— Não sei. Era nisso que eu queria a sua ajuda. Não sei por onde começar. Só de pensar no sonho eu já sinto um nó na boca do estômago.
— Acho que o primeiro passo aqui é você entender o quanto você é uma pessoa incrível e forte. Talvez, se você tiver em mente seus pontos fortes, a tal criatura não pareça mais tão assustadora. A gente pode começar anotando suas principais qualidades.
— Difícil. Acho que eu sou... — Susana começou a bater com o lápis ritmadamente no seu bloco de papel. — Resiliente? — Ela soltou o lápis na mesa e apoiou a cabeça nas mãos, entrelaçando os dedos nos cabelos. Um longo silêncio se fez, até que Lia arriscou, hesitante:
— Você é muito audaciosa. Tem coragem de fazer o que quer, e nunca deixa as opiniões dos outros pesarem sobre você. Mesmo quando a vida está ruim, você sempre parece animada com alguma coisa. Como se você tivesse um escudo de paz de espírito contra as desgraças ao seu redor. — Ela se calou, e refletiu por um tempo. — Um dos motivos pelos quais a Bel é assim, é justamente porque ela se espelha em você. Você é o modelo dela. Tem coisas que eu nem sonharia em fazer, mas ela me puxa pela mão, e me empurra pra coisa antes que eu possa pensar muito a respeito, o que às vezes acaba muito mal, mas sempre é melhor do que sentar na sua zona de conforto e nunca tentar nada. Vocês são assim, não têm medo de correr riscos. Sem falar que você é muito cuidadosa com ela. Até demais, às vezes.
Susana arqueou um dos cantos da boca, numa expressão carinhosamente lisonjeada, que quase parecia um sorriso. Pegou o lápis e escreveu em letras grandes no meio da folha: VALENTE. Depois, traçou três vezes sob a palavra.
— Esse é o espírito — parabenizou Lia. — Agora visualize a sua versão mais poderosa, que é capaz de criar e destruir coisas. Que sempre encontra força onde não tem. Depois que você estiver segura de si mesma, aí sim escreva sobre o monstro. Pode ser tipo um diário, mas escreva um final feliz, onde você o vence. Ou simplesmente acorda, sei lá. O importante é que você se lembre de quem você é.
— Tá bom. Pra te falar a verdade, eu não aguentava mais lidar com isso sozinha. Acho que eu só queria ter alguém pra conversar, afinal de contas... Obrigada por ter sido tão legal a respeito! E se você puder não contar pra Bel... Pelo menos, não ainda.
— Ah, quê isso. Você podia ter me dito ontem mesmo! Eu não ia fazer alarde. Mas enfim, então eu não posso dizer que estive aqui hoje. E eu odeio mentir pra ela.
— Eu ia dizer... Mas não consegui. Mas olha, não vai ser exatamente uma mentira, e sim uma omissão. Se é que isso melhora alguma coisa.
— Não muito. Mas tudo bem, é por uma boa causa; por consideração a você. Considere a possibilidade de falar sobre isso com ela, quando tudo passar.
— Correndo o risco de soar grossa, não preciso contar tudo pra Anabel só porque somos irmãs. — Susana questionou consigo mesma se ao menos tinha sido uma boa ideia contar para Lia. — Olha, eu só não quero que essa história cresça. Quanto mais a gente fala disso, mais se torna real no mundo físico, entende? Eu não devia nem estar falando sobre.
— Tudo bem. Foi uma única vez. Consigo guardar esse segredo.
— Obrigada.
— Sinta-se livre pra me ligar, qualquer coisa.
— Ok.
Bem, nesse capítulo nós chegamos em um lugar muito importante na história: vocês conheceram o nosso "vilão", o Khalifawe.
Me contem: vocês já tiveram alguma experiência com pesadelos constantes, ou paralisia do sono?
Obrigada por chegarem até aqui, e nos vemos daqui alguns dias ☺️
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