32 | Quase Doce
VICTOR
- Eu machuquei a Clarice. Não foi de propósito, mas... E se eu for essa pessoa horrível por dentro?
Estamos parados no sinal vermelho. Clóvis está com uma mão no volante e o cotovelo esquerdo apoiado à janela. Ele me olha com um misto de sentimentos. Nenhum deles é acusação ou pena. Não sei bem explicar, mas consigo senti-los correndo através de linhas imaginárias até mim.
- Não. Você não é essa pessoa.
- Mas e se eu for?
- Não, você não é - ele diz com mais firmeza, enquanto engata a marcha. - Não estou no modo negação. Eu posso não ter sido um pai presente, ou melhor, não fui um pai presente - se corrige, dando-me um breve olhar e noto que seus olhos estão carregados de tristeza -, mas digo com convicção que você está enganado sobre si mesmo.
- Será? - rio desgostoso.
Clóvis abre um pequeno sorriso.
- Você tinha todas as desculpas para ser um rebelde e se meter em confusão. Eu não estava lá para te guiar como deveria, mas, por alguma razão, você se tornou o oposto. Veja só como você acolheu e amou a Lídia e seus filhos, contrariando o que qualquer adolescente em seu lugar faria. Um garoto ruim não cuidaria dos filhos de outra mulher como você cuida, amando-os como se fossem do seu sangue. Tenho certeza de que mesmo que agora as coisas estejam nebulosas, se olhar bem, vai descobrir que têm muitas qualidades, se não fosse assim não acho que aquela garota teria se apaixonado por você.
Paramos no estacionamento de uma clínica e Clóvis desliga o carro, mas nenhum de nós sai. Estou de cabeça baixa, tentando absorver as palavras dele, mas não me sinto como alguém que as mereça. Clarice não é ingênua, mas sempre enxerga o melhor nas pessoas e não tenho certeza se toda a doçura do seu coração lhe deixava ver além, então não consigo validar seu argumento.
- Porra, Victor... - Clóvis se curva, encostando a testa nas mãos que ainda seguram o volante e seus olhos se fecham. Quando torna a abri-los, ele me encara com firmeza. - Eu deveria ter te ensinado que com dezessete anos você ia errar. Você ainda vai errar muito pelo caminho, na verdade. Mesmo se você estiver velho, com sessenta anos, ainda vai errar. Mas se conseguir reconhecer seus erros, aprender com todas as experiências que você acumular no caminho, vai saber como agir da maneira certa. Vai ser melhor amanhã do que foi ontem. Mas não pode ficar remoendo, porque eu continuar aqui pensando sobre a merda de pai que fui para você e você ficar aí se culpando, não vai nos fazer bem ou resolver algum dos nossos problemas.
Permaneço em silêncio, pensando. Ele talvez esteja certo.
- Vamos sair desse carro e procurar a ajuda que nós dois precisamos. Tudo isso vai melhorar se a gente se esforçar. Eu estou dentro e você?
Meu olhar se ergue até o seu. Clóvis parece confiante e disposto e por mais que eu esteja muito deprimido, preciso mesmo me esforçar para melhorar e reverter essa situação.
- Eu também. Vamos fazer isso.
CLARICE
- O que é isso? - Indico a faixa que eles estão pendurando na fachada da casa do seu Patrício.
Os estudantes de música e o pessoal que costuma ajudar, separando as doações, foi chamado para estar aqui também.
- Estou fazendo uma festa, porque os garotos agora são oficialmente músicos e vão poder tocar em qualquer igreja. - Seu Patrício olha para a faixa de PARABÉNS com orgulho nos olhos. Faz dois anos que ele é responsável pelo projeto e é nítido o amor pelo que faz.
- Queria que vocês todos participassem. Vamos ter hambúrguer, refrigerante e bolo.
- Parece bom! - tento me animar de verdade.
Para ser sincera, não foi fácil vir hoje, eu só queria ficar deitada, existindo. Mas eu não posso e nem quero continuar nesse estado de melancolia. Ocupar a mente e o corpo é um começo e é por isso que aceitei o convite.
- No que eu posso ajudar?
- Quer ajeitar as cadeiras no jardim?
- Claro!
Seu Patrício me leva até a garagem e vou tirando as cadeiras de plástico uma de cima da outra e ajeitando-as ao redor das mesas que já estão dispostas. O cheiro dos preparos chegam até mim e minha barriga ronca, embora meu apetite esteja péssimo e eu não esteja conseguindo comer bem há dias.
Depois de tudo pronto, ajudo as mulheres cortando o bolo em pedaços. Os garotos vão chegando e se acomodando. Todos trouxeram seus instrumentos e de lá de dentro eu escuto quando eles iniciam uma tocata.
Sem o Seu amor
Eu sou um vaso vazio
Preencha-me com Seu espírito
Me inunda com Tua luz
Aleluia entoarei
A Ti entrego minha vida
Não há nada como Sua paz
Conforta meu coração
Como confortou Davi
Aleluia entoarei
É uma das coisas mais sublimes e lindas que já ouvi. As lágrimas estão caindo pelo meu rosto e uma calma toma meu espírito aflito, como se minha alma estivesse sendo abraçada.
Vamos até o jardim e começamos a distribuir a comida entre os garotos e assim que terminamos, nos servimos também.
Dispenso o hambúrguer, mas pego um pratinho com bolo. É de chocolate com um creme branco muito gostoso. Não me sento nas cadeiras. Eu me afasto para longe e me sento solitária na calçada, embaixo de uma árvore, ao lado de fora. Há muitas folhas no chão por causa do vento e eu fico arrastando-as com os pés.
- Oi! - Um garotinho se senta ao meu lado. Eu o reconheço imediatamente.
- Oi, Nathan, com H. Quanto tempo.
- Pois é! - Ele chacoalha bem a cabeça, dando uma mordida em seu hambúrguer.
- Então quer dizer que agora você é oficialmente um músico?
- Sou, sim - ele abre um sorriso banguela.
- Meus parabéns, rapazinho.
Ele mastiga com vontade e bebe um gole do seu refrigerante.
- Eu não teria conseguido sem aquele menino lá.
Pisco.
- Aquele menino lá?
- É. - Ele balança a cabela de novo. - Aquele que tá sempre com você... O Ve... Vi...
- Victor? - completo e o menino confirma. - Porque você só consegue aprender com ele - afirmo, lembrando do que Nathan havia me dito uma vez.
- Não - ele nega fortemente. - Não é por isso, não. - O rapazinho lê o questionamento em meu olhar, porque explica: - Ele foi lá em casa depois da enchente que teve. Eu tinha perdido o meu violino, mas ele me deu um novinho em folha, muito melhor do que o que tinha antes.
- O quê? - minha voz sai rouca da minha garganta.
- Ai, droga! - Nathan fecha a mão em punho e bate na boca. - Ele me fez prometer que não ia falar nadinha pra ninguém. Não conta pra ele que você sabe, tá?
Levo a mão à garganta.
- Não... Não vou contar...
- Tá chorando, moça?
Faço que não e engulo as lágrimas.
- Não tô, não. - Me obrigo a sorrir para reforçar minhas palavras.
- Legal. - Não sei se o convenci, mas ele não insiste no assunto. - Vou entrar e pegar mais hambúrguer. Não esquece, hein? - Ele adverte, com o dedo em riste. - Não conta nada.
Faço um gesto como se estivesse fechando um zíper na boca e, satisfeito, Nathan se levanta e entra para pegar mais comida.
Inspiro e olho para o céu. Não é fácil se libertar quando você está diante de uma pessoa ruim, mas é ainda mais difícil quando se trata de alguém com um grande coração, porque temos a ideia de que essas pessoas nunca vão nos machucar, mas até elas podem magoar você de um jeito tão profundo e doloroso que vai te partir ao meio.
Todos estão sujeitos a ferir alguém.
Volto para dentro. O pessoal está ajudando a limpar o jardim e separar o lixo. Assim que terminamos, cada um vai para sua casa. Ao chegar a minha, rumo direito para o meu quarto e pego o celular que mantive guardado em uma gaveta. Eu ligo o aparelho e as mensagens voltam a apitar na tela em montess. Leio cada uma delas. Em todas, Victor diz o quanto sente muito e me pede perdão.
Ganho coragem dígito uma mensagem.
*
Detesto mentir com todas as minhas forças, mas quando avisei para mamãe que ia sair, disse para ela que ia até a casa de Bárbara. Pretendo contar a verdade para ela depois, mas agora eu não queria preocupá-la, mas eu tenho que fazer isso. Não posso deixar nossa história com reticências. É preciso um ponto final.
Estou caminhando sobre a ponte do parque e daqui já consigo ver Victor sentado no banco. Ele está com aquele olhar perdido de quem está preso nos próprios pensamentos. Meus passos vão me levando lentamente até ele, meu coração começa a bater mais forte e, como se sentisse minha presença, seus olhos se detém em mim.
Ele parece arrasado e acho que deve pensar o mesmo sobre mim. Mas, ainda assim, quando me vê, percebo que alguma coisa muda. Seus olhos parecem esperançosos.
- Eu...
Ergo a mão para que ele pare e Victor se cala.
- Nós não vamos voltar. - No mesmo instante vejo seu semblante cair. - Não quero te magoar, mas não acho que nós sejamos bons um para o outro, apesar de sermos para todos os outros.
Eu me aproximo um pouco mais e me sento na ponta oposta do banco.
- Entendo - ele diz, com os olhos baixos.
Queria tocar sua mão, mas resisto. Se eu fizer isso sei que vou querer muito mais e não acho que sou tão forte assim.
As árvores do parque balançam com o vento de fim de tarde. Uma revoada de pássaros passam sobre nós e esperamos até que não possamos mais ouvi-los.
- Eu só queria te fazer um pedido. Será que você pode fazer isso por mim?
Victor me olha, esperando.
- Faça seu pedido, Clarice.
Assinto.
- Cuida de você. - Victor parece surpreso como se esperasse qualquer coisa menos algo assim. - Cuide de si mesmo. Acredite em você. Seja o seu melhor. Porque quando você faz isso, se torna uma das pessoas mais incríveis que já conheci.
Victor ri fracamente e seus olhos azuis brilham com lágrimas.
- Só você mesmo, Clarice. - Ele solta um triste suspiro e olha para cima. - Eu vou tentar. Prometo que vou.
- Tenho fé em você.
Ele abre um sorriso para mim.
- Obrigado.
- Tenho que ir para casa - digo ao me levantar.
- Já? - a voz dele me corta, mas sei que se eu não for agora, talvez não consiga mais.
- Adeus, Victor.
Os lábios dele se comprimem, mas ele consegue responder ainda que eu mal consiga ouvi-lo.
- Adeus, Clarice.
Dou as costas para ele e dessa vez meus passos são rápidos. Não posso me virar. Não posso retroceder. Eu tenho que seguir em frente e cuidar de mim também.
Sinto muito, mas não posso te salvar, menino bonito. Só você pode.
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