31 | Quase Doce




Hi, pessoal. Queria alertar que vou repetir uma descrição que fiz da Babi em um dos capítulos anteriores. Eu meio que deletei de lá e achei que se encaixava melhor aqui. Coisas que acontecem quando um autor desajuizado posta enquanto ainda está escrevendo kkkk


CLARICE

Quando acordei hoje, achei que o dia de ontem não tivesse passado de um pesadelo. Mas, ao me levantar, a dor aguda ao lado da minha costela me mostrou que tudo que tinha acontecido era muito real.

Levanto a camiseta em frente ao espelho e sinto vontade de chorar quando vejo o hematoma. Eu ainda estou com tanta raiva. Estou com raiva por ele ter feito uma surpresa e não ter avisado que iria. Estou com raiva de mim por não ter sido mais honesta com Victor e ter contado que com certeza Samuel estaria lá, porque talvez se ele estivesse preparado para vê-lo, eu pudesse ter evitado aquela briga. Acima de tudo, estou com raiva de mim por pensar que a culpa é minha, quando nada justifica seu comportamento. Eu nunca fiz nada além de amá-lo e de me esforçar para que ele soubesse disso.

Cheguei a me perguntar onde aquilo o levaria. Sei que essa marca que ele deixou em mim não foi de propósito. Mas e se um dia fosse? Eu me sentia triste por pensamentos como esses rondarem minha cabeça, porque eu nem sequer acreditava que um dia ele seria capaz de fazer algo assim. Só que não importa se jamais ele levantaria a mão para mim, porque não é apenas isso que faz uma relação extrapolar seus limites.

Queria mandar uma mensagem para Genevieve para saber o estado do Samuel, mas estou sem meu celular. Na pressa de sair do Centro, deixei minha bolsa lá. Se não fosse Deus ter colocado Gustavo no meu caminho para me dar uma carona, eu teria de ter voltado para casa a pé e fazer uma longa caminhada à noite, sentindo meu coração pesar em meu peito não era uma perspectiva animadora.

Não posso ficar o dia todo no quarto, então me arrasto até a sala e me deito no sofá. Ligo a televisão e coloco na Netflix. Não quero pensar em ontem ou no Victor porque é recente demais e dói muito. Só quero fazer isso parar. Passo pelo catálogo. Todas as novelas infantis estão em alta e eu me pergunto se sou muito velha para assistir uma delas. Talvez uma novela engraçadinha, inocente e fofa seja tudo de que preciso e dou uma chance para Carinha de Anjo.

Logo no primeiro capítulo Dulce Maria, a protagonista de cinco anos, sofre bullying. As colegas não acreditam que a garotinha tem um pai, porque ele a abandonou em um colégio de freiras e passou dois anos sem ir visitá-la por não saber lidar com a morte da esposa. Por algum motivo, isso me faz lembrar a relação de Victor com o pai. Clóvis não saiu do país para ir viajar, mas era quase como se não estivesse lá.

Eu meio que já odeio o pai da Dulce Maria.

E meio que odeio essa novela por ter me feito lembrar do Victor.

Só queria algo para aquecer meu coração e me fazer sorrir, mas meus olhos estão inundados de lágrimas e estou soluçando que nem uma boba.

- Clarice, o que aconteceu? - pergunta minha mãe ao entrar pela porta da sala e ver eu me afogando em lágrimas.

- Mãe - acho que sai mais como "bâe" -, essa novela é horrível! Como podem passar isso para as crianças?

Seus olhos se voltam para a tevê no momento em que todas as crianças e freiras dançam alegres em um clipe musical animado e depois para mim. Ela segue até o sofá em que estou e faz um gesto para que eu lhe dê espaço. Recolho meus pés e pernas, dobrando-as e ela se senta.

- Dá uma pausa.

O tom de voz dela me deixa apreensiva e eu obedeço. Não tinha notado antes, mas ela está segurando minha bolsa, a que deixei no Centro Para Surdos.

- A Genevieve pediu demissão e me pediu para te entregar suas coisas. - Ela estende a bolsa para mim. - Como foi que você voltou para casa ontem? Por que suas coisas estavam com ela? Por que ela se demitiu?

São tantas perguntas que eu mal consigo respirar. A primeira que me abala é sobre Genevieve. Ela deve estar me odiando para ter escolhido se demitir e eu nem posso culpá-la.

- Estou esperando, Clarice - exije minha mãe.

Pestanejo.

- Gustavo me deu carona. Eu e o Victor terminamos.

- Por quê?

Respiro fundo. De qualquer maneira, esse momento ia chegar. Não entro muito em detalhes, mas conto para ela sobre a briga com Samuel, como Victor sempre foi ciumento com relação a várias coisas, mas muito mais a respeito dele.

- Ah, querida! -Ela me puxa para um abraço e eu grito.

Os olhos dela se estreitam.

- O que foi?

- Mãe - eu começo, cautelosa -, foi quando tentei separar a briga. O Victor me acertou, mas não teve intenção.

Seu rosto inteiro se contrai com a raiva.

- Que garoto instável! Meu Deus! Ele não tem nenhum controle!

Não gosto de ouvi-la falar assim dele. O lado meu que conhece as partes boas e doces não suporta essas verdades.

- Não quero mais falar sobre isso, por favor.

- Tá certo, tudo bem. - Ela se acalma e se aproxima, me abraçando delicadamente e acariciando meu cabelo.

Seu abraço me faz perceber o quanto eu precisava daquilo, me abrir para ela.

- Por que amar tem que ser tão difícil?

- Amar não tem que ser tão difícil, Clarice. - Mamãe segura meu rosto para que eu olhe para ela. - O amor tem suas dificuldades, mas amar não deveria ser difícil quando você está fazendo do jeito certo. - Ela beija minha testa. - Sei que está sofrendo, mas acredite quando eu te digo que isso tudo vai passar.

- Eu sei - concordo, deixando mais lágrimas caírem.

- Minha bebê, se eu pudesse te proteger de encontrar garotos errados pelo caminho. - Ela suspira. - Mas tudo que posso fazer é te dizer para tomar cuidado e que não deve mais me esconder nada. Sou sua mãe e sempre vou apoiá-la, mas também te dar uma surra de conselhos quando achar que precisa.

- Obrigada, mãe. - Eu a abraço um pouco mais forte.

Ela suspira.

- Vou fazer algo bem gostoso para você. Volta a ver Netflix, mas tira dessa novela, pelo amor de Deus. Vai ver uma coisa que te deixe mais feliz.

- Você acredita que o pai da menina ainda teve a audácia de voltar com uma namorada depois de ficar tanto tempo longe? Que espécie de luto é esse?! - digo, revoltada.

- Vai ver outra coisa. É sério.

Minha mãe se afasta até a cozinha e espero ela sumir de vista para tirar o celular da bolsa. Está no limite de carga, mas ainda com vida. Há uma infinidade de notificações de chamadas perdidas e mensagens do Victor. Meus dedos coçam para apertar o botão de desbloqueio e ler cada uma delas. Mas não quero e nem posso lidar com isso agora, então desligo o celular e volto a esticar as pernas sobre o sofá, tentando achar algo que me faça esquecer que meu coração está mais do que partido, esperando ter muito mais sorte do que tive até o momento em encontrar algo para me distrair.

*

Eu ainda não tinha ligado o celular. Não sabia o que fazer e nem se teria forças para resistir à insistência de Victor. Eu tinha certeza que ele estava arrependido do que tinha feito. Eu vi nos olhos dele. Vi até que ele acreditava em si mesmo quando me jurou que mudaria. Mas ele já tinha feito tantas promessas mais simples e quebrado, como poderia manter uma tão grande como aquela?

Ainda assim, eu queria ouvir a voz dele, queria abraçá-lo e beijá-lo, tocar seu cabelo loiro e me perder no azul dos seus olhos. Um conflito interno entre querer perdoá-lo e saber que se eu fizer isso esse ciclo nunca mais vai parar e seremos como hamsters, presos numa gaiola, girando na roda de um relacionamento ruim, indo para lugar nenhum.

Tento tirar sua imagem da minha cabeça. Depois eu resolvo minhas coisas com ele. Não decidi como farei isso, mas agora estou aqui em frente a casa de Genevieve e é com ela que quero me entender primeiro.

Toco a campainha e ela mesma é quem atende o portão.

- Sinto muito, muito, muito... - sinalizo.

Aperto os lábios com muita força, mas é quase inevitável me conter quando ela me abraça. É um gesto que eu não estava esperando.

- Entra - ela convida e abre mais o portão para eu passar.

Eu a sigo para dentro. Ela me explica que está sozinha em casa, pois seu pai é gerente de uma loja de perfumes no shopping e sua mamãe trabalha como cozinheira em um restaurante e ambos estão fora hoje.

Nos sentamos no sofá da sala. O lugar é aconchegante e tem uma tevê enorme na parede e um PlayStation na estante. Genevieve pega uma das almofadas e a coloca no colo.

- Estou tão envergonhada pelo que aconteceu e eu entendo que você tenha se demitido porque não quer mais me ver - digo a ela.

- Mas você não tem que ficar com vergonha - Genevieve estende a mão até a minha. - É ele quem tem que ficar. Você não fez nada de errado, Cachos. E não foi por isso que saí.

- Não?

Ela balança a cabeça.

- Eu achei que você ia preferir que eu não estivesse lá para te causar mais problemas com seu namorado.

- Ele não é mais meu namorado. - Ela não parece surpresa. Na verdade, parece muito orgulhosa de mim como se eu fosse uma heroína e isso me emociona e faz minha voz sair rouca. - Eu não poderia. Acho que na balanço, mesmo que tenham sido em menor número, me magoar com seus defeitos teve muito mais peso e me trouxe muito mais consequências.

Genevieve entende o que quero dizer.

- Sinto muito por isso.

Aperto a mão dela.

- Eu gostaria que voltasse para a loja se você estiver bem com isso. Minha mãe nunca teve uma funcionária tão maravilhosa e ela gosta muito de você. Nós duas gostamos.

- Eu sinto o mesmo e amaria voltar para a loja. Trabalhar lá é muito gostoso.

Fico feliz e aliviada por ela aceitar.

- E como... Como está o Samuel?

- Bem. - Ela joga a almofada para o lado, se levanta e faz um gesto para que eu a siga até a cozinha. - Ele fraturou o pulso e levou alguns pontos, mas está bem.

Paramos quando ela me indica uma cadeira para sentar.

- E a sua máquina? Ela quebrou mesmo?

- Sim. - Minha agonia pelo que aconteceu ainda é tão evidente que Genevieve sorri e tenta me tranquilizar. - Não vai ficar caro mandar consertá-la.

Não sei se ela está dizendo a verdade, mas acredito que não, porque duvido que daquele dia para hoje ela tenha tido tempo ou cabeça para conferir isso.

- Eu te ajudo a comprar uma máquina nova - digo me erguendo e me aproximando da pia para que ela possa ler bem meus lábios.

Genevieve faz que não e pega uma tábua e uma faca.

- Não precisa e não toque mais no assunto.

Não insisto mais, mas vou dar um jeito para que ela consiga sua polaroid.

- Quer ajuda? - ofereço ao vê-la descascar uma cebola.

- Sabe fazer arroz? O meu sempre sai "unidos venceremos".

Dou risada e vou até prateleira em que vejo um pote escrito "arroz". Coloco água para ferver antes de cozinhá-lo e vou ajudando Genevieve com uma coisa aqui e ali. Paro no meio de um preparo quando ouço passos se aproximando e imagino que seja o pai ou a mão de Genevieve que já tenha chegado, mas quando surge na cozinha, quem eu vejo é Samuel.

O garoto está com um sorriso enorme até me ver. Dá para perceber que levou um susto com minha presença aqui, porque fica rígido. Genevieve ergue a cabeça e sinaliza para ele, que sinaliza de volta e a conversa é tão rápida e agitada que mesmo sabendo muita coisa, eu nem consigo acompanhar tudo direito. Mas não é só pela rapidez dos gestos. Estou distraída, porque mal consigo tirar os olhos do seu olho roxo, os machucados nos lábios, os pontos na testa e o pulso enfaixado.

No que parece o fim daquela discussão gestual, ele dá de ombros e sai da cozinha.

- Desliga o arroz quando a água tiver secado - peço para Genevieve.

- Você vai falar com ele?

- Tenho que tentar.

Vou atrás de Samuel, torcendo para que ele esteja na sala. Fico aliviada ao encontrá-lo sentado no sofá. Chego mais perto e percebo que ele tem os olhos grudados na tela da enorme tevê. A imagem de um garoto em 3D correndo sobre um campo de milho e coletando objetos de onde saem alguns números é o que vejo e me dou conta de que se trata de um jogo. Olho para o controle sobre seu colo, de novo para o seu pulso enfaixado e eu aperto os lábios tentando não reviver aquela briga, apesar do lembrete de que minha relação tóxica com Victor tenha causado problemas não só para nós, mas respingado em todos ao nosso redor.

Fico ali parada, esperando que Samuel me dê algum sinal para que eu me sinta segura em me aproximar dele, mas ele não faz nada além de estalar a língua, nervoso. Suas sobrancelhas estão unidas e ele solta o ar, irritado. Olho para a tevê de novo e descubro que sua pontuação está baixando.

Decido chegar mais perto mesmo sem sua permissão e me sento na outra ponta do sofá.

- Posso falar com você?

Ele dá de ombros. Seu desprezo faz um bolo se formar na minha garganta.

- Sinto muito pelo que Victor fez e entendo que você esteja com raiva. Eu também estou porque não devia ter permitido que as coisas chegassem a esse ponto. Espero que um dia nós possamos ser amigos de novo.

O silêncio dele pesa. Eu me levanto a fim de ir à cozinha e me despedir de Genevieve, porque não quero causar mais desconforto do que já causei, mas no meio do caminho, sinto sua mão rodear o meu pulso e Samuel me vira para ele.

- Eu não estou com raiva de você. Só que nem consigo te olhar direito. - Ele lê o questionando em meu rosto e parece ainda mais envergonhado por eu não entender seus motivos. - Eu deixei o Victor me irritar e falei coisas que não devia ter dito para uma garota, principalmente uma garota como você. Eu é que sinto muito por aquilo. - Pela primeira vez vejo as bochechas de Samuel ficarem vermelhas. - O Victor foi babaca e você não precisava lidar com mais um. Você pode me perdoar?

Não consigo falar então faço que sim. Seus braços me rodeiam e eu pulo para trás.

- Ah, foi mal.

Ele pensa que me afastei porque não quero seu abraço, mas não é isso e eu ergo a minha camiseta, mostrando o hematoma para ele.

- Isso foi daquele dia? - A expressão dele é de pura tortura quando eu confirmo. - Você não merecia isso.

Ele me vira para o lado esquerdo para não me machucar e puxa meus ombros, apertando-me com muita doçura.

- Só carinho. É isso o que você merece, minha amiga.

Fecho os olhos e toco seu braço, deixando que ele me conforte, porque parece muito certo estar nesse abraço.

- Sinto que vou me desintegrar. - Um suspiro escapa do fundo da minha alma.

- Você é forte, Lilica, e vai se recuperar.

- Eu sei... É bobagem... vai passar, eu sou jovem, vou amar de novo... Mas agora dói muito. Eu detesto isso, porque parece tão mais dramático do que talvez seja. Hormônios da adolescência, né?

- Não é bobagem. São seus sentimentos e você deve viver esse momento. Viva a sua adolescência porque a vida adulta está batendo à porta e talvez você tenha que fingir, porque é o que eles fazem, Clarice. Guardam tudo para si para que os outros pensem no quanto são fortes e maduros e, depois de um tempo, eles nem sabem mais como conviver com eles mesmo.

- Que profundo.

- Mas eu sou profundo!

Sinto sua risada reverberar pelo meu corpo e me afasto por alguns segundos apenas para fitar seu sorriso carinhoso e volto a me aconchegar em seus braços.

É tão gostoso estarmos bem, faz com que tudo pareça menos nebuloso.

- Venham comer - chama Genevieve.

Pegando meu braço, ela olha para Samuel e dá uma risadinha.

- Vamos ver se a Clarice sabe mesmo fazer um bom arroz.

*

Quando volto para casa, vou direto para o meu quarto e me sento à escrivaninha. Sobre ela está a aliança que Victor me deu e tirei assim que cheguei naquela noite e também meu exemplar de Pollyanna. Eu pego o livro nas mãos e penso sobre como eu costumava jogar o jogo do contente e como isso desapareceu dos meus dias. Nem acho que consiga fazer isso de novo, mas trabalhar ver o lado positivo das coisas talvez seja como exercitar um músculo. No início, exige muito esforço, mas com o tempo você vai se acostumando e se torna muito natural. Talvez eu devesse tentar de agora.

Saber que Samuel e Genevieve continuam meus amigos. Acho que é o suficiente para começar.

- Lilica - a voz baixinha de Bárbara ressoa pelo quarto.

Eu me viro na cadeira e ela está segurando a maçaneta com a porta entreaberta. Seu olhar é cauteloso, enquanto espera que eu diga alguma coisa. Meus olhos focam no seu novo visual. Noto que ela pintou as pontas dos cabelos de novo e agora estão num degrade loiro dando a impressão de um fogo intenso que começa em cima e vai ficando mas fraco conforme desce.

- Gostei - digo apontando para seu cabelo.

- Obrigada. - Ela olha ao redor do cômodo e entra, fechando a porta atrás de si. - Você está bem? Soube que você e o Victor terminaram.

Sua preocupação parece genuína, mas ainda sinto o amargor das suas últimas palavras e de como ela se afastou de mim.

- Você veio jogar na minha cara que tinha razão?

- Ai. - Ela leva a mão ao coração e sua expressão se retorce. - Ok, eu mereço. Eu não fui legal com você - ela diz, caminhando até minha cama e se sentando na beirada. - Mas não vim jogar nada na sua cara e eu não acho que estava certa. Você é a pessoa mais inteligente que eu já conheci e eu tentei te atingir daquele jeito porque estava me senindo em segundo plano na sua vida. Estava magoada e fui particularmente hostil com você e toda a situação.

- Não fui a melhor das amigas - reconheço, porque sei que tenho minha parcela de culpa por Babi se sentir assim -, mas as coisas que você me disse...

- Entendo. - Bárbara parece prestes a chorar. - Não quero te pressionar. Melhor deixar você sozinha para pensar.

- Não. - Vou até a cama antes que ela se levante e me sento ao lado dela. - Não quero que vá embora, mas quero saber como você tem passado. Me fale sobre você. Vamos começar os reparos da nossa amizade agora, assim tudo vai voltar ao normal muito mais rápido.

Ela abre um sorriso para mim e dá para ver o brilho de esperança em seu olhar.

- Deixa eu ver por onde eu começo...

- Que tal você me contar sobre como ficou tão amiga do Téo.

Ela joga as costas contra o colchão e cruza as mãos acima da barriga.

- Sabe aquela minha tia que morou com a gente por um tempo e depois se casou e foi para São Paulo?

- Lembro sim - eu deito de lado, com a cabeça apoiada na mão. - Você dizia que era sua tia favorita e que vocês tinham muito em comum.

- Sim - ela parece se recordar com alegria, mas logo seu olhar se transforma. - Ela teve um aborto espontâneo, se divorciou e perdeu o emprego tudo no mesmo ano. Ela não soube muito bem como seguir em frente e começou a usar... - Bárbara não diz a palavra, mas eu entendo sobre o que ela está falando. - Pois é. Meus pais a trouxeram para cá para que ela se tratasse.

- Não acredito que você estava passando por tudo isso e eu nem percebi...

- Para! - ela exige, erguendo uma mão para mim e me olhando com seriedade. - A não ser que você tenha o poder da adivinhação não tinha como saber. Ninguém vai se sentir culpado por nada hoje. Além do mais, está tudo bem agora. Minha tia está muito melhor e voltou para casa ontem. Passe para a próxima.

Sorrio com o quanto Bárbara facilmente consegue descomplicar tudo que parece complicado.

- Foi na clínica que você se aproximou do Téo?

Bárbara confirma.

- Ele parece um bobão. - Ela sorri e seus olhos brilham para o teto como se na verdade ela estivesse olhando para o rosto dele. - Na verdade, ele é mesmo. Mas é um bobão com um coração de ouro.

Então eu me dou conta de que não é apenas amizade. Existe realmente alguma coisa a mais no coração de Babi.

- Você tá apaixonada pelo Téo.

O sorriso de Babi se desfaz e de repente sinto que há um peso enorme sobre seus ombros.

- Eu tô com o Gustavo e ele tem me ajudado muito durante essa fase difícil na nossa família.

- Eu sei, Babi, só que tá na sua cara que você sente algo pelo Téo.

Bárbara balança a cabeça.

- E se isso for só fogo de palha? - Ela se volta para mim com uma expressão dolorida. - Eu vou jogar fora anos do que eu e Gustavo construímos por algo que pode ser apenas passageiro?

Olho fundo em seus olhos. Sei que o que vou dizer vai doer, mas eu prefiro ser sincera como sempre fomos uma com a outra.

- Mesmo que seja só fogo de palha, se você tem dúvidas, se outra pessoa mexe tanto assim com você que te deixa confusa, então significa que o que você sente pelo Gustavo não é esse tipo de amor. Como você disse, vocês estão há muito tempo juntos e isso tem uma carga enorme. Mas você não tem a obrigação de se casar com ele. Você não deve nada a ele e a ninguém a não ser a você mesma. Não vale a pena você descobrir isso tarde demais.

Minha amiga solta um longo e pesado suspiro e volta a olhar para o teto em silêncio.

- Você tá certa - ela diz e sorri. - Mas chega de falar dos meus problemas. - Ela se senta sobre as pernas, fazendo o colchão se agitar. - Isso é história para outro momento. Você ainda não me disse como você está - ela enfatiza. - Gustavo achou você muito quieto lá no carro e sua mãe me contou o que rolou. Vocês dois já conversaram depois de tudo?

- Não tive coragem de ligar o celular ainda - confesso. - Eu não quero ver ele de novo. Tenho medo de ele me convencer como sempre faz.

Bárbara assente, compreendendo.

- É imaturo...

- Não é imaturo - ela rebate. - Você não precisa fazer isso, Clarice. Só você sabe qual é a melhor maneira de resolver as coisas e se é cortando o garoto da sua vida de uma vez, então se mantenha afastada.

- Ao mesmo tempo - digo, a voz soando mais baixa -. há tanto que eu queria dizer a ele e me sinto como se fosse sufocar com todas essas palavras entaladas.

- Tudo bem. Vamos fazer isso. - Ela me puxa para que eu fique sentada e pega meus ombros. - Finja que eu sou o Victor e diga tudo.

- Quê? - Balanço a cabeça. - Não, eu não vou conseguir assim.

- Tenta. - Ela adota uma postura masculina e relaxa os ombros, erguendo o queixo. - Diz aí, gostosa.

Minhas sobrancelhas se unem.

- O Victor não fala assim comigo.

- Ok. - Ela suaviza a expressão e olha para mim como um cachorrinho abandonado, colocando uma mão no coração. - Eu vou ouvir qualquer coisa que você queira me dizer, linda, porque você é tudo que eu tenho de bom nessa minha vida de merda e terá sempre minha atenção, então, apenas fale comigo.

- Uau - dizemos juntas.

Tenho certeza de que meu queixo caiu.

- Isso foi assustador.

- Foi mesmo - concordo com ela.

- Uii - Ela chacoalha o corpo. - Mas tente, Lilica, vai ver o quão libertador é.

Não vai dar certo se eu estiver olhando para ela, então eu peço para que ela me deixe fazer isso de olhos fechados e tento apesar de me sentir meio ridícula fazendo isso.

- Victor Walter Villela - começo, ganhando coragem -, por que todas as vezes que se sentiu inseguro você só não foi honesto comigo? Por que tinha sempre que me machucar com suas atitudes? Por que naquela noite, na apresentação, você só não se uniu a nós e compartilhou da nossa alegria? Eu estava tão feliz. Queria ter aberto o maior sorriso do mundo ao te ver e ter corrido para os seus braços quando você me supreendeu. Nós teríamos ido comemorar no Burgers e riríamos até nossas barrigas doerem. Mais do que tudo, Victor, por que você nunca acreditou em nós dois como eu sempre acreditei? Você nos levou a esse momento e mesmo achando que fiz a coisa certa, eu me sinto mal em pensar no quanto você também deve estar sofrendo e que eu posso ter estragado tudo que você construiu esse tempo.

Pauso um segundo para ganhar fôlego.

- Isso não é um filme da Julia Stiles, mas eu odeio tantas coisas sobre você agora. Odeio o que você fez e ainda faz com o meu coração. Odeio acordar e sentir seu perfume como se você estivesse ao meu lado. Odeio que você tenha me tirado a alegria de saber que poderia abraçá-lo amanhã e sentir os lábios de novo nos meus. Odeio não poder mais sonhar com você no meu futuro. Odeio pensar que para eu me libertar nunca mais vou poder te ver, porque eu ainda te amo demais, mas não posso ceder...

- Lilica - sinto a manga da jaqueta de Bárbara deslizar pela minha bochecha.

- Desculpa. - Abro os olhos e meus lábios se erguem trêmulos. - Queria ter sido uma boa namorada e uma boa amiga.

- Para com isso! Você não tem que me pedir desculpa por nada. Vamos combinar uma coisa?

- O quê?

- Nunca mais vamos brigar tão feio assim. Quando uma estiver sendo ou tendo atitudes que magoam a outra vai ser sincera.

- Tá - concordo, enxugando o nariz com o dorso da mão.

- E vamos sair mais.

- Sem a Luana, né? - fungo.

- Por que eu levaria a Luana? - Bárbara ergue a sobrancelha.

- Vocês não são amigas?

- Deus não protege só você! - brinca, estreitando os olhos. - É sério! Ela fica na minha cola nem sei por que. Tudo bem que eu até tentei aquela coisa toda de ser legal com ela pela irmandade entre garotas, mas ela é mais falsa que nota de dois reais. Não dá para ser amiga dessa garota.

Consigo rir em meio às lágrimas.

- Sendo assim, eu topo.

Bárbara salta da cama e fica de pé.

- Perfeito! E agora, vamos esquecer tudo de ruim por hoje. - Ela pega seu celular e coloca uma música bem agitada, depois puxa meu braço. - Vamos comemorar nossa amizade dançando que nem duas malucas!

- Não... - eu gemo.

- Sim!

Bárbara me faz girar de um lado para outro e mal percebo quando meu corpo passa a balançar. Minha amiga começa a cantar com sua voz desafinada e eu me esforço para acompanhá-la. Não digo que estou feliz, mas já me sinto um pouco melhor e tenho certeza de que eu e ela vamos superar tudo isso e reviver o que tínhamos.

Algumas coisas ainda continuam vivas.

Ja é quase de noite quando Bárbara vai embora. Fizemos um pouco de bagunça quando tiramos algumas peças do meu guarda-roupa, nos montando como se fôssemos duas pop-stars e eu pego alguns cachecóis e lenços que deixamos jogados pelo chão. Apesar de Bárbara ter insistido em não sair sem me ajudar, eu disse que ela não precisava se preocupar. Seria bom me ocupar.

- Um furacão passou por aqui - diz minha mãe entrando. - E outra coisa também passou por aqui.

- O quê? - pergunto enfiando meus lenços na gaveta.

Minha mãe anda até mim e coloca um papel na palma da minha mão.

- O Victor.

Ele esteve aqui? Fico agitada com o pensamento.

- Jo-jogue fora.

Desvencilhando-me dela, caminho até a cômoda e começo a ajeitar os perfumes e enfeites apesar de estarem todos em ordem.

- Eu pensei em não te entregar - confessa minha mãe se aproximando de mim. - Não estou nada contente com o Victor, mas não seria certo. É você que tem que decidir o que quer fazer com essa carta. - Observo-a colocar o papel sobre a cômoda. O olhar dela quando eu a encaro me diz que eu vou saber o que fazer e sou deixada sozinha de novo.

Só estou agindo com impulso quando pego aquela carta e a rasgo n0 meio. É só papel, não é nada fisicamente ligado a mim, mas sinto como se eu estivesse rasgando meu próprio coração e paro.

Não consigo continuar. Sei que vou me arrepender e ficar pensando sobre o que eu fiz, mas também não posso lê-la agora. Ainda estou suscetível demais.

O que fazer com ela é algo que devo decidir no futuro quando eu conseguir olhar para trás sem estar sobrecarregada de todos esses sentimentos.

Vou até a estante, pego um livro aleatório e, sem nem olhar o título, eu o coloco ali. Por enquanto, é assim que vou lidar com isso.

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Me digam o que vocês estão achando. Acham que a Clarice tá sendo muito dramática? Que ela exagerou? Fariam algo diferente no lugar dela com relação ao término?

Hey, agora só temos mais dois capítulos e finalmente QD vai chegar ao fim, depois de quatro anos kkkkk Amém, irmãos!

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