3 | Quase Doce

- O que houve com seu cabelo? - questiono quando Bárbara para ao meu lado, no armário.

- O azul estava manchando o meu travesseiro - ela justifica dando de ombros.

Fico parada por alguns segundos, avaliando-a. As pontas de seus cabelos antes azuis, agora estão pretas fazendo contraste com seus ruivos naturais. O resultado a deixou com um aspecto mais punk, mas minha amiga continua linda.

Enquanto me espera pegar os materiais da aula de química, Bárbara se recosta no armário com um pé cruzado sobre o outro, na sua típica pose de "dane-se o mundo" e enrola o chiclete no dedo indicador. Ela sabe o quanto eu acho aquilo nojento - e provavelmente boa parte das pessoas - e é por isso que o faz.

Termino de pegar os livros e fecho o armário. Caminhamos juntas pelos corredores cheios de alunos até a sala de aula antes que o sinal toque e isso vire um caos ainda maior. Enquanto andamos, alguém esbarra com força em meu ombro e acabo deixando os livros caírem.

- Por acaso você é algum cego, seu babaca idiota! - Bárbara grita.

O garoto não é nada menos que Téo. Forte, a pele escura e o sorriso conquistador, ele é conhecido carinhosamente no colégio como KitKat por ser - palavras das garotas, não minhas - um tremendo gostoso. Ele olha para trás e, quando vê que sua vítima sou eu, murmura com um sorrisinho de canto:

- Desculpe, garota do Victor. - E pisca para mim.

- Garota do Victor? - repete Bárbara como se ele tivesse dito algum xingamento imperdoável.

Não respondo nada. Simplesmente me abaixo para pegar meus materiais, tentando entender por que motivo Téo me chamou assim.

Eu e Victor estamos há duas semanas tendo aulas em minha casa. Combinamos terças, quartas e sextas e hoje, por acaso, é uma sexta e já nos programamos para realizar a tarefa de casa, que será a análise do soneto 18 de Shakespeare. Victor tem mostrado um progresso gradual e acredito que no ritmo em que está, embora ele não venha a ser um gênio da literatura, se dará muito bem nas provas. Ao menos, ele vai ser capaz de tirar uma nota que não faça com que ele fique reprovado e que o mantenha na equipe de natação.

Entramos na sala. Me sento e Bárbara se senta ao meu lado. Ela ainda está bufando pela forma como Téo se referiu a mim, mas eu procuro dizer a mim mesma que ele só me chamou daquele jeito porque não sabe meu nome ou apenas porque queria me provocar. Em todos esses dias, Victor não mostrou interesse senão por letras e não serei uma daquelas garotas bobas que veem sinais onde eles não existem.

- Ei, Lilica - Bárbara me chama. Balanço a cabeça e me volto para ela, que está me olhando fixamente. Detesto quando ela faz isso, porque me sinto como um livro aberto numa página muito, muito constrangedora. - Acho que você gostou de ser chamada de "a garota do Victor" pelo visto.

- Eu não vou me descabelar por isso, Babi - digo a ela e me inclino para tirar o caderno da bolsa, que está no chão.

- Ok. - Para meu alívio, minha amiga abre um sorrisinho e a conversa toma outro rumo. - Adivinha só quem será o novo fotógrafo de eventos do jornal da cidade?

- Não acredito! - praticamente berro, colocando meu caderno sobre a mesa.

Bárbara faz que sim com a cabeça e eu bato palminhas, completamente animada. Gustavo ama fotografar e essa é uma boa oportunidade para que ele consiga emprego num jornal maior.

- Estou muito feliz por ele.

- Sabia que ficaria - Bárbara diz. - Seu primeiro evento será na semana que vem, nas eliminatórias para o campeonato de natação.

- Eu não sabia que as eliminatórias começariam agora...

O sinal toca e a sala vai se enchendo de alunos. Então, ele entra e eu ajeito a postura como se a simples presença dele me abalasse. E me abala. Muito mais do que antes, como se isso fosse possível. Bárbara, claro, não deixa de notar, mas não comenta nada, o que eu considero um milagre.

Victor não olha para mim. Ele segue para o seu lugar, perto da janela, e se senta. Já Téo me encara assim que entra, mas apenas sorri.

- O nome dela é Clarice, babaca! - Bárbara diz em alto e bom som, chamando a atenção de todos que se voltam para ela, incluindo Victor.

Cutuco minha amiga com o cotovelo e tenho certeza de que estou da cor de um tomate. Mas ninguém tem muito tempo para tentar entender a situação, pois, no mesmo instante, o professor entra na sala e anuncia que preparou um belo de um teste surpresa.


O tempo não é meu amigo. Tento me lembrar disso a cada braçada que dou na água, enquanto me esforço para atravessar a piscina mais rápido que antes. Hoje estou treinando o nado mariposa. Eu não quero me gabar, mas estaria mentindo se não dissesse que sou bom nisso. Não é a toa que fui escolhido para ser o capitão da equipe. Ainda assim, o treinador Sérgio faz questão de deixar bastante claro que devo continuar treinando como se fosse uma criança tentando impressionar o pai. As metáforas dele são uma droga, mas ele está certo. Algumas pessoas ficam boas demais em alguma coisa e simplesmente param de dar o seu melhor achando que vão estar sempre por cima, mas, quando se dão conta, elas acabam sendo engolidas por seus próprios egos e estão soterradas.

Eu não serei essa pessoa.

Ouço o apito do treinador, mas não paro até completar as duas voltas em cada ponta da piscina. Quando enfim saio da água, tiro meus óculos e vejo o treinador olhando para mim com um pequeno sorriso de aprovação.

- Filho. - Ele me estende a toalha.

Eu pego o pano de suas mãos, enxugo meu rosto e meus braços enquanto gotas d'água passeiam pelo resto do meu corpo até o chão. Estamos apenas eu e Sérgio aqui, pois os outros já foram embora. O treinador se acostumou com essa rotina e eu também. Sempre somos os últimos a sair.

- Filho, estou orgulhoso de como vem treinando - ele diz num daqueles raros momentos em que decide nos presentear com seus elogios. - Acredito que teremos outro ano brilhante para a equipe se você continuar assim.

Aperto os lábios. Suas palavras me deixam animado, mas também são uma puta pressão. Os outros caras são muito bons, mas sei que todos contam comigo para levar essa escola novamente à vitória e essa é uma responsabilidade grande.

- Eu farei de tudo para continuar orgulhando o senhor e ao resto da equipe - garanto a ele.

Ele parece contente em ouvir isso.

- Certo. Bom, vá pra casa descansar, garoto.

Eu assinto, porém ir para minha casa está fora de questão. Depois que eu sair daqui vou para a casa da Clarice. Combinamos que faríamos a tarefa de literatura juntos. Segundo ela, estou melhorando bastante e quero continuar nesse passo. Agora, ainda mais do que antes.

*

Shakespeare era um inglês filho da mãe. Ele vinha de uma família rica, mas ficou pobre aos quinze anos e, até onde sei, não completou os estudos. Só que ele tinha uma mente brilhante e conseguiu escrever peças de sucesso e grandes poemas. Eu mal consigo escrever a droga de uma lista de mercado e preciso entrar na mente desse cara para entender o que ele está querendo dizer.

Estou aqui, tentando responder as perguntas do questionário, enquanto Clarice já conseguiu terminar o seu. Essa garota é inteligente demais. E eu preciso dar o meu melhor para que ela saiba que não está apenas perdendo tempo comigo.

Permaneço concentrado por alguns minutos, pensando sobre verão, calor, brilho, sol até que sinto algo tocar minha pele. O choque faz com que eu trema os ombros e me volte um tanto confuso para Clarice que, imediatamente, recolhe sua mão.

- Desculpa, eu não resisti - Clarice diz, parecendo bastante sem graça.

Franzo a minha testa, porque não sei ao que ela está se referindo exatamente. Ela percebe, então toca na ponta direita de sua sobrancelha, fazendo menção a minha cicatriz, que começa acima dela numa linha que desce até um pouco abaixo da lateral do meu olho.

Não tenho problemas com minha marca de modo que estendo minha mão para pegar a sua e faço com que ela a sinta. Timidamente, Clarice contorna, com o indicador, aquela linha irregular. Como eu imaginei, seu toque é delicado e macio, o que me faz imaginar em quantos lugares mais ela tem essa textura, mas me controlo para não encarar sua boca. Não vou dar bandeira para que ela pense que estou querendo algo com ela. Essas duas semanas lutei comigo, me convencendo de que eu só quero dela seus serviços de professora, quando, cada vez que sinto seu cheiro suave e observo seus lábios se moverem, tudo que desejo é tocá-los com os meus como se me pertencessem.

Pisco, e foco nos olhos de Clarice. Ela olha para minha cicatriz com certa fascinação. Não sei por que, mas as garotas parecem amar isso nos caras como se cicatrizes os deixassem mais atraentes.

- O que aconteceu? - Clarice pergunta e volta a recolher a mão, fazendo com que eu sinta falta do calor de seus dedos. - O que você aprontou, Villela?

Clarice sorri como se eu fosse uma criança travessa. Mordo o lábio, lamentando porque irei tirar aquele sorriso de seu rosto. Sei que quando eu contar a ela como consegui essa marca, o clima leve que nos envolve vai ficar carregado.

- Foi no acidente - conto a ela. - Eu tava no carro com minha mãe quando um caminhão bateu na gente. Ela morreu imediatamente, mas eu tava no banco de trás e sobrevivi. Alguns estilhaços de vidro voaram pelo carro, eu me machuquei assim provavelmente. Não sei ao certo.

- Que terrível, Victor, sinto muito. - A expressão que vejo no rosto de Clarice não é de pena, o que me conforta. Ela me encara com um misto de sentimentos, mas não esse. Percebo que se sente triste pelo que aconteceu, e também percebo a admiração. - Você é muito forte - ela diz. - Nem consigo imaginar como deve ter sido passar por isso.

Dou um sorriso amargo. Não é bem assim que me sinto. Forte está longe de me definir.

- A verdade é que pra mim é fácil, pois não me lembro muito bem do acidente... Não me lembro de quase nada antes ou um pouco depois disso - confesso. - Eu... - hesito. A não ser Téo, ninguém sabe sobre essa parte da minha vida.

- Não precisa me contar se não quiser. - Clarice sorri, compreensiva. - São coisas suas e eu não quero ser intrometida e nem que se sinta mal.

As palavras dela fazem eu me sentir grato, e, ao mesmo tempo, fazem com que eu queira me abrir. Mesmo antes das aulas juntos, eu sabia que eu podia confiar em Clarice. A garota transpira confiança.

- É que... Eu não me recordo muito de como era quando minha mãe tava viva. - Comprimo os lábios e desvio meu olhar para o céu. Está escuro e dá pra contar quantas estrelas são visíveis lá em cima. - Os médicos dizem que eu não sofri nenhum dano cerebral, fisicamente falando, mas que talvez o choque da perda tenha sido tão grande que minha mente apagou minhas lembranças. - Volto a olhar para ela. - A única coisa que ficou foi a voz dela me ensinando a tocar o violino. É por isso que não gosto que as pessoas me ouçam tocar, Clarice, porque é íntimo demais. É como se eu dividisse com todos a única conexão que ainda tenho com ela e eu amo ter isso só pra mim, entende?

- Claro que sim. - Ela assente fortemente com a cabeça. - Se você não quiser ir às aulas amanhã, eu vou entender perfeitamente - garante solene.

- Ei, de jeito nenhum! - protesto. - Temos um acordo e eu não vou deixar de cumpri-lo. Além do mais, eu não vou necessariamente tocar, vou ajudar os garotos a tocarem. - Relaxo na cadeira e olho para Clarice com um sorriso.

Essa menina tem sido muito boa para mim e o mínimo que posso fazer é retribuir. Não vou fugir do meu compromisso com aquelas crianças na igreja nem que um raio caia bem em cima de mim e me parta em dois.

- Obrigada, Victor.

- Eu te devo isso, linda, e também estou empolgado para fazer algo útil com os meus sábados.

- Não é isso... - Ela pausa por alguns segundos, me olhando de um jeito carinhoso. - Obrigada por confiar em mim e por não me achar uma intrometida.

- Jamais pensaria isso de você. - Alcanço seu pulso fino e o seguro. Faço movimentos circulares com o dedo, olhando diretamente em seus olhos.

Sinto seus batimentos acelerados e me dou conta de que, mesmo que não demonstre, mexo com Clarice tanto quanto ela mexe comigo, e gosto de saber disso muito mais do que desejaria admitir.

____

Oi, meus leitores queridos!
Eis aqui mais um capítulo de QD.
Espero que estejam gostando:)
Em breve teremos mais.

Ahhh e me perdoem se tiver erros na escrita e tal. Eu não sei se o Wattpad tá colocando direito os novos arquivos (mas também pode ser desatenção minha mesmo, mas é isso, perdoem ♡)

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