28 | Quase Doce




VICTOR

Reclamo com um grunhido, mas pelo modo insistente como estou sendo chacoalhado, eu não tenho escolha a não ser acordar. O ambiente parece claro demais e faz minhas pálpebras terem dificuldade de se manterem abertas.

- Acorda - pede uma voz feminina e pouco amigável.

Ainda estou meio confuso aqui. Faço um esforço para tentar entender onde estou. Sinto um gosto amargo na boca, minha cabeça pesa e meu corpo parece ter sido atropelado. Minhas costas doem pra caramba e eu esfrego o rosto para tentar despertar. Meus olhos passeiam primeiro pela sala pequena e depois pela garota que está diante de mim, com os cabelos úmidos, o uniforme do Núcleo, o rosto exibindo uma expressão séria, enquanto, com paciência, estende para mim um copo d'água e um comprimido.

- Obrigado - agradeço um pouco rouco. Aceito o remédio e me sento.

- Levanta, veste uma roupa e vem tomar café - Clarice manda e se retira.

Confuso, procuro me lembrar dos acontecimentos de ontem, porque é notório que ela está bem irritada comigo. As memórias começam a surgir em fragmentos na minha mente. Briguei com Clóvis e parece que fui expulso de casa. Depois disso, fomos a uma festa, mas o restante ainda é meio nebuloso. Devo ter bebido algumas latas de cerveja, eu me recordo de ir pegá-las no bar e de deixar Clarice sozinha para ir dançar. Algumas garotas se aproximaram e acho que não as afastei. Passo os dedos pelos cabelos. Espero não ter feito nada errado, mas realmente não sei.

Me levanto meio tonto e vou até o banheiro. No espelho acima da pia, vejo que minhas olheiras parecem mais escuras, meus olhos estão avermelhados e os cabelos bagunçados.

- Você tá um caco - digo para o meu próprio reflexo.

Ao lado, a toalha que usei está pendurada no gancho à parede e tenho uma vaga lembrança de Clarice me despindo. Não sei o que aconteceu em seguida ou como fui parar no sofá, se fiz isso sozinho ou tive a ajuda dela.

Droga de ressaca.

Abro o chuveiro. Entro no box, inclino-me e estico meus braços. De cabeça baixa, deixo a água quente correr pelas minhas costas, fazendo meus músculos relaxarem um pouco. Fecho os olhos e tento extrair alguma coisa do fundo da minha cabeça. Sei que deixei a Clarice chateada, mas se está cuidando de mim significa que não devo ter ficado com outra garota. Não sou um cara de orações, mas peço a Deus que eu esteja certo. Ela jamais iria tolerar uma traição e eu mesmo não me perdoaria se a tivesse colocado nessa situação.

Nunca mais vou beber assim.

Eu me seco, pego a roupa que deixei perto do cesto e me visto. Vou para a cozinha e o cheiro de café passado preenche todo o lugar. Clarice está do outro lado da ilha e nem se vira para me olhar. Pega uma xícara, o bule e os coloca sobre a bancada.

- Bebe.

Caramba, nunca vi Clarice ser tão mandona.

Aproximando-me, eu me sento e me sirvo, observando minha garota com cuidado. Clarice não está contente, mas também não parece que quer me matar. Sim, agora estou me lembrando. Quando vi que Clarice estava saindo do salão, não pensei e simplesmente a segui. Não fiquei com ninguém, mas fui um babaca, pois estava com muita raiva e passei a noite toda distante e agindo friamente.

- Desculpa.

Clarice apenas balança a cabeça.

- Sua mãe não tá aqui?

- Acho que só vai chegar hoje à noite.

Tomo um gole do café e sua doçura satisfaz meu paladar. Há um sanduiche de pão e queijo que Clarice fez e deixou sobre um refratário de vidro. Pego um pedaço, pois estou faminto como se tivesse um buraco em meu estômago.

- Isso tá muito bom, linda. - Dou um sorriso para ela a fim de quebrar o gelo.

- Victor - Clarice começa com uma voz que me deixa em alerta -, você tem que resolver as coisas com seu pai.

O pão desce seco em minha garganta e eu tomo mais um gole do café. Devo ter contado a ela sobre Clóvis, embora não me lembre em que momento.

- Ele me expulsou de casa.

- Do nada? - Ela me fita com dúvida.

Dou de ombros, mas ela não deixa passar.

- Como aconteceu?

Dando a volta pela ilha, Clarice se senta perto de mim.

Pego um pedaço de queijo e mastigo sem pressa enquanto ela espera, balançando a perna numa demonstração de inquietude que ela nem deve perceber.

- O cara, aquele que foi amante da minha mãe, entrou em contato com ele e contou sobre o nosso encontro. Acho que a consciência pesou. Depois de anos, ele resolveu ter uma.

Reviro os olhos e rio, mas Clarice parece não achar a mesma graça.

- Então o Clóvis te mandou embora porque você se encontrou com o Ricardo?

- Não. - Limpo o canto da boca, me curvo para perto dela e sorrio ironicamente. - Ele me mandou embora porque eu o desobedeci quando ele resolveu fingir dar uma de pai e decidiu me deixar de castigo. - Bufo com desdém. - Ele disse que eu não podia ir à festa. Como eu o desafiei, ele me deu um ultimato: se sair de dentro desta casa não precisa mais voltar.

Clarice pensa um pouco.

- Ele descobriu sobre o Ricardo e te deixou de castigo, então você não aceitou e ele te expulsou? - Confirmo com a cabeça. - Victor! - ela me repreende. - Sempre achei que você quisesse que Clóvis se importasse mais e é isso que os pais fazem quando se importam.

Quase engasgo ao rir.

- Essa é a sua noção de paternidade? Eles expulsam os filhos de casa quando se importam? É isso que é ser pai?

- Não. Te expulsar foi errado e extremo - ela diz. - Mas o castigo... É isso que os pais fazem e você deveria ter escutado ele. Imagina o quão traído ele se sentiu quando soube o que você fez e o fato de que foi aquele cara que contou e não você deve ter doido muito.

- Ah, Clarice - arquejo, irritado -, não me vem com essa! Ele me mandou sair! Eu não vou pedir pra voltar.

- E o que você vai fazer? Onde vai ficar? Você precisa de uma casa.

- Entendi. - Tiro alguns farelos de pão que caíram em meu jeans e fico de pé. - Não esquenta, não, eu não vou ficar aqui te incomodando.

- Essa não é a questão! - Clarice fica de pé também. - Você tem que se entender com o seu pai. Ele é a sua família.

Clarice tenta acariciar meu rosto, mas seguro sua mão. Os olhos dela se estreitam com meu gesto, mas não quero sua pena. Não quero que ela ache que preciso de compaixão.

- Clóvis pode ser a única pessoa que eu tenho na vida, mas eu não sou na dele e ele está disposto a me descartar porque tem outra família que já é o suficiente para ele.

- Isso não é verdade e você precisa parar de se afundar em autopiedade, de achar que não é bom e que ninguém te ama, porque muita gente te ama, mas você não deixa esse amor todo te alcançar, porque tem medo de perder e isso consome não só a você, mas todo mundo que te quer bem. - Clarice suspira, angustiada. - Vai pra casa fazer as pazes com ele. Eu aviso que você vai se atrasar.

Clarice é uma pessoa incrível, mas muito idealista. Para ela é simples assim que as coisas se resolvam, mas estou magoado demais para ceder.

- Não, se ele me ama, então ele que venha me procurar. Não vou correr atrás de quem a vida toda me evitou porque não dava conta. Alguns meses de gentileza e umas férias na praia não apagam os anos em que ele se manteve afastado. Mas não se preocupa comigo. Eu vou dar um jeito. O meu jeito. Obrigada pelo café.

Clarice vem atrás de mim quando me retiro da cozinha e me dirijo à saída.

- Não pode continuar carregando essa mágoa!

Paro com a mão na maçaneta.

- Eu não te digo como você deve se sentir, então não venha me dizer como eu devo me sentir porque você não tem ideia de como é. E sabe qual a maior diferença entre nós? - Me viro para ela e olho bem em seus olhos antes de me retirar. - Eu cresci em um palácio, mas você cresceu em um lar. Não é um bonito poema, mas a dura e feia realidade.

CLARICE

Ele não apareceu. Estamos indo para a terceira aula e nada de Victor. Tentei ligar para ele entre um intervalo e outro, enquanto os professores trocavam de sala, mas Victor não atendeu minhas chamadas e agora uma vozinha robótica me diz que seu celular está desligado ou fora da área de cobertura.

Olho para seu lugar vazio e penso na forma como ele saiu da minha casa. Victor tem razão. Eu não tinha que ter dito como ele deveria se sentir, porque não faço ideia de como é ter uma família tão disfuncional. Eu só queria que ele fosse feliz.

A ansiedade que sinto com toda essa situação me esmaga. Não consigo prestar atenção em nada até a hora de ir para a classe de LIBRAS. Cogito a ideia de faltar, mas sei que será pior se eu ficar em casa apenas pensando nos meus problemas e me sentindo angustiada por Victor.

No meio da aula, recebo uma ligação de Lídia, o que me deixa ainda mais preocupada. Peço licença para a professor, que me dá permissão e atendo o celular no corredor.

- Lídia?

- Desculpe incomodar você, Clarice. Não gosto de ligar assim quando vocês estão na escola, mas é que não estou conseguindo falar com o Victor e ele não voltou para cá ontem. Você sabe me dizer como ele está?

- Ele passou à noite lá em casa - digo.

- Então ele está bem? - O alívio dela atravessa a linha e me pego num dilema sobre contar a ela o que realmente está acontecendo. Não sei se ela sabe da briga. Só que esconder de Lídia a situação também não vai fazer bem. Ele precisa de ajuda.

- Eu não sei. Victor e o pai brigaram. Eu pedi pra ele voltar pra casa para que eles fizessem as pazes, mas pelo visto ele não apareceu aí.

- Sim, eu soube - ela suspira, abatida. - Tem ideia de para onde ele possa ter ido?

Nenhum lugar me vem à mente, mas penso que talvez Téo possa saber.

- Posso te retornar em cinco minutos?

- Claro.

Desligo e caminho até o ginásio, atravessando a quadra até chegar à área das piscinas. Logo que me aproximo, não vejo o treinador em lugar algum, mas ganho um olhar curioso de Samuel que está saindo da água.

- Você viu o Téo? Eu preciso falar com ele - pergunto quando ele chega perto de mim.

Samuel aponta para a outra extremidade da piscina.

- Aconteceu alguma coisa?

- Não... Eu acho. Mas eu te conto depois. Você pode chamar ele pra mim?

Samuel sopra um apito e chama a atenção da equipe. A cabeça de Téo surge à superfície. Ele sobe os óculos de natação e aperta a ponta do nariz. Seu olhar se concentra em Samuel primeiro, mas assim que me nota ao lado dele, sua testa se franze e ele nada até nós.

Eu me agacho quando ele chega até a borda e resumo a história dos acontecimentos de ontem e hoje para ele.

- A Lídia e eu estamos preocupadas com ele. Victor não atende o celular e não sabemos onde ele está. Vocês são como irmãos, e por isso pensei que talvez você pudesse ter alguma ideia.

- Caramba, que merda. Ele foi expulso do time e agora isso... - Téo esfrega a testa. - Pode parecer meio bobo, mas tem uma praça aqui perto. Quando me tiraram da equipe por... Bom, você sabe - ele diz, sem graça. - Enfim, quando eu estava chateado, fui espairecer por lá. A gente gosta de matar o tempo naquele lugar.

- Tá, eu sei onde é. Vou dizer a Lídia. Obrigada pela ajuda.

- Ele é meu irmão, como você disse, e faria qualquer coisa mesmo ele sendo um cabeça dura.

- Eu sei.

- Me avisa qualquer coisa, tá bom?

Faço um gesto afirmativo.

- Pode deixar.

VICTOR

Com o braço dobrado atrás da cabeça, estou aqui deitado na grama, observando lá embaixo uma mulher falar ao celular enquanto uma menininha brinca sozinha nos brinquedos do parquinho. Vez ou outra a garota se aproxima e toca seu joelho e a mulher sorri, mas sem de fato prestar atenção.

Desistindo, a menina se senta solitária na areia. A mãe se levanta e repreende a criança, fazendo-a se levantar, então desliga o celular, solta o ar furiosa e chacoalha sua calça para limpar a sujeira. A menininha aperta bem os lábios para segurar o choro. Pela mão, ela é puxada para longe e eu fico desejando sinceramente que essa mulher não seja a mãe dela. O mundo não precisa de mais um pai ou mãe ruim.

Posso estar sendo muito injusto julgando alguém por causa de o quê? Alguns minutos? Ela pode ser uma mãe incrível e só não estar no seu melhor dia, mas eu também não estou e me reservo o direito de não ser compreensivo.

Mas isso não devia me afetar. Não posso deixar que situações alheias sejam um comparativo para a minha.

Fecho os olhos e respiro o ar fresco. Embora o céu esteja nublado hoje, a temperatura está muito boa e eu procuro libertar minha mente de todo o caos, da raiva, medo e dor e das dúvidas que me sondam. Eu só não quero pensar.

Ouço o barulho de passos sobre a grama e sinto alguém sentar ao meu lado. Seu perfume é doce e muito suave e aperto os olhos com um pouco mais de força, porque ele me desperta uma sensação familiar demais. Mas é difícil ignorar sua presença, então eu abro os olhos lentamente. Lídia está de pernas cruzadas e o olhar distraído. Eu me sento e ao sentir meu movimento, ela se vira para mim.

- Você me deixou preocupada - ela me repreende de forma carinhosa. Seu cabelo loiro balança quando ela estica a mão delicada e de unhas bem feitas para tocar minha bochecha.

Pego sua mão e beijo sua palma com todo o carinho que sinto por essa mulher tão maravilhosa, pois nada disso é culpa dela.

- O que eu faço com vocês? Não era pra ser assim. Ele não devia ter agido daquele jeito. - Seus olhos se enchem de lágrimas.

- Sinto muito que você esteja nesse fogo cruzado, Lídia. Mas você não tem nada a ver com a nossa relação. Ela nunca foi boa e não acho que vá mudar algum dia por mais que a gente tente.

- Você não entende, né? - Ela aperta minha mão e toca meu queixo. - Eu não gerei você e nem sonharia que você me visse como sua mãe, mas não me peça para não te ver como um filho, pois é o que você é para mim. E eu não consigo perdoar o que ele fez. Não consigo ficar em paz se você não estiver em casa conosco e os seus irmãos. O Pedro te tem como exemplo e a Maia... Meu Deus, ela se apegou tanto a você que eu tenho medo, tenho medo de como o coração dela pode ficar se você se afastar tanto assim.

- Sabe de uma coisa? - Lídia inclina a cabeça para o lado quando junto suas mãos nas minhas. - Queria que você tivesse sido minha mãe, então eu teria sido alguém melhor, menos complicado.

Lídia soluça e me puxa para um abraço.

- Você já é incrível, coração. E sei que ele não merece isso, mas volta pra casa. Por mim, pela Maia e o Pedro. Nós precisamos de você.

Seu abraço apertado derrama em mim um sentimento que me comove. Quero agarrá-lo e guardá-lo dentro do meu coração. Não sei se mereço o que ela está me oferecendo, essa coisa que eu procurei a vida inteira e nunca achei que pudesse ter, mas sei que se não ceder ao seu pedido, irei arruinar o que ela tem com Clóvis. Não posso machucá-la assim. Não a Lídia e nem aquelas crianças.

- Não vou te soltar até que diga "sim" - ela brinca apesar da tristeza em sua voz.

Eu consigo sorrir.

- Sim, faço isso por você e por eles.

Afastando-se, Lídia ergue os lábios e acaricia meu cabelo com um afeto maternal.

- Que ótimo, meu bem. Maia já tá com saudades.

- Também tô com saudades dela.

Apreciamos um pouco mais o céu em silêncio. Quando as cores se misturam em lilás e laranja, ambos nos levantamos e eu a sigo até o carro estacionado a uma vaga na rua.

- Ligue para a Clarice depois - ela me pede enquanto dirige. - Foi por causa dela e do Téo que consegui te encontrar.

Desliguei o celular, porque saí da casa dela muito chateado e só queria ficar sozinho comigo mesmo. Ela deve ter ficado muito preocupada.

- Vou ligar.

Eu e Lídia caminhamos juntos até a entrada assim que chegamos. Clóvis está na sala, de pé perto da porta de correr que dá para o jardim. Nossos olhares se encontram. Travo o maxilar e sei que não o estou encarando com receptividade, mas tento não parecer debochado ou qualquer outra coisa que vá irritá-lo. Não precisamos de mais animosidade.

- Eu trouxe ele de volta - Lídia usa um tom incisivo e sua postura é firme, deixando claro que não há discussão. - Ele vai ficar aqui de onde nem deveria ter saído.

Clóvis não transparece nenhuma emoção em sua fisionomia, mas os olhos parecem... arrependidos? Não sei dizer e não o encaro o suficiente para descobrir.

- Vá para o seu quarto,Victor. Te chamo quando o jantar estiver pronto - pede Lídia.

Eu beijo sua mão.

- Não tô com fome, só quero descansar.

- Não importa. Vou levar ao menos um lanchinho para você.

Eu a agradeço e subo para o quarto.

Estar aqui de volta depois de tudo é muito desconfortável. Meu quarto, um refúgio até dois dias atrás, me traz um ar de não pertencimento.

Pego o carregador do celular sobre a cama e o coloco na tomada, enquadro ligo o aparelho e me deito, esperando. Estou quase me formando e tenho que pensar em uma forma de conseguir um emprego e sair dessa casa com condições de me manter sem depender do dinheiro do Clóvis. Preciso ganhar minha independência dele e ser capaz de oferecer algo a Clarice. Assim que ligar para ela, vou procurar algumas vagas e enviar meu currículo.

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